estadao.com.br | 23 de October de 2022
Existem dois enfoques básicos sobre a harmonia da natureza.
Há os que observam os astros e a vida na Terra como uma imensa e coordenada “dança cósmica”. As marés sobem e descem, as abelhas colhem o que necessitam das flores, o Sol ilumina, a Lua reflete e, assim, todos vivem o teatro natural com direção, sentido. (...) Os adeptos desse enfoque destacam a ordem de tudo, perfeitamente inserida com propósitos elevados.
No outro canto do ringue há os que não realçam harmonia ou coordenação. A natureza é instável e amoral.
Houve, só na Terra, cinco extinções massivas da vida antes do período atual. Há 252 milhões de anos, por exemplo, 95% da vida sumiu. Talvez meteoro ou atividades vulcânicas estejam na chamada “extinção do Permiano”. Não foi causada por humanos que ainda estavam muito longe da existência. Foi um fato natural que alterou toda a forma de vida por aqui. Foi a mais ampla, porém não a única das extinções em massa.
A novidade atual é que nós, humanos, estamos nos juntando aos ciclos desastrosos do passado para diminuir ou extinguir a vida.
Os que se lembram desses desastres mostram planetas e estrelas em colisão, meteoros devastadores, cometas terríveis, terremotos monstruosos e vulcões que arrasam continentes.
(...)
Um universo harmônico, coordenado, onde tudo encontra seu lugar ou um cenário de sucessivos desastres cósmicos?
Você certamente conhece representantes das duas visões da natureza. Talvez elas coexistam no churrasco da família ou no seu grupo de WhatsApp.
Existe um problema anterior aos dois polos da questão: fazemos leituras antropológicas do mundo natural. Dizer que a natureza é boa (ou que o mar está furioso) é uma projeção humana sobre fatos naturais.
O mar não é “bom” ou “ruim”, não tem acessos de fúria ou de tranquilidade: a água não age por causa de traumas de infância ou por influência da filosofia estoica. A água age porque houve movimentos tectônicos, mudanças de temperatura, ventos, atração da Lua, etc. São equações físicas, químicas e não psíquicas.
Imprimir sentimentos aos fatos naturais é uma estratégia de criar uma lógica universal a partir do humano. As forças da natureza nunca são morais, boas ou ruins. As placas tectônicas se movem, e a energia vai atingir seres vivos na superfície. Morrerão (ou não) gente boa e malvada, filhotes de coala fofos ou cobras venenosas. A parede que cai pode matar um bebê ou uma aranha. O tsunami afogará o bandido violento e o jovem engajado na luta pela justiça social.
Como o amoralismo universal da natureza nos desagrada! Gostamos de criar códigos artificiais a partir dos nossos valores que regeriam erupções vulcânicas e migrações de antílopes. Isso nos acalma como em uma festa onde os convidados chegam na hora, a comida é suficiente e boa, ninguém se excede na bebida, todos se divertem e, de forma educada, saem na mesma hora. A gaivota que come a tartaruga recém-nascida é indiferente ao meu afeto pelos animais. E, se eu salvar a tartaruguinha, talvez condene a gaivotinha à fome.
Eu posso construir sobre qualquer base meu sistema ético. Posso defender a punição aos criminosos. Necessito de torcer pelos bons e desejar a premiação aos honestos. Isso pode ocorrer aqui no mundo ou, ainda, posso imaginar um além – onde cada erro será castigado e cada ação benemérita, recompensada. Isso acalmará minha consciência, de forma a instaurar uma ordem simbólica favorável aos meus valores. Não é um erro, apenas um desejo tornado imaginário na floresta dos signos. O enredo não é da Natureza, porém meu.
Minha mente é o supremo autor de qualquer ordem. Sou o talentoso criador de ficções que me acalmam. Minha angústia contra o império das coisas circunstantes pode se aninhar em sistemas morais. Os meteoros continuarão caindo sobre nós, e os terremotos acontecendo. Pessoas boas morrerão durante as pandemias, e canalhas sobreviverão. O contrário também ocorrerá porque a natureza não é boa ou ruim, ela apenas é.
No entanto, meu narciso e meu medo criarão lógicas e, dessa forma, saberei que o céu se abriu em um azul maravilhoso de primavera porque hoje eu tenho minha festa de casamento.
(...)
Por isso, se há uma lógica no mundo, é o fato de que sou o centro dele. Minha mente adora dizer “Faça-se a luz!”. Assim, sou capaz de criar esperança. Um consolo?
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