A riqueza do mundo e a herança dos otários
Por Edival Lourenço
em IDEIAS, Revista Bula, 17/10/2022
Homo sapiens, este bípede implume, mamífero por condição e pretensioso de nascença, é um animal encantador, que se diferencia de toda bicharada pelo o uso da razão e pelo porte da moralidade.
E é ao mesmo tempo um tanto sinistro, exatamente por ser moral e dotado de raciocínio e se negar a usar essas faculdades praticamente exclusivas para se resguardar como espécie, neste momento da história em que toda a fauna humana passeia perigosamente numa frágil e movediça passarela sobre os horrores de um abismo.
Poderíamos dizer que a moral é uma invenção platônica, engendrada a partir das ideias de Sócrates (469-399 a.C.). Do ponto de vista formal, esta atribuição não é de toda descabida, mas, do ponto de vista intuitivo, algumas noções de moral, ainda que de forma rudimentar, sempre estiveram entranhadas na consciência do homem, desde tempos neanderthais.
Para a moralidade platônica nada pode fazer mal a uma pessoa de bem. Alguém que aja com senso de ética, justiça e equidade sempre estará resguardada dos solavancos do mundo. (Estes não terão sofrimentos ou sentimentos ruins).
Essa noção foi migrada inteira, sem supressões nem retoques, para o arcabouço do cristianismo, onde foi totalmente absorvida. Quem é bom sempre terá a seu dispor um caminho ladrilhado de pétalas de rosas e um horizonte azul onde abrigar seus sonhos, sempre realizando de forma crescente. Paz na terra aos homens de boa vontade, diz o aforismo deôntico. A contrário senso, quem é mau pagará o preço de sua maldade, do jeito de quem cospe para cima.
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Do ponto de vista moral e ético, Maquiavel (1469-1527) causou um estrago irreparável, com sua obra “O Príncipe”, (obra escrita — dizem — com o intuito de obter alguma sinecura dos poderosos da época) um receituário pragmático de como conquistar e manter o poder, valendo-se da velhacaria, da traição, da perfídia, da audácia e da dissimulação. Um escândalo para qualquer pessoa de bem.
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Hobbes (1588-1679) em “O Leviatã” também não deixou de provocar seus estragos na ética e na moral. Constatou ele que num dos eventos mais recorrentes da história, uma das que recebe maior preparo e investimento é sem dúvida a guerra. E na guerra, bem como no amor e na atividade econômica tudo vale. Principalmente a força e a fraude, que são facilmente percebidos em virtudes.
Para Adam Smith, o mais importante teórico do liberalismo econômico e, digamos, o precursor do capitalismo turbo, este mesmo que está esgotando os recursos da terra numa velocidade vertiginosa, o bem-estar coletivo advém da ação dos defeitos pessoais, como a ganância (empreendedorismo), avareza (poupança), vaidade (consumo).
Pode-se destilar desse pensador que a moralidade maior só pode advir de uma acumulação maior de riqueza. Em outras palavras e em bom português, a moralidade só pode florescer onde a imoralidade tiver florescido antes. Exemplo: hoje somos uma sociedade razoavelmente desenvolvida porque nossos antepassados tomaram essas terras dos indígenas.
Do mesmo modo que a moralidade, a razão como virtude, cede a assento do comando à primeira demanda de nossos defeitos.
Vejamos dois exemplos bem nossos, de nação tupiniquim. No final dos anos 50 do século passado, os teóricos e planejadores estavam certos de que o nosso desenvolvimento passava inegavelmente pela construção de uma malha ferroviária que cobrisse o Brasil varonil de dimensões continentais. Sobre isso ninguém tinha dúvidas. Não tinha e não tem até hoje.
Uma rede ferroviária, num país extenso como o nosso, é tão necessária quanto a presença de ar para os seres vivos de respiração aeróbica. Naquele meado de século, homens e máquinas saíram a campo numa disposição invejável, num alvoroço de formiga de asas. Traçaram rumos, removeram terra, espalharam dormentes e começaram a estirar os trilhos como quem espalha rama de esperança pelos campos do país.
Mas bastou que chegassem os homens da mala e estalassem algumas verdinhas aos faros aguçados de nossos dignos representantes que eles mandaram parar tudo, que o bom agora era estradas de caminhão.
Com isso o nosso país retardou sabe-se lá quantas décadas, talvez tenha até moldado um futuro perpétuo de tortuosidade e subserviência, por uma guinada dessas, em que se deixou o caminho do razoável pelo atalho da insanidade do dinheiro fácil.
Temos que lembrar é que não estamos mais na era da inocência em que a natureza passava a mão em nossas cabeças diante de nossas extravagâncias e desrazões imorais.
Estamos na passarela bamba sobre o abismo do universo, e um pouco de razão e moral em forma de ética nos faria um enorme bem. Se não quisermos que a riqueza do mundo, os bens naturais convertido em dinheiro, seja a legítima herança dos otários.
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