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sexta-feira, 12 de abril de 2024

Por que os líderes dos países ricos amargam recordes de reprovação

Por que os líderes dos países ricos amargam recordes de reprovação
veja.abril.com.br

No ano em que metade do planeta irá às urnas, os líderes das principais democracias se deparam com uma situação inédita: estão, todos e ao mesmo tempo, com a popularidade no fundo do poço. Eleitos, em geral, por margem de votos reduzida, dispondo de apoio precário no Parlamento e submetidos ao julgamento de populações que oscilam entre a raiva e a apatia, os governantes de Estados Unidos, França, Alemanha e Reino Unido, entre outros, atravessam seus mandatos como se caminhassem em um terreno minado, onde a política tal qual a conheciam é torpedeada, o centro se esvaziou e o conservadorismo se embrenha pelas brechas com vigor. 

Inábeis para lidar com o novo cenário, eles veem sua taxa de rejeição ultrapassar os 70%, batendo recordes históricos — fenômeno que não tem necessariamente a ver, como no passado, com quedas brutais de índices econômicos e de qualidade de vida. “Há um descolamento entre a realidade e a percepção das pessoas como poucas vezes se viu na história”, diz Justin Wolfers, professor de políticas públicas e economia da Universidade de Michigan.

Nos Estados Unidos, faltando sete meses para disputar a reeleição com Donald Trump, o presidente Joe Biden amarga 54% de rejeição, o pior patamar para um ocupante da Casa Branca no quarto ano de mandato desde a Segunda Guerra. E não há programa de incentivo, inflação relativamente controlada, desemprego em baixa e gracinhas no TikTok que consigam rebater seus principais pontos fracos: a idade avançada e a imagem de um mandatário de pulso fraco. Mais impopulares ainda (veja a tabela), Emmanuel Macron, da França, Rishi Sunak, do Reino Unido, Olaf Scholz, da Alemanha, e Fumio Kishida, do Japão, esperneiam para governar em meio ao clima de insatisfação generalizada.

(...)

Presos a um cenário com o qual não estão familiarizados, os partidos tradicionais mostraram-se ineficazes em combater as crescentes desigualdades, responder aos desafios da digitalização e reagir à crise climática e, assim, acabam ganhando eleições na posição de mal menor — o que resulta em governantes fracos. 

“Os eleitores sentem que as legendas centristas não representam suas opiniões”, afirma Sonnet Frisbie, especialista em inteligência política da consultoria Morning Consult. 

Aberto o espaço, a extrema direita avança em toda parte, com seu discurso populista que promete proteger e incluir aqueles que se sentem deixados para trás, seguidamente ecoado e replicado nas redes sociais. 

Os ultradireitistas são atualmente a opção de um quarto dos europeus e podem se tornar um bloco influente na votação para o Parlamento Europeu, em junho. Diante dessa perspectiva, e da possibilidade de retorno de Trump nos Estados Unidos, restará a seus opositores repetir o gesto que todos sabem estar longe do ideal: votar num nome que consideram o menos pior, num ciclo vicioso.

Publicado em VEJA de 12 de abril de 2024, edição nº 2888

Matéria completa: 

https://veja.abril.com.br/mundo/por-que-os-lideres-dos-paises-ricos-amargam-recordes-de-reprovacao

sábado, 2 de março de 2024

Extremo centro x extrema direita, a atual polarização política.

Extremo centro x extrema direita
piaui.folha.uol.com.br

A crise de representatividade, aliada às crises econômicas, chacoalharam o Ocidente. A extrema-direita soube aproveitar esse caldo e trazer como resposta ao moribundo Estado-nação uma vitalidade única de nacionalismo – forma o governo de países como os Estados Unidos, Turquia, Itália, Hungria, Polônia. Cresce significativamente em países como França, Holanda, Alemanha e Suécia. 

O populismo de direita, como é chamado por analistas, se baseia sempre em algum discurso de ódio quanto a alguma minoria e em combate ao establishment e seus valores amorais (no caso, são valores liberais).

Se, no passado, a extrema-direita era essencialmente anticomunista, hoje ela é antiliberal. A figura do barbudo militante comunista do passado foi substituída pela do burguês progressista e viajado, o vencedor da globalização.

Não à toa, o inimigo nº 1 desses movimentos é justamente um financista, o senhor George Soros, aluno de Karl Popper, talvez o mais brilhante pensador liberal do século XX. 

A extrema direita de hoje é contrária ao sistema de poderes e contrapoderes e ao modo de escrutínio. Bolsonaro é contrário aos direitos humanos, em outras palavras às liberdades individuais: defende a tortura e as execuções extrajudiciais (afirma que os direitos humanos são a razão para a crise de segurança pública). E também militantemente contrário à livre associação e à livre imprensa – esta última seus aliados chamam de fake news.

Bolsonaro recusa a evidência científica como base para a ação governamental, ao negar as mudanças climáticas e querer entregar a Amazônia para o extrativismo mais primário e grotesco.

Opõe-se a uma sociedade diversa e plural, o que se nota no combate que empreende ao que, estupidamente, chama de “ideologia de gênero”. Salvini, Trump, Erdogan, Orban, Putin, também têm o mesmo discurso. Em nenhum de seus países o alvo é a esquerda, mas sim o liberalismo.

O que está em jogo é a manutenção da ordem global liberal que parecia consolidada no momento da queda do Muro de Berlim e é agora desafiada pelos movimentos de extrema direita. 

É nesse sentido que surge uma disputa muito mais profunda do que a rixa esquerda versus direita: o embate entre extrema direita e extremo centro. 

A luta não é distributiva, é de visão de mundo, e se dá entre nacionalismo e a globalização, entre a ignorância provinciana e o cosmopolitismo elitista, quer dizer, entre barbárie e civilização.

(...)
Miguel Lago
É cientista político e diretor executivo do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (Ieps). Cofundador do Meu Rio e do Nossas, lecionou na Universidade Columbia em Nova York e na Sciences Po Paris

Artigo completo:
https://piaui.folha.uol.com.br/extremo-centro-x-extrema-direita/

domingo, 31 de dezembro de 2023

Violência natural e violência não natural

Resumo de um espetacular podcast com o tema da violência.

Muito se fala sobre a violência de um modo geral no nosso dia-a-dia, está nos noticiários, isso é uma tônica do momento.  Você poderia nos dizer o que é a violência e nos explicar como evitá-la?

- Quando você vai analisar de uma forma um pouco mais profunda o termo violência tem três conotações: 

1- A violência natural que são as transformações como vulcões, força das marés... são forças violentas. 
2 - A violência natural entre os animais, os combates até a morte. Quando você vê o leão perseguindo a sua presa não existe uma maldade. 
3 - A violência não tão natural como as duas acima que é esse arrebatamento humano quando somos dominados por sentimentos de raiva, arrebatados por um força que nos torna violentos.

E como a educação poderia reverter esse quadro do item 3?

- Quando a gente coloca essa questão do que a educação poderia propor nós falaremos de uma formação filosófica que permitisse dominar os nossos aspectos animalescos e fazer primar os nossos aspectos humanos, nossos aspectos civilizados.
- A educação atual se tornou de modo geral muito informativa, ou seja, você despeja uma quantidade de informações enorme nas crianças e informações que muitas vezes não vão se conectar com o dia a dia delas e não vão ajudá-las a se tornar seres humanos melhores.
- Eu acho curioso porque muito se fala na educação técnica no campo profissional, e, às vezes, o sujeito nem tem tanta expertise técnica mas através de fatores humanos ele se torna muito mais útil para para o seu contexto, muito mais produtivo.
- o sucesso ou fracasso do homem como ser humano e suas realizações parece estar muito mais ligado a fatores como saber conviver com os demais, saber controlar os seus próprios impulsos, saber lidar com as suas inseguranças.

- Os gregos diziam que o ser humano tem três partes básicas:

1- No aspecto somático seria o corpo físico e a sua vitalidade.
2 - No aspecto mais sutil que eles chamavam de psiquê. A psiquê é o conjunto de elementos emocionais e mentais.
3 - Há um outro aspecto ainda mais sutil do que a mente e que eles chamavam de Nous.
Seria o aspecto metafísico do ser humano. Algo que você não pode pesar, nem ver, mas que tem uma influência muito grande. É esse aspecto que vai falar muito dessa questão do mistério do ser humano. Vimos seres humanos vivendo em condições sobre-humanas mas que conseguem se tornar pessoas de bem e, às vezes, o contrário, pessoas que tem tudo do melhor e se tornam degenerados, maus caracteres. 

A educação tem que prever todos esses aspectos, somático, psiquê, Nous.

No entanto, e grandemente, o aspecto psicológico na formação da criança é relegado. Você se preocupa desde cedo se a criança está andando direito, se a criança começa a falar no tempo certo, se ela tá crescendo no tempo certo, mas, e os aspectos emocionais????

O ser humano precisa de uma educação que forme também a sua alma. Existem lugares no mundo que tem essas questões muito bem resolvidas, mas que não garante que as pessoas sejam felizes. Ou seja, as pessoas têm uma condição econômica estável, tem uma condição social estável, e, no entanto, às vezes, falta algo. 

Aqui se chega às aspirações filosóficas. E quando você tira essas aspirações filosóficas do ser humano ele se torna incompleto. Quando você retira esse elemento mais filosófico do ser humano ele se animaliza. 

E quando ele se animaliza, ele se torna competitivo, ele se torna destrutivo, e daí ele se torna o que mais suscetível a violência porque não tem controle dos seus próprios instintos, então, ele fica um pouco mais animal, fica mais sujeito a essa violência.

E a violência nos toca todos. Há um pensamento do Pitágoras que diz que "eduquem as crianças e não será necessário punir aos homens ".

Existe um tratado hindu muito famoso que é o Bhagavad-Gita.
Na verdade é uma grande analogia de uma guerra interior. Essa guerra é que devemos travar no nosso dia a dia porque não basta simplesmente reconhecer o aspecto mais sutil ou mais animal dentro de nós. É necessário que você comece a se trabalhar para fazer prevalecer o aspecto mais humano, o aspecto mais filosófico.

Esses ensinamentos filosóficos podem nos ensinar a entender e dominar a violência. 

Conhecer os textos filosóficos antigos pode nos ensinar a não sermos arrogantes. O Bhagavad Gita é um livro sagrado que fala sobre um príncipe que precisa enfrentar um grande exército. Tal exército representaria os aspectos instintivos do ser humano. Só que para que ele realizar esse combate ele não pode sozinho. Ele tem que primeiro treinar o seu exército de virtudes.
Isso é uma chave fantástica porque a natureza  não gosta do vazio. Ela sempre vai preencher os espaços vazios com alguma coisa.
Então, às vezes, a gente se concentra muito no problema, nos vícios... como é que eu vou me livrar dele?... Quando na verdade você deveria se concentrar mas na virtude. Porque quando você preenche algo com luz a sombra não vai ter espaço.

Isso é muito interessante no nosso dia-a-dia, se nós ocuparmos o nosso tempo com coisas úteis e mais elevadas não vai sobrar tempo para a gente cultivar a o aspecto animalesco não né?... Então isso é algo muito prático que tá no nosso dia a dia.

Concluindo, eu diria que o que a educação tem para nos apontar é uma filosofia no sentido de trabalhar a violência.
 
Primeiro, seria essa educação formativa porque ela vai nos permitir, nos tornar realmente humanos. Vai nos tornar mais civilizados, vai permitir que a gente possa identificar os nossos impulsos instintivos e dominá-los.

Um outro aspecto é que existe um ciclo predador/vítima. Só existe o predador onde tem a vítima. Vemos muito isso nos casos de bullying. Nas escolas sempre tem um cara que acaba sendo o alvo... o alvo da turma e muitas vezes é por uma falta de posicionamento. Por falta de alguma ferramenta ou de uma forma de você não saber dizer não, porque se você é uma pessoa que nunca se posiciona todo mundo vai chegar e vai detonar você. Vai poder fazer o que quiser com você. Isso é reflexo dessa guerra interior de que fala o livro Bhagavad Gita. A medida que você vence essa guerra interna você vai se tornar mais forte externamente.
Se você tem três ou quatro pessoas e tem um cachorro do outro lado da quadra, o cachorro vai morder aquela pessoa que tá com mais medo, né?  Que é quase sempre quem tem mais uma inclinação para o papel de vítima. E é porque o animal também tem esse instinto ele sente isso e o malandro também é instintivo. Ele não vai atacar um cara que está  ligado, alguém que está bem posicionado. Ele vai preferir atacar a pessoa que está distraída.

A educação deve nos preparar também para sermos atentos aos movimentos da vida, atentos aos nossos próprios movimentos internos. Isso é um reflexo bem prático do cultivo de uma vida mais filosófica e o quão importante é essa educação. Ser filósofo é saber um pouco quem eu sou, né?

Isso é muito curioso. Quando você não sabe o que você é, quem você é,  naquela velha máxima "conhece-te a ti mesmo",  quando você não sabe...  você é qualquer um... 
E são as portas pessoas que chegarão para falar o que você é, o que você gosta, o que você quer comprar ... 
Mas quando você está bem posicionado, terá uma memória afetiva de si mesmo muito bem formada fica difícil alguém predador chegar para você e dizer como você tem que conduzir a sua vida.

Podcast completo em:
https://open.spotify.com/episode/1IG5uxwSzaWTEhXUXeqeTk?si=1cwN7dLRRiCs_nUf7JyEPw

sábado, 19 de agosto de 2023

Bolsonarismo, o poder da comunicação


Extremistas não sabem como defender Bolsonaro e abrem brecha para esquerda, diz pesquisadora
estadao.com.br | 19 de August de 2023

BRASÍLIA - O efeito político para o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) do caso da venda das joias não é tão devastador quanto pode parecer. A eficácia da comunicação bolsonarista permite que mesmo entre grupos mais moderados prevaleça uma avaliação de que o escândalo é menos grave do que outros que marcaram os governos petistas, o que acaba por gerar uma sensação de “perseguido pelo sistema”.

As constatações são da professora da Unifesp Esther Solano, doutora em ciências sociais, especialista em pesquisas de opinião pública e em estudos sobre a extrema-direita e organizadora dos livros “The Bolsonaro paradox” (Springer, 2021), “The right in the Americas " (Routledge, 2023).

Esther Solano observa que nos grupos focais que tem conduzido em pesquisas sobre o bolsonarismo, apoiadores mais radicais começam a parecer em dúvida sobre como reagir às acusações. Essa dúvida, na visão dela, pode ser uma “janela de oportunidade” para o campo democrático, que tem dificuldades para conseguir espaço em temas que a extrema-direita monopolizou na política.

Confira a entrevista:

O caso das joias tem a capacidade de mobilizar um público que já tinha descontentamento, uma frustração, uma crítica ao Bolsonaro. Mas não tem a capacidade por si só de gerar uma imagem do Bolsonaro corrupto, a não ser que o campo democrático mobilize uma narrativa da seriedade do escândalo das joias. Se o campo democrático não conseguir formular isso com potência comunicativa, não vai gerar nenhuma massa crítica ao bolsonarismo. Com a inexigibilidade de Bolsonaro, não conseguiu. Há uma narrativa muito forte consolidada no campo bolsonarista radical, que também contamina os moderados, de que Bolsonaro pode até ter falhas, erros, talvez até desvios, mas que há de fato uma ‘vendeta’ do sistema contra ele.

Há uma coisa interessante começando a aparecer em grupos focais de bolsonarista mais radicais. Estamos percebendo um certo nervosismo, estão começando a pensar que alguma coisa errada estava acontecendo com o Bolsonaro. Talvez uma mudança de percepção ou pelo menos uma dúvida. E estão um pouco desnorteados e confusos. Há uma janela de oportunidade para o campo democrático por causa desse nervosismo. Quando a gente conversa com os mais radicais, sempre tem um discurso coeso, com a mesma retórica, muitas vezes até a mesma semântica. E quando vemos eles um pouco nervosos, há uma oportunidade para o campo democrático.

Há uma narrativa de que ele não é perfeito, comete erros, desvios, mas está sendo perseguido politicamente e juridicamente. E a segunda grande questão é a ideia da proporcionalidade, uma ideia de que pode ser um escândalo, mas que houve escândalos maiores como o Mensalão e a Lava Jato. O poder retórico do lavajatismo foi tão poderoso que qualquer escândalo se compara a ele. A construção desse arco narrativo de Bolsonaro como um personagem corrupto não está sendo feito pelo campo democrático com a calibragem que deveria.

Há duas imagens de Bolsonaro sendo construídas agora, conforme as pesquisas que temos feito. A primeira é o Bolsonaro corrupto. A segunda é o Bolsonaro golpista. As duas devem ser construídas em paralelo porque as investigações apontam nas duas investigações. Se eu tivesse que colocar minhas fichas em uma delas, seria na do corrupto. Já medimos muito a ideia do golpista, fascista, antidemocrático. É uma ideia um pouco abstrata, que não captura percepções concretas das pessoas, está longe do cotidiano delas. Em 2017, quando entrevistava bolsonaristas e perguntava o que fariam eles desistirem dele, a única coisa que diziam era: ele ficar contra a família, aprovando aborto, por exemplo, e a segunda é se comprovasse que é de fato corrupto. O político supostamente honesto se transfigurar em uma figura corrupta é muito potente.

O bolsonarismo é fundamentalmente comunicativo. Sabe que o seu substrato mais potente é justamente a luta simbólica, a luta pelas pautas que a gente tradicionalmente chama de ‘costumes’, mas que não são exatamente de costumes. São pautas simbólicas, da luta política, dos símbolos, pelas palavras, pelas ideias, pelas ideologias, etc. E isso se mostra muito eficaz nessa disputa da comunicação. Então o bolsonarismo, assim como outros grupos da extrema-direita mundial, se articulam na comunicação, elemento central para eles. Eu diria que hoje se a gente compara um pouco o governo e o ecossistema bolsonarista, o governo pode ter ido bem na pauta econômica, mas o ecossistema bolsonarista vai melhor na disputa simbólica política. Na disputa pelos valores, pelos afetos, pelos símbolos. Aí eles encontram o seu maior potencial.

Quando falamos de pautas simbólicas, são pautas que poderíamos denominar existenciais. Não dizem respeito a coisas superficiais ou tangenciais na vida das pessoas. São questões vitais, essenciais, como sentimento de abandono, de descartabilidade, da velocidade do mundo acelerado hipercomplexo em que as velhas hierarquias sociais estão de cabeça para baixo, medos, sentimentos de perda. Esses sentimentos são denominados como pautas morais, de costumes, mas são muito mais abrangentes e estruturantes.

O campo progressista e o campo democrático, de forma geral, têm um erro de cálculo. Há uma visão do campo democrático de que uma visão do campo da política, da economia, das políticas públicas, gerando emprego, estabilidade renda igualdade, de que isso será suficiente para retomar a confiança das pessoas.

A extrema-direita mundial demonstrou que a luta simbólica pelos afetos, pelas questões de confiança, de sentimento, de frustração, os grandes desafios da contemporaneidade que se traduzem muito em afetos pessoais, no sentimento de abandono, na frustração com o sistema, são absolutamente prioritárias. O campo democrático tem muita dificuldade de fazer essa luta simbólica, de narrativa política. Talvez porque significa voltar um pouco e redimensionar questões que pareciam garantidas e são lutas profundas que o outro lado faz de forma demagógica, superficial, simplória e sedutora.

https://www.estadao.com.br/politica/extremistas-nao-sabem-como-defender-bolsonaro-no-caso-das-joias-diz-pesquisadora

domingo, 26 de fevereiro de 2023

Música sexual X Música Comprometida

Como canções de Ultraje, Caetano, Chico e Milton deram o tom das Diretas
folha.uol.com.br | 25 de February de 2023 

[RESUMO] No texto a seguir, adaptado de capítulo do livro "O Girassol que nos Tinge: Uma História das Diretas Já, o Maior Movimento Popular do Brasil", o jornalista Oscar Pilagallo conta como uma lista eclética e improvável de canções, do rock à MPB tradicional, embalaram as multidões que iam às ruas pela redemocratização do país.

Num dia qualquer de 1982 —entre a surpreendente derrota da seleção brasileira na Copa da Espanha, em 5 de julho, e a auspiciosa primeira eleição direta para governadores em mais de 15 anos, em 15 de novembro—, Roger Moreira tomou uma chuveirada que mudaria sua vida e emprestaria irreverência à trilha sonora da campanha das Diretas. Cantarolando na ducha, acabou entoando, por uma associação sonora qualquer, a palavra "inútil", que ficou reverberando em sua cabeça até se transformar no refrão "a gente somos inútil".

Nascido em família da classe média paulistana residente na chique região dos Jardins, Roger estava distante do perfil dos jovens engajados que militavam no então ressurgido movimento estudantil.

Adolescente, a transgressão não ia além dos sapos que, apanhados na fazenda dos pais, soltava nas aulas. Em vez de contestação juvenil, algazarra inconsequente. Tinha largado o vício do fliperama, mas ainda gostava de entrar pela madrugada brincando de videogame ou folheando gibis, como "Pato Donald".

"Eu não era muito politizado, mal sabia o que era esquerda e direita", lembraria quatro décadas mais tarde, quando já estava alinhado à direita, inclusive apoiando o presidente Jair Bolsonaro, de extrema direita. E, no entanto, o guitarrista alienado de 1983 iria capturar o desejo coletivo, mas ainda não verbalizado nas ruas, de deixar para trás a ditadura.

Vazada em críticas ao governo e à sociedade, com ironias sublinhadas pela concordância verbal torta, a letra de "Inútil" passeia por mazelas brasileiras. Há menções à política industrial ("a gente faz trilho e não tem trem pra botar"), ao descuido social ("a gente faz filho e não consegue criar") e à censura ("a gente escreve peça e não consegue encenar"). Roger olha também para o próprio umbigo ("a gente faz música e não consegue gravar") e reflete o desapontamento nacional com a Copa perdida pelo futebol-arte ("a gente joga bola e não consegue ganhar").

Foi o verso de abertura, porém, que catapultou a música ao cenário político nacional: "A gente não sabemos escolher presidente". Era um grito que expunha frustrações e sacudia consciências, mexendo com os brios de quem, talvez vestindo a carapuça, se acomodara à impotência política.

A parabólica de Roger estava voltada para o lugar certo. "Inútil" teve a primeira audição pública em abril de 1983, pouco mais de um mês depois de a emenda Dante de Oliveira ter obtido o número necessário de assinaturas para ser apreciada pelo Congresso. A então desconhecida banda Ultraje a Rigor tocou-a no Teatro Lira Paulistana, um dos endereços mais prestigiados da cena musical de vanguarda dos anos 1980 e que decidira abrir espaço para novas bandas no projeto Boca no Trombone.

Gravada quase em seguida em um compacto simples, teria que aguardar por longos meses a liberação da censura. A provocação juvenil parecia incomodar os militares, como um sapo jogado na caserna.

Antes de obter a autorização de Brasília, no entanto, a música chegaria aos palanques da campanha das Diretas por vias informais. Tudo começa quando André Midani, presidente da gravadora WEA, resolveu distribuir para amigos fitas cassete com a gravação inédita. Uma delas cai nas mãos do publicitário Washington Olivetto, o criador da Democracia Corintiana, que a envia a Osmar Santos.

O radialista e apresentador toca "Inútil" no seu programa na extinta rádio Excelsior, o "Balancê", que fazia sucesso entremeando música e conversa sobre política e futebol. Na sequência, procura Roger e lhe pede autorização para reproduzi-la no sistema de som do primeiro dos grandes comícios das diretas, em 12 de janeiro de 1984, na Boca Maldita, em Curitiba. Seria a estreia de Osmar Santos como mestre de cerimônias da campanha e de "Inútil" como um de seus hinos. No palanque, Ulysses Guimarães se arrisca a cantarolar um trechinho.

Finalmente liberada pela censura, que desistiu de exigir mudanças na letra, a música emplacou, tendo contado até com a publicidade que lhe deu Ulysses. Quando Carlos Átila, porta-voz do presidente Figueiredo, declarou em seguida que as manifestações populares só serviam para "desestabilizar a sucessão", o deputado disse à imprensa que mandaria ao funcionário do Palácio do Planalto uma cópia do single de presente. "Ele que repita isso, que toque o disco e fique ouvindo."

Roger estava longe de ser, entre seus pares, uma andorinha solitária no verão das Diretas. Tardio como foi, o rock brasileiro, além de abordar temas típicos da juventude, como a rebeldia e o amor, lançou um olhar crítico sobre a política nacional desde a virada da década.

Em 1978, Renato Russo, que acabara de completar a maioridade, se perguntava "Que país é este?" em um rock punk que gritava haver "sujeira pra todo lado". O Senado, citado como exemplo, não era apenas uma rima. Pouco antes haviam tomado posse os senadores biônicos, uma invenção da ditadura para garantir a maioria governista. Apresentada em espaços alternativos de Brasília pelo grupo Aborto Elétrico, a música, no entanto, só ficaria conhecida em 1987, dois anos após o fim da ditadura, quando o compositor a gravou com sua nova banda, a Legião Urbana.

Formada no início dos anos 1980, a Plebe Rude, também da vertente punk do rock da capital federal, não dava trégua ao governo. Em "A Voz do Brasil", a banda captou a percepção geral da sociedade sobre o programa chapa-branca que registrava, diária e burocraticamente, os feitos do governo: "Todo dia eu ligo meu rádio para ouvir lavagem cerebral".

No fim da campanha das Diretas, em "Proteção", o grupo denunciou a truculência das autoridades que cercaram Brasília para dificultar a votação da emenda Dante de Oliveira, que propunha as eleições diretas. "Tanques lá fora/Exército de plantão", "e tudo isso pra sua proteção".

Em São Paulo, o Garotos Podres, cujo nome não deixa dúvida sobre sua inserção no punk, foi outro grupo meio marginal que engrossou o caldo de críticas ao regime e ao sistema. Formado em 1982, começou fazendo shows para arrecadar fundos para os metalúrgicos em greve. Dois anos depois, enquanto empresários e trabalhadores buscavam um objetivo em comum na política, os Garotos atacariam os patrões: "Eles são os terroristas/ com sua maldita polícia". Com a censura, trocaram "polícia" por "preguiça", mas o recado estava dado.

Já o Língua de Trapo, com seus integrantes egressos da USP, preferia o sarcasmo para fustigar o governo, como no show "Sem Indiretas", gravado ao vivo durante a campanha das Diretas, em que cantava: "Deve ser bom processar jornalista/ e se fingir caluniado/ deve ser bom tachar de comunista/ quem não for mesmo um aliado". Em outra canção, "Amor à Vista", comentava a penúria nacional com deboche mais explícito. "Os tempos são difíceis e você tem que se desdobrar", diz o narrador-gigolô à sua mulher. A balada romântica reversa evolui para a crônica política: "Nós moramos em São Paulo e aqui a oposição está no poder/ mas o colapso econômico, isso ninguém pode resolver".

E então o rufião abre seu voto: "Oh, Baby, eu votei no PT/ Que é que tem?/ Gente baixa também pode ter consciência". Se os versos não enaltecem os partidos de Lula e Ulysses, as duas legendas mais identificadas com as diretas sobrevivem ao escárnio do Língua de Trapo.

O rock foi também o veículo para Caetano Veloso se expressar com veemência contra os rumos do Brasil naquele final anunciado da ditadura. A canção "Podres Poderes" nasceu durante a campanha das Diretas e, inédita em disco, foi apresentada ao público em maio de 1984, mês seguinte ao da derrota da emenda na Câmara dos Deputados.

Numa saraivada de perguntas retóricas que distribuem lambadas nos políticos, o compositor coloca a ditadura brasileira em contexto cultural continental: "Será que nunca faremos senão confirmar/ a incompetência da América católica/ que sempre precisará de ridículos tiranos?". O cacófato "caca", de "América católica", seria para enfatizar a "porcaria" dessa tradição, sentido que a palavra tem em português e espanhol.

Caetano não eximia os brasileiros de culpa por permitirem que os homens exercessem seus podres poderes. "Somos uns boçais", como afirma na letra, é sua maneira de dizer "a gente somos inútil".

À novidade da contundência do rock nacional somou-se a melhor tradição de resistência da música popular brasileira, representada por dois de seus expoentes: Chico Buarque e Milton Nascimento. Juntas, as duas vertentes engrossariam o caldo sonoro da campanha das Diretas.

Embora sempre claramente alinhado ao campo progressista, Chico não fora, e nem se considerava, um compositor de músicas de protesto. Ao contrário, havia, por parte dele, uma desconfiança "diante da cultura engajada depois de 64, quando já estava desconectada do lastro social que lhe dava base material antes do golpe", na descrição de Fernando de Barros e Silva, que perfilou o artista. Nas palavras do próprio Chico: "A moda das canções de protesto me incomodava, [...], dava a impressão de ser um pouco oportunista".

Uma das poucas músicas que o próprio Chico colocaria nessa categoria é "Apesar de Você", um samba antigo que parecia ter sido escrito sob medida para os comícios das Diretas. A música tem uma história que se confunde com o movimento oposicionista à ditadura.

Chico passou pouco mais de um ano autoexilado na Itália no final dos anos 1960, quando, depois do AI-5, continuar no Brasil era uma opção arriscada para alguém que, como ele, estava na mira dos órgãos de repressão. Com dificuldade financeira para se manter no exterior, acabou voltando no início de 1970, no auge dos "anos de chumbo", expressão, aliás, que ele atualizaria no livro de contos publicado em 2021.

Foi então, percebendo que o país só havia piorado no período em que estivera fora, que Chico compôs os versos, endereçados a um interlocutor não nominado ("você"), a quem acusava de ter inventado "toda a escuridão".

A letra, como tantas na época, tinha duplo sentido para driblar a censura, podia ser ouvida como um lamento de marido. Não deixava muita dúvida, contudo, sobre a intenção política do autor. Versos como "A minha gente hoje anda/ falando de lado/ e olhando pro chão" ou "Eu pergunto a você/ onde vai se esconder/ da enorme euforia" continham indisfarçável mensagem.

"Você" era o general-presidente Médici ou o coletivo da ditadura. E, no entanto, naquele que é considerado um dos maiores cochilos dos censores, a música passou sem cortes e fez enorme sucesso. Até que, meses depois, o governo percebeu a própria falha e reagiu, proibindo sua execução e destruindo o estoque dos discos.

Com a abertura política, o samba, incluído no LP de 1978, passou a embalar eventos decisivos da oposição, como as eleições parlamentares daquele mesmo ano e o pleito de 1982, que elegeu os governadores que estariam à frente da campanha das Diretas. Mesmo considerando-a uma música "do passado", Chico não se furtou a cantá-la de novo nos showmícios de 1984 diante das multidões que sabiam de cor o refrão que refletia o anseio pelo fim da ditadura: "Amanhã vai ser outro dia".

Outra obra buarqueana associada às Diretas é o samba-enredo "Vai Passar". Lançada em meio à campanha, a música, em tom alegórico, passa em revista a ditadura ("página infeliz da nossa história") a partir do golpe, consumado enquanto "dormia a nossa pátria mãe tão distraída".

A frase que dá título à música, enunciada como um comentário contido no fim da gravação, é gritada no palanque, como se um apoteótico Chico não estivesse mais se referindo ao "estandarte do sanatório geral", e sim à emenda Dante de Oliveira: "Vai passar!".

No mesmo ano, o compositor revisitaria a campanha em "Pelas Tabelas", que ele resume como a história de "um sujeito procurando uma mulher, apaixonado, no meio da manifestação pelas Diretas". A letra, que passeia na fronteira entre o individual e o coletivo, recebeu uma leitura predominantemente política que, no entanto, o próprio Chico considera "viciada". Com efeito, a construção sofisticada, que remete à "barafunda mental" de sua obra literária posterior, se presta mais aos palcos do que aos palanques.

Chico marcou presença, sim, mas quem forneceu a trilha sonora da campanha cívica foi mesmo Milton Nascimento. Não com uma, nem com duas, mas com três canções consideradas hinos das Diretas.

O compositor captava em suas músicas dos anos 1960 e 1970 as delícias do amor, as venturas da fraternidade, a força da mulher, as coisas da terra que o acolheu, tudo isso sem, de vez em quando, deixar de visitar a política. "Quero a utopia, quero tudo e mais", cantava três anos antes das Diretas em "Coração Civil", que assina com o parceiro Fernando Brant.

A música reivindica para o brasileiro uma cidadania plena, não só com justiça e liberdade, mas também com direito ao vinho e à alegria. O caminho até lá passaria pela democracia que o país ensaiava timidamente: "Os meninos e o povo no poder, eu quero ver".

A letra cita, quase didaticamente, o contexto que a inspirou: a Convenção Americana dos Direitos Humanos, conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, que havia entrado em vigor em 1978, quase dez anos depois de assinada. É um clamor cívico: "São José da Costa Rica, coração civil/ Me inspire no meu sonho de amor Brasil".

No mesmo álbum, os parceiros assinavam outra canção com forte apelo político, "Nos Bailes da Vida", cujo verso mais conhecido ("todo artista tem de ir aonde o povo está") era a senha para que os membros mais proeminentes da classe subissem nos palanques das Diretas e emprestassem seu prestígio à causa.

"Coração Civil" e "Nos Bailes da Vida" ainda tocavam nas rádios quando, no início de 1983, a dupla compôs "Menestrel das Alagoas", em homenagem a Teotônio Vilela. É o primeiro dos três mencionados hinos das Diretas.

Incansável na defesa da anistia, solidário com os metalúrgicos presos em São Paulo e paladino das eleições diretas para presidente, o ex-senador concedera pouco antes, por ocasião do pleito de novembro de 1982, uma entrevista emocionante em que, já abalado pelo câncer que em breve ceifaria sua vida, falou com esperança sobre o futuro do Brasil.

Gravada por Fafá de Belém, que se transformaria na musa das Diretas, a canção enaltecia a "ira santa" e a "saúde civil" do político, que ao final da gravação declara: "Esta música é a melodia do povo. Sinto-me dentro dela porque venho fazendo de minha vida o roteiro da liberdade".

A tríade de Milton Nascimento que embalou as diretas, verdadeiros "cânticos de mobilização popular", na definição do estudioso da MPB Jairo Severiano, fecha com "Coração de Estudante", que consta do álbum "Ao Vivo", lançado no Natal de 1983, justamente quando representantes da oposição e da sociedade civil se organizavam para colocar de pé os megacomícios.

A melodia, na realidade, não era nova. Havia sido composta por Wagner Tiso para o filme "Jango", de Sílvio Tendler, que nem fora lançado. Milton fez a letra baseado em outro contexto, lembrando-se da morte do estudante Edson Luís, em 1968, em confronto com a polícia, episódio que precedeu as intensas manifestações contra o governo naquele ano.

Dirigida ao jovem, a canção mescla desalento ("já podaram seus momentos / desviaram seu destino") e fé no porvir ("mas renova-se a esperança / nova aurora a cada dia").

O título evocava o nome de uma planta delicada, coração-de-estudante, muito comum em Minas, e a cada vez que Milton soltava a voz nos palanques, ele regava um pouquinho aquela "folha da juventude".

domingo, 29 de janeiro de 2023

O futuro chegou depressa

 O futuro chegou depressa

A convivência democrática vai ter de viver em paralelo com uma pulsão antidemocrática sob a forma de um golpe de Estado continuado.

Dificilmente se encontrará na política internacional um começo tão turbulento de um mandato democrático como o que caracterizou o do presidente Lula. A democracia esteve por um fio e foi salva (por agora) devido a uma combinação contingente de fatores excepcionais: o talento de estadista do presidente, a atuação certa no momento certo de um ministro no lugar certo, Flávio Dino, logo secundado pelo apoio ativo do STF. As instituições especificamente encarregadas de defender a paz e a ordem pública estiveram ausentes, e algumas delas foram mesmo coniventes com a arruaça depredadora de bens públicos. 

Quando uma democracia prevalece nestas condições dá simultaneamente uma afirmação de força e de fraqueza. Mostra que tem mais ânimo para sobreviver do que para florescer. A verdade é que, a prazo, só sobreviverá se florescer e para isso são necessárias políticas com lógicas diferentes, suscetíveis de criarem conflitos entre si. E tudo tem de ser feito sob pressão. Ou seja, o futuro chegou depressa e com pressa.

O Brasil não volta a ser o que era antes de Bolsonaro, pelo menos durante alguns anos.

O Brasil tinha duas feridas históricas mal curadas: o colonialismo português e a ditadura. 

A ferida do colonialismo estava mal curada porque nem a questão da terra nem a do racismo antinegro, anti-indígena e anticigano (as duas heranças malditas) foram solucionadas. A última só com o primeiro governo de Lula começou a ser enfrentada (ações afirmativas, etc). 

A ferida da ditadura estava mal curada devido ao pacto com os militares antidemocráticos na transição democrática de que resultou a não punição dos crimes cometidos pelos militares. 

Estas duas feridas explodiram com toda a purulência na figura de Bolsonaro. O pus misturou-se no sangue das relações sociais por via das redes sociais e aí vai ficar por muito tempo por ação de um lúmpen-capitalismo legal e ilegal, racial e sexista, que persiste na base da economia, uma base ressentida em relação ao topo da pirâmide, o capital financeiro, devido à usura deste. 

Esta ferida mal curada e agora mais exposta vai envenenar toda política democrática nos próximos anos. 

A convivência democrática vai ter de viver em paralelo com uma pulsão antidemocrática sob a forma de um golpe de Estado continuado, ora dormente ora ativo. Assim será até 2024, data das eleições norte-americanas, devido ao pacto de sangue entre a extrema-direita brasileira e a norte-americana.

A tentativa de golpe de 8 de janeiro alterou profundamente as prioridades do presidente Lula. Dado o agravamento da crise social, a agenda de Lula estava destinada a privilegiar a área social. De repente, a política de segurança impôs-se com total urgência.

Prevejo que ela vá continuar a ocupar a atenção do Presidente durante todo o tempo em que o subterrâneo golpista mostrar ter aliados nas Forças Armadas, nas forças de segurança e no capital antiamazônico. 
(...)

Trecho de Artigo de Boaventura de Sousa Santos 

nasceu em Coimbra, em 1940. É doutor em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale (1973), além de professor catedrático jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e distinguished legal scholar da Universidade de Wisconsin-Madison. Foi também global legal scholar da Universidade de Warwick e professor visitante do Birkbeck College da Universidade de Londres.

Matéria do site Boitempo

sábado, 28 de janeiro de 2023

Acima do mal e do pior

Acima do mal e do pior

istoe.com.br | 27 de January de 2023 

Existe alguma coisa em comum entre Bolsonaro, os golpistas e Daniel Alves.

Um parafuso a menos, dirão alguns.

Mas não é isso. Ou não apenas isso.

O que parece existir, é que em algum ponto da história pessoal de certos indivíduos, o entorno, as informações, a percepção do mundo, entrega uma leitura equivocada sobre as consequências de seus atos. Não. Não era assim há uns 30 anos.

Contraventores, criminosos e pilantras em geral, tentavam encobrir seus rastros. Hoje não mais.

O que mudou? O que leva gente famosa e anônima a gestos que evidentemente vão contra as convenções sociais, as leis ou o mero bom senso?

Isso se partirmos da presunção de inocência, que é o que resta até provas em contrário.

Assim, Bolsonaro teria se convencido de seus ideais a tal ponto, que deixou de lado a capacidade de avaliar as opinões contrárias as suas próprias crenças.

Deixou de lado a verdade inequívoca da eficiências das vacinas, para citar o exemplo mais óbvio.

Se convenceu, e tentou convencer, que urnas eletrônicas eram fraudulentas.

Acreditou que existia um complô do STF contra ele.

Tudo, claro, se imaginarmos – me chame de ingênuo – que nada disso foi movido por simples má fé.

Os golpistas de 8 de janeiro idem.

Milhares de cidadãos de bem – eu, novamente, me esforçando em ser ingênuo – tomaram Brasília de assalto certos de que tinham suas razões, munidos das informações que optaram por acreditar e que jamais seriam confrontados com outra realidade e as leis. Daniel Alves, caso sejam comprovadas as acusações que recaem sobre ele, estava seguro que não seria cobrado por seus atos.

O resto de nós pergunta:

– Mas espere… em nenhum momento essa gente, seja o presidente da República, sejam os anônimos que o seguem, seja uma celebridade do esporte, tiveram alguma dúvida de que seriam descobertos em seus atos ilegais, imorais ou criminosos?

O que leva tanta gente a acreditar esta acima do bem e do mal?

Não se trata de um fenômeno local. Esses são apenas três exemplos brasileiros que encontram paralelo no mundo todo.

Gente como Trump, como Madoff, como Harvey Weinstein, ou os terroristas que invadiram o Capitólio estão se proliferando pelo mundo. Não é um fenômeno local. É temporal.

Os vilões do mundo se convenceram de que podem sair ilesos.

Estão todos certos que podem torcer as normas sociais em seu favor.Não era assim.

O que mudou na Cultura do mundo para criar essa auto-presunção de inocência?

No passado recente, culpávamos a lentidão da Justiça e as falhas do sistema que permitiam criminosos escaparem sem punição.

Mas nem mesmo essa desculpa existe mais.

Pelo contrário.

Nunca se prendeu tanta gente poderosa como nos últimos anos.

Aqui e lá fora.

A Lava Jato – com todos os seus infinitos erros – prendeu CEOs e políticos como nunca.

Uma fila de governadores cariocas foi em cana sem dó nem piedade.

Figurões norte-americanos e europeus terminaram atrás das grades.

O próprio Madoff – ex-presidente da NASDAQ – está preso pelo resto da vida.

E, mesmo assim, um tipo peculiar de ser humano acredita que não será descoberto.

Não se preocupa em esconder suas digitais.

Enquanto o Mensalão era descoberto, o Petrolão era arquitetado.

Como se não lessem a folha policial, cresce o número de indivíduos que ainda acreditam poder viver acima das leis, independente de fama, poder ou dinheiro.

Será outra consequência das redes sociais?

As mesmas redes que criam um Universo paralelo de informação, alimentam a crença de se estar acima das leis?

Bolsonaro, os terroristas de 8 de janeiro, Daniel Alves (se comprovados seus atos), devem enfrentar o rigor da Justiça.

Resta a nós pressionar para romper essa percepção de inocência com o rigor da lei.

Fotos no Instagram e mensagens no WhatsApp não podem ser argumentos maiores do que os fatos.

Se o algoritmo criou a sensação de impunidade, a sociedade terá que corrigir essa distorção, custe o que custar.

sábado, 14 de janeiro de 2023

A cena histórica

A cena histórica e as imagens sórdidas
estadao.com.br | 14 de January de 2023

A teoria dos jogos é um ramo da matemática que pode inspirar o debate democrático. Imaginemos dois contendores que pensam de forma diferente, mas vislumbram um bem maior. “Em alguns momentos o jogador A tem de ceder, em outros é o jogador B. São os chamados ‘jogos de coordenação’”, diz o economista Felippe Clemente, pesquisador da Universidade de Lisboa e especialista no assunto. Ele é o entrevistado do minipodcast da semana..

Transposto para o universo político, esse bem maior seria uma visão de futuro para um país. Todos os brasileiros estão de acordo, por exemplo, com o fato de que precisamos acabar com a pobreza. Liberais, conservadores, social-democratas e socialistas têm ideias diferentes sobre como fazer isso. Para cumprir o objetivo no futuro, cada corrente tem de ceder um pouco no presente. “A democracia é feita desses jogos de coordenação”, diz Clemente.

Nesta semana os brasileiros assistiram a uma cena destinada a entrar para a história: chefes dos três Poderes, acompanhados de todos os governadores, desceram juntos a rampa do Palácio do Planalto. Esquerdas e direitas se uniram em torno de um bem maior: a preservação da própria democracia.

Sim, porque essa cena grandiosa seguiu-se a um dos momentos mais sórdidos de nossa trajetória recente: o dia em que delinquentes bolsonaristas vandalizaram as sedes do Executivo, Legislativo e Judiciário. Um quadro de Di Cavalcanti foi destruído a facadas, e o brasão da República foi atirado à rua.

Em nota conjunta, os chefes dos Poderes classificaram os bolsonaristas de “terroristas”, “vândalos”, “criminosos” e “golpistas”. Todos os termos se aplicam de alguma forma. Só não se aplica a palavra “patriota”, com a qual os bolsonaristas se autodefinem. Em sua fúria destruidora, a horda achincalhou vários símbolos da Pátria.

Voltemos à teoria dos jogos. O Brasil tem vários problemas importantes a resolver. Nenhum deles se relaciona com a segurança das urnas ou banheiros unissex. Precisamos, entre outras coisas, levar educação a nossos jovens e saneamento às moradias carentes, além de preservar a floresta, que é nosso principal patrimônio como nação. São temas dessa magnitude que devem compor nossa visão de futuro.

A democracia brasileira parecia uma conquista consolidada, até que um nicho extremista passasse a clamar por golpe na frente dos quartéis e, dias mais tarde, perpetrasse o crime que nos envergonhou aos olhos do mundo. Ainda bem que nos unimos para defendê-la. A democracia é o bem maior entre nossos bens maiores. Sem ela não há visão de futuro – nem mesmo futuro.

Editorial do Estadão sobre a defesa da democracia

domingo, 25 de setembro de 2022

Característica do fascismo

Características do Fascismo

O fascismo é um regime de governo altamente nacionalista e autoritário que teve grande relevância na Europa no século XX.

1. Valoriza o nacionalismo exacerbado
2. Totalitarismo e Corporativismo
3. Ênfase no militarismo
4. Obsessão com a segurança nacional
5. Desprezo pelos direitos humanos
6. Desprezo por intelectuais e artistas
7. Controle da mídia e censura
8. Usa a religião como forma de  
    manipulação
9. Uso da retórica contra os métodos 
    políticos tradicionais
10. Exaltação dos “valores tradicionais” 
     em detrimento de valores  
     considerados “modernos”
11. Um modelo de Estado forte, com o 
       poder centralizado no executivo e a 
      figura do líder, incontestável.  

Características do fascismo, segundo Umberto eco:

— O culto à tradição. 
— A rejeição ao modernismo.  O Iluminismo, a Idade da Razão, é visto como o começo de toda a depravação moderna. 
— Discordância é traição.  O espírito crítico faz distinções, e isso é uma forma de modernismo. Na cultura moderna a comunidade científica elogia a discordância, como uma forma de aprimorar o conhecimento.
— Medo das diferenças. O primeiro apelo de um movimento fascista é contra os intrusos. Assim, o Fascismo Eterno é racista por definição.
— A obsessão por um enredo.
— Desprezo pelos fracos. Elitismo é um aspecto típico de qualquer ideologia reacionária.
— Machismo e armas. O Machismo implica ao mesmo tempo um desdém pelas mulheres e uma intolerância — e condenação — a hábitos sexuais fora do padrão, da castidade à homossexualidade.
— Populismo seletivo. No nosso futuro haverá o populismo de TV ou de Internet, no qual a resposta emocional de um seleto grupo de cidadãos pode ser apresentada e aceita como a Voz do Povo.

sexta-feira, 16 de setembro de 2022

Entre os bons e os maus. A desunião da sociedade

Como o bolsonarismo desune a sociedade e enfraquece a sensação de pertencimento.
Revista Istoé.

Governo Bolsonaro promove um nacionalismo vazio e desagregador, estimula a exclusão de quem pensa diferente e enfraquece a sensação de unidade e de pertencimento dos brasileiros a um mesmo País

Os grupos bolsonaristas se apropriaram de símbolos da Pátria e querem ser donos da nacionalidade 

Há neste momento no Brasil um governo que promove a antipatia pelo próximo, pelo compatriota, que divide a sociedade e prega que pessoas comuns sejam truculentas e andem armadas. Junto com isso, acontece uma tentativa de esfacelamento de valores pré-políticos, como cordialidade, solidariedade, respeito à natureza, tolerância religiosa e caridade, que, em menor ou maior grau, fazem parte da cultura nacional e orientam nossa convivência democrática.

O nacionalismo bolsonarista está causando uma rachadura civilizacional, quebrando laços afetivos e dissolvendo o sentimento de unidade da Pátria, que deveria estar fortalecido no Bicentenário. Apropriando-se de símbolos coletivos, como as cores da bandeira, a camisa da seleção de futebol e a efeméride de Sete de Setembro, o presidente e seus seguidores declaram que querem ser os “donos da nacionalidade” e não estão dispostos a uma convivência pacífica com qualquer um que pense diferente, além de trabalhar explicitamente a favor da desagregação social.

Num esforço manipulador, apresentam-se como patriotas e colocam os inimigos da pátria de outro. É uma divisão doentia. Para os patriotas, seus oponentes não merecem nem comer, como demonstrou o empresário do agronegócio Cássio Joel Cenalli, que recusou um prato de alimento para a diarista Ilza Ramos Rodrigues porque ela declarou que votaria em Lula. O caso aconteceu em Itapeva, no interior de São Paulo, e expôs de maneira crua uma vontade de eliminação, que exclui a parte da população que discorda das idéias do líder autoritário. 

Em larga escala, essa perversidade bolsonarista tem uma função excludente que está levando muitos brasileiros a perderem a sensação de pertencimento a uma Nação e abandonando a crença no futuro próspero, um dos pilares da cultura nacional ­— não por acaso, cada vez mais gente está emigrando para Portugal e outros países. Ilza faz parte de um imenso grupo formado por contingentes da classe média, pobres e minorias em geral, que não têm essa possibilidade e são ofendidos e humilhados por não compartilharem do pensamento bolsonarista, o que não significa ser socialista, comunista ou radical.

Durante a pandemia, momento em que seria importante a união da sociedade, em que o governo poderia trabalhar numa sintonia positiva, a estratégia foi estimular o negacionismo e a discórdia.

Bolsonaro disse não era coveiro e trabalhou duro para fomentar dúvidas e favorecer a dispersão de interesses, mostrando a canalhice de sua política sanitária. 

Disse absurdos como “Tem que deixar de ser um país de maricas” ou “Chega de frescura e de mimimi. Vão ficar chorando até quando?”. 

Para uma sociedade que costuma chorar seus mortos, essa foi mais uma forma de separar os brasileiros entre os frouxos, que não seguem conselhos fora de órbita como usar cloroquina, e os fortes, alinhados com um projeto de dominação prestes a naufragar. 

Em nenhum momento o governo trabalhou para estimular o sentimento de solidariedade. Ao contrário, fez o que pode para afrouxar os laços de colaboração e dividir o povo.

“O que há no Brasil hoje é um nacionalismo ancorado no ressentimento e na exclusão”, afirma o historiador Daniel Gomes de Carvalho, professor de História Contemporânea da Universidade Nacional de Brasília (UNB). Para Carvalho, Bolsonaro mobiliza uma classe média empobrecida e mais envelhecida, principalmente branca, que promove a ideia de que os esquerdistas estão à espreita para tomar o poder e acabar com as liberdades individuais. Tenta também criar um país imaginário onde se esquece do racismo estrutural, da crueldade da ditadura militar e inventa uma ameaça comunista quando se sabe que isso está fora de cogitação. “Bolsonaro passa a mensagem de que o mundo conspira contra você e cria uma atmosfera falsa de pânico e de medo”, diz.

Nacionalismo e patriotismo foram instrumentalizados de maneira deturpada na criação da identidade política do presidente. 

Bolsonaro também favorece a dispersão e o distanciamento da sociedade das instâncias decisórias. Em seu livro Comunidades Imaginadas, o antropólogo Benedict Anderson mostra que quanto mais atomizadas são os grupos sociais, como eram, por exemplo, os camponeses da França do século 19, que viviam isolados e contavam com poucos organismos de ação coletiva, como associações e sindicatos, maior é a tendência das pessoas de se apoiarem em líderes salvadores. 

Nessas sociedades, segundo Carvalho, com poucos elementos de coesão, a representação se mobiliza com elementos autoritários e religiosos. “São sintomas de uma sociedade estilhaçada”, diz. 

No Brasil, é evidente o esforço de Bolsonaro para acabar com instâncias de participação social nas decisões de governo, como conselhos e comitês, o que também favorece a atomização e a falta de pertencimento. A população não se sente mais acolhida e representada pela instituições e perde a sensação de que são cidadãos de um País.
(...)

Isso, porém, vai contra os planos destrutivos de Bolsonaro. Seu projeto nacionalista diminui e transforma o País em um lugar menos humano, solidário e feliz, e se afirma simplesmente na negação de comunistas, esquerdistas e globalistas. 

O bolsonarismo propõe a separação dos brasileiros de maneira sumária e preconceituosa e torna o País pior e menos prestigiado.

E da mesma forma que faz isso internamente, aumentando a distância entre o Estado e o cidadão, entre o brasileiro e sua Pátria, também busca um afastamento dos organismos internacionais e das grandes discussões globais, associadas ao meio ambiente e aos direitos humanos. 

A perspectiva do bolsonarismo é a do isolamento e silenciamento dos diferentes, que não compactuam com seu pensamento.

A ideologia que se tenta impor hoje no Brasil afrouxa os laços de colaboração, aumenta a desigualdade social e acaba com a sensação de pertencimento.

Link o texto completo:

https://istoe.com.br/por-que-estamos-tao-desunidos/


domingo, 10 de abril de 2022

Brasil, um país à margem da lei

À margem da lei
folha.uol.com.br | 8 de April de 2022 

O Brasil vive às turras com a lei desde sua origem. A ideia de que pessoas e instituições devam se conduzir em conformidade com regras gerais —aplicadas sem qualquer distinção— e de que todos são sujeitos de iguais direitos, jamais conseguirá superar os enormes obstáculos levantados por uma sociedade estruturada em torno da desigualdade, da discriminação, dos privilégios e exclusões. Daí a sua incompletude.

A consequência mais imediata da fragilidade da lei no Brasil é a submissão de enormes contingentes da população à violência e ao arbítrio, que brutalizam a vida cotidiana dos mais pobres, mas também criam mal-estar os mais afluentes. A consequência mais difusa dessa incompletude do nosso Estado de Direito é que o país não consegue consolidar uma trajetória de desenvolvimento. Onde não há lei prevalece o oportunismo e a rapinagem, em detrimento da cooperação, do planejamento, do investimento de longo prazo, da boa governança democrática.

A qualidade do Estado de Direito no Brasil vem caindo nos últimos três anos. O Brasil se encontra no bloco dos países que mais declinaram na América Latina, conforme aponta o último Rule of Law Index. Essa deterioração não chega a surpreender, em face da hostilidade do presente governo —e das múltiplas forças autoritárias, milicianas e liberticidas que o apoiam— ao governo das leis.

A espessura desse declínio pode ser percebida em múltiplas esferas. Particularmente grave é o crescimento do crime organizado na região amazônica, associado não apenas ao controle das rotas de tráfico, mas também ao garimpo ilegal, ao desmatamento e à grilagem. As taxas de homicídios em cidades pequenas e médias na Amazônia superam hoje a média nacional (Cartografia das Violências na Região Amazônica, produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2022). O desmonte dos órgãos e mecanismo de controle e aplicação da lei, além de um claro incentivo a práticas ilegais, tem colocado em risco nosso principal ativo estratégico, sob o olhar cúmplice daqueles que sustentam o presente governo.

A deterioração também é clara no âmbito da corrupção, seja pela institucionalização do orçamento secreto, que azeita as relações do parlamento com o Executivo, seja pela fragilização de instituições como a Controladoria Geral da União e a Policia Federal.

Não se deve negligenciar também o fortalecimento do milicianismo e do tráfico em muitas regiões do pais. Estima-se que mais de 60% do território do Rio de Janeiro estejam sob o controle dessas forças, o que tem contribuído para um dramático declínio econômico do estado, além de perdas humanas inestimáveis.

O Brasil não superará os seus inúmeros desafios no campo do desenvolvimento econômico, do controle da corrupção política, da preservação ambiental, da qualificação de seus jovens ou da pacificação social e controle do crime sem enfrentar a questão da integridade do Estado de Direito.

A deterioração do Estado de Direito nos lança num caminho perigoso. É surpreendente que muitas pessoas que compõem setores do empresariado, das classes armadas, de grupos religiosos e mesmo do estamento jurídico não se deem conta da estratégia deliberada de erosão da lei e da ordem patrocinada por esse governo. À margem da lei só há o crime.
(...)

domingo, 26 de dezembro de 2021

O Mito Da Caverna

"Mito da Caverna"
Descrito no livro A República, capítulo 6, do filósofo Platão.

Platão utilizou a linguagem alegórica para mostrar o quanto os homens estavam presos a imagens, sombras ou preconceitos e superstições, como correntes ligadas aos seus corpos.

Para descrever isso, ele remete à imagem de um grupo de homens que nasceram e cresceram dentro de uma caverna, imobilizados por correntes e obrigados a olhar apenas para a parede da caverna à sua frente. Ali, acorrentados e totalmente acostumados com esta situação, contemplavam o que achavam ser o mundo, a partir apenas das sombras refletidas no fundo da caverna por uma escassa luz que havia atrás deles.

O seu mundo ‘real’ era formado por sombras de estatuetas de homens, de animais, vasos, bacias e outros vasilhames, refletidas na parede da caverna. Como só podiam enxergar essas imagens distorcidas, concluíam que eram verdadeiras. A existência desses prisioneiros era inteiramente dominada pela ignorância e contentamento com o que é superficial.

Quebrando as correntes

Certo dia, um dos prisioneiros resolveu libertar-se e voltar-se para o lado de fora da caverna. No início, ao sair da caverna e das trevas que ali reinavam, ficou cego devido à claridade vinda de fora. Gradativamente, seus olhos foram se acostumando à claridade e vislumbraram um outro mundo, com natureza, cores, “imagens” diferentes do que antes considerada verdadeiro. O universo da ciência (gnose) e o do conhecimento (episteme), por inteiro, se abria perante ele, podendo então vislumbrar o mundo das formas perfeitas ou o mundo da verdade, do conhecimento verdadeiro. Maravilhado com o conhecimento, ele voltou para dentro da caverna para narrar o fato aos seus amigos ainda acorrentados, com o intuito de também libertá-los, mas eles não acreditaram nele e revoltados com a sua “mentira”, acostumados a permanecerem na “zona de conforto”, ameaçaram matá-lo.

Com essa alegoria, Platão divide o mundo em duas realidades: o sensível, que é percebido pelos cinco sentidos, e o inteligível (o mundo das ideias), que se alcança apenas com a racionalidade, o pensamento puro, livre das 'trapaças' dos sentidos. O primeiro é o mundo da imperfeição, da ilusão, da mera opinião, do “eu acho”. O segundo é o mundo da verdade, do conhecimento, das ideias, das formas inteligíveis e perfeitas, dos conceitos, do “eu sei”.

A mensagem de Platão ao mundo atual é que o ser humano deveria procurar as verdades em si, sem se contentar com as meras opiniões ou preconceitos.

O homem deveria se empenhar em uma atitude de investigação, pesquisa, discernimento, aprofundamento, problematização, criticidade, enfim, se empenhar na atitude filosófica, para que consiga atingir o bem maior para sua vida, que só pode ser decorrência da verdade ou, pelo menos, da busca sincera e incessante por ele.

No dia a dia, muitas são as cavernas em que nos envolvemos e nos encontramos, seja por comodismo ou alienação, e encontramo-nos enganados e submersos, sem nos darmos conta de que tudo é mera especulação ou ilusão. Assim, O Mito da Caverna, e a filosofia como um todo, é um convite permanente à reflexão e à vida digna.

Richard Garcia é professor de Filosofia, Sociologia e Atualidades do Percurso Pré-vestibular e Enem.

https://www.em.com.br/app/noticia/especiais/educacao/enem/2015/08/03/noticia-especial-enem,674644/platao-e-o-mito-da-caverna.shtml.

quinta-feira, 25 de novembro de 2021

Teoria da Estupidez, um conceito para entender o Brasil

*Teoria da Estupidez de Bonhoeffer explica por que o Brasil deu nisso*
(19/11/2021)

“A estupidez é um inimigo mais perigoso do que o mal. 

A Teoria da Estupidez, descrita pelo teólogo, pastor e membro da resistência anti-nazista, Dietrich Bonhoeffer, explicaria perfeitamente o Brasil atual: 
a estupidez seria um fenômeno que está na raiz de todos os problemas. 

Diferente da canalhice e do mal-intencionado, a estupidez não é uma falha no caráter ou súbita suspensão da razão: é uma categoria sócio-psicológica, bem objetiva, com origens no funcionamento heurístico da nossa mente, sempre em busca de atalhos por meio de vieses cognitivos. E de todos os vieses, o efeito de rebanho é o mais proeminente. 

Por isso, a estupidez é orgulhosa de si mesma: tem a chancela do grupo, da “maioria”. Para Bonhoeffer, conhecer a natureza da estupidez é urgente porque, ao contrário do mal, contra a estupidez não temos defesa.
(...)
O teólogo, pastor e membro da resistência alemã anti-nazista, Dietrich Bonhoeffer (1906-1945), certamente poderá nos ajudar. Opondo-se à onda de evangélicos que aderiam à ascensão do nazismo, Bonhoeffer começou a incomodar ao proferir uma palestra no rádio onde criticava a deificação de líderes, razão pela qual a transmissão foi imediatamente interrompida.

O tolo e o canalha
Para ele, apenas uma coisa explicava aqueles tempos sombrios de guerra total na Europa e um regime totalitário controlando o país: a estupidez.

Contra a estupidez não temos defesa.  O raciocínio é inútil. 

Fatos que contradizem preconceitos pessoais podem simplesmente ser desacreditados - na verdade, o tolo pode contra-atacar criticando-os e, se forem inegáveis, podem simplesmente ser deixados de lado como exceções triviais. 

Bonhoeffer acreditava que era urgente entender a natureza da estupidez.  Para ele, a natureza da estupidez tem raízes profundas no psiquismo. 

Fenômeno de grupo
A estupidez seria um fenômeno de grupo. Um indivíduo pode agir estupidamente, mas isso não tem efeito no todo. No entanto, quando um grupo age de forma estúpida, isso causa um grande impacto no indivíduo, agravando todo o efeito. 

O comportamento do rebanho está entre as causas mais importantes da estupidez. 

Numerosos estudos científicos mostraram como os seres humanos individuais podem ser influenciados pela multidão a adotar posições que vão contra toda a lógica. 

Em um estudo clássico sobre a conformidade humana, o psicólogo Solomon Asch observou como as pessoas individuais reagem ao grupo majoritário ao seu redor – ASCH, Salomon, “Studies of independence and conformity. A minority of one against a unanimous majority”. Psychological Monographs, 70(9).

Eles estão de acordo com a visão do grupo? Ou eles seguem seu próprio caminho contrário (mas, em última análise, correto)? 

Os resultados foram espantosos, mas incrivelmente reveladores para mostrar como surge a estupidez. 

No decorrer dos 12 experimentos sobre conformidade, cerca de 75% dos participantes concordaram com a opinião da maioria pelo menos uma vez.

Bonhoeffer dizia que “o poder de um precisa da estupidez do outro”. 

O processo em ação aqui não quer dizer que as capacidades humanas particulares, por exemplo, o intelecto, atrofiem ou falhem repentinamente. Em vez disso, parece que, sob o impacto avassalador do poder crescente, os humanos são privados de sua independência interior e, mais ou menos conscientemente, desistem de estabelecer uma posição autônoma em relação às circunstâncias emergentes. 

“O fato de a pessoa estúpida ser frequentemente teimosa não deve nos cegar para o fato de que ela não é independente”, dizia o teólogo alemão.

As pessoas dominadas pela estupidez agiriam como se estivessem possuídas. Sua parte lógica do cérebro está desligada. 

Tal pessoa passa a atuar como um zumbi político, com o qual falha qualquer tipo de lógica ou discussão de fatos. 

Em vez disso, eles funcionam no nível de slogans, palavras de ordem e gritos de guerra de baixo nível.

Viés Cognitivo
Freud acreditava que a mente humana era regida pela lei do menor esforço: busca atalhos mentais pela simples necessidade de economia de energia psíquica. 

Modernamente, isso é chamado de “tendência e vieses cognitivos” - tendências que podem levar a desvios sistemáticos de lógica e a decisões irracionais. 

Esses usos de processamento de informações, ou seja, atalhos mentais (chamados de heurística) são criados pela nossa mente para produzir decisões ou julgamentos e nos ajudar a navegar por este mundo.

Porém, essas tendências podem se transformar em vieses com uma variedade de formas: ruídos mentais, crenças, escalada irracional de compromisso (persistir em uma decisão que gera prejuízo por já ter investido muito nessa decisão) etc.

Entre estes, seguir o rebanho é indiscutivelmente o mais proeminente. Faz até sentido. Quando as informações são escassas e a indecisão predomina, fazer o que os outros estão fazendo é provavelmente o melhor curso de ação.

Por esse motivo, para Bonhoeffer, lutar contra a estupidez é mais difícil do que contra o mal. Podemos lutar contra o mal. Podemos expô-lo, denunciá-lo. 

O estúpido, o canalha e o mal-intencionado
Enquanto a canalhice e a má-intenção têm a ver com falha no caráter individual, a estupidez é muito mais perigosa, por ser um fenômeno coletivo, sócio-psicológico.

O canalha é sempre um covarde, que busca sempre tirar a melhor vantagem pessoal do infortúnio coletivo ou do outro. 

Quanto à má intencionada, basta denunciá-la, desmascará-la. 

O canalha e o mal-intencionado estão no campo da imoralidade: necessitam de máscaras, subterfúgios, uma sombra na qual possam se esconder e operar.

Porém, a estupidez se desloca para outro campo: o da amoralidade. Estúpidos são orgulhosos da própria estupidez, porque têm a chancela do grupo, do coletivo. Sabe que não estão sozinhos, e isso já é mais do que suficiente para ele.

Freud já expunha isso no texto “Psicologia de Massas e Análise do Ego”: mais do que a morte, o que o homem mais teme é a solidão. 

Os indivíduos nas massas permanecem unidos não pelo poder da hipnose do líder. Mas por “amor a eles”, aos outros que formam a massa ou o grupo. 

As redes sociais apenas exponenciaram esse funcionamento interno de cada um de nós desde que abandonamos as savanas da África há 50 mil anos. 

Só que agora de forma virtual, como farsa – agora são robôs alt-rightque impulsionam hashtags, criando enxames e vieses cognitivos. E, como sempre, o efeito de rebanho: oferecer aos usuários o atalho mental.

Umberto Eco tinha razão ao dizer que a Internet deu voz a uma “legião de imbecis”: as unanimidades virtuais acabaram criando a estupidez orgulhosa de si mesmo. 

Uma releitura do artigo:

 https://cinegnose.blogspot.com/2021/11/teoria-da-estupidez-de-bonhoeffer.html?m=1#more.

sexta-feira, 2 de julho de 2021

A era da instabilidade

A era da instabilidade
veja.abril.com.br | 1 de July de 2021

Tempos atrás participei de um debate sobre a democracia atual e lá pelas tantas me perguntaram: “Quando é que vamos superar essa sensação permanente de ‘crise’?”. A sensação tinha a ver com as coisas que todos sabemos — o radicalismo das redes, a polarização crescente, os novos populismos, um certo elemento caótico e violento, que vai daquela invasão ao Capitólio, por ativistas ligados ao QAnon, até os movimentos de rua que vêm ocupando tantas capitais latino-americanas.

“Não vamos”, respondi à pergunta. O barulho e a instabilidade vieram para ficar. Há muitos sinais nessas direção. “Participação política” foi o traço das democracias que mais cresceu, nos últimos anos, segundo a The Economist Intelligence Unit. Manuel Castells já havia tratado disso alguns anos atrás, mapeando dezenas de movimentos sociais que iam desde a Primavera Árabe até o Occupy Wall Street, em seu Redes de Indignação e Esperança. Movimentos reativos que explodem a partir de um fato dramático, como no caso do Black Lives Matter, e se propagam anarquicamente na velocidade das redes.

É possível identificar essas coisas observando o lado mais comezinho da politica, aqui mesmo no Brasil. Dias atrás lia que Bolsonaro já passou dos 120 pedidos de impeachment. Mais do que a soma de FHC, Dilma e Temer. De uma medida extrema, o impeachment se tornou o feijão com arroz da República. A política assume a lógica da guerra. Isso não era muito diferente, diga-se de passagem, no último governo Dilma, que já iniciou em crise, e assim foi até o impeachment, e no governo Temer, barrando dois processos de investigação, a um alto custo, no Congresso, e vivendo na corda bamba.

Um caminho para entender o fenômeno é observar que vivemos em uma era de excesso. Em duas ou três décadas passamos de alguns milhares para muitos milhões de cidadãos palpitando sobre política, todos os dias. Hoje são algo em torno de 15% a 20% do eleitorado, nos meios digitais. Não passa de ingenuidade imaginar que isto não geraria barulho e a “sensação cotidiana de abismo”, na definição talvez exagerada que ouvi por estes dias.

O aspecto crucial talvez seja o overload de informação. Já nos anos 90, o psicólogo David Lewis cunhou o termo “fadiga informativa”. Soterrados de informação, somos levados a uma “paralisia analítica”. Traço óbvio desse fenômeno é a extrema dificuldade de separar o relevante do irrelevante no debate público. O último bate-boca da Anitta ou do Felipe Neto, a última frase esquisita de Lula ou Bolsonaro. “O que é golden shower?” foi, até hoje, o tuíte presidencial que mais mobilizou as pessoas, desde o início do governo.

Outra marca do debate atual é a imediatidade. Perdeu-se um traço essencial da democracia pré-digital: o tempo das instituições. Tempo em que se esperava o dia seguinte para responder a um artigo no jornal, ao invés de gastar alguns segundos para despejar até 280 toques, no Twitter, ou devolver um vídeo feito com os nervos à flor da pele, no Instagram. Dias atrás passei os olhos num bate-­boca desses, entre o governador de São Paulo e o ministro da Saúde, sobre o ritmo da vacinação. Eu me lembrei de Daniel Kahneman e seu “sistema 1”, o lado do nosso cérebro que reage instintivamente, meio sem pensar. No fundo é isso. A pauta da democracia deveria ser dada pela reflexão, pelo sistema 2. Deveríamos dar um tempo e pensar sobre o que estamos dizendo, sobre a veracidade de uma informação, sobre a adequação de uma crítica. Mas o fato é que os instintos vão dando o tom da orquestra na democracia.

Ainda outra marca do debate atual é o não esquecimento. Muito já se comparou a internet ao impagável personagem de Borges, Funes, el memorioso. Funes leva uma pancada na cabeça e a partir daí guarda rigorosamente tudo em sua memória. A tal ponto que já não pode mais pensar, porque pensar exige a capacidade de esquecer. Andamos todos como Funes. Há vinte ou trinta anos relembramos aqueles vídeos de Bolsonaro falando em matar “mais uns 30 000”, e Lula dizendo que pelotense é “tudo viado”. No imenso mar do não esquecimento, cuspimos raiva e ressentimento todos os dias. Muita gente diz que isso é bom. Que é preciso saber quem são as pessoas, se pecaram, se merecem ou não o perdão. Cada um pode julgar.

Há um lado positivo nisso tudo. Ainda lembro quando Francis Fukuyama lançou sua tese sobre o “fim da história”, dizendo que finalmente havíamos chegado a certo consenso, no plano das ideias, em torno da democracia liberal como o sistema capaz de expressar o “desejo humano pelo reconhecimento”. O senso de autorrespeito que leva as pessoas a exigir que governos “as tratem como adultos, e não como crianças, e reconheçam sua autonomia como indivíduos livres”. Não é disso, no fundo, que se trata? Não é o desejo de reconhecimento que leva as pessoas a sair às ruas de Santiago e pedir uma nova Constituição? A exigir democracia, na Nicarágua, formar redes e uma infinidade de movimentos, identitários ou conservadores? Elas fazem isso de maneira desordenada e barulhenta? É possível. Alguém tem uma sugestão de como isso poderia ser feito silenciosa e ordenadamente?

Yascha Mounk observou que nosso mundo democrático fez encolher a distância entre “insiders e outsiders”, na política. Isto é tudo muito excitante, mas fez crescer o custo do consenso e da governabilidade das instituições democráticas. Resultado disso tem sido o declínio persistente dos indicadores de confiança dos cidadãos na própria democracia. E aí podemos ter, de fato, um problema.

Não penso que exista uma grande saída para resolver o problema do mal-estar da democracia atual. É preciso “equilibrar o pêndulo”, como um dia me sugeriu Zygmunt Bauman. O pêndulo aqui diz respeito à aceitação do ativismo e da competição de ideias, de um lado, e da estabilidade mínima que o sistema precisa para funcionar, de outro. Não é um equilíbrio fácil. Daí a intuição que me levou a dar aquela resposta arriscada. Nós vivemos um espetacular avanço democrático a partir dos anos 80, e as instituições agora se adaptam ao impacto da revolução tecnológica. Os indivíduos ganharam poder, há muito mais gente no palco, a diversidade de vozes e estilos se tornou para muitos insuportável. Uma opção é imaginar que algum bom ditador (ao estilo do Partido Comunista Chinês, como escutei por estas semanas) possa nos dar uma direção. Não é esse, por óbvio, o caminho. É mergulhados até o pescoço neste mundo nervoso, movido a liberdade, que teremos de conduzir nossa aventura coletiva.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 7 de julho de 2021, edição nº 2745

domingo, 5 de julho de 2020

Neil Howe, o historiador que previu uma grave crise em 2020 e adverte sobre período perigoso da História

Neil Howe, o historiador que previu uma grave crise em 2020 e adverte sobre período perigoso da História
bbc.com

Há mais de 20 anos, Neil Howe previu que os Estados Unidos viveriam uma crise que chegaria a seu clímax no ano de 2020.

Sua previsão não foi feita olhando para uma bola de cristal mas sim com base em uma polêmica teoria que esse historiador, economista e demógrafo desenvolveu na década de 1990 junto a seu colega William Strauss.

Estudando a história dos Estados Unidos a partir de 1584, esses autores encontraram uma série de padrões que lhes permitiram explicar a evolução histórica americana a partir de mudanças geracionais.

O resultado culminou no livro Generations (Gerações), de 1991, que deixou uma herança duradoura em personalidades tão díspares como o ex-presidente americano Bill Clinton e o ex-chefe de estratégia e antigo homem de confiança de Donald Trump, Steve Bannon.

Seis anos depois, Howe e Strauss - que também são responsáveis de haver cunhado o termo "geração milenial" para se referir aos nascidos a partir de 1982 - publicaram outro livro, The Fourth Turning (A Quarta Virada), em que eles expandem suas teorias.

No livro eles defendiam que a história americana (e de outros países desenvolvidos) avança em ciclos de quatro mudanças geracionais recorrentes que levam a uma crise de grande magnitude a cada 80-90 anos. Foi o que aconteceu durante a Guerra Civil, a Grande Depressão e a Segunda Guerra Mundial.

Esses autores disseram literalmente que "o inverno está chegando" e anunciaram uma crise com clímax previsto para 2020.

Howe, que trabalha como chefe de democracia da consultora Hedgeye Risk Management, conversou com a BBC Mundo, o serviço em língua espanhola da BBC, sobre suas previsões no contexto da crise do coronavírus.

Abaixo, segue uma versão resumida da conversa.

BBC - Em seus livros você prevê que em algum momento de 2020 os Estados Unidos teriam uma grande crise comparável com a Independência ou a Guerra Civil. Esta pandemia de coronavírus é parecida com essa crise que você esperava?

Neil Howe - O que sugerimos é que a história, não só dos Estados Unidos como também de muitas outras partes do mundo, sofre o impulso de um ciclo de gerações que se repete. É quase como as estações do ano. Cada período dura aproximadamente uma geração, uns 20, 22 ou 23 anos, mais ou menos.

Cada quatro destes períodos - o que chamamos de Quarta Virada - acontece aproximadamente entre 80 e 90 anos depois do começo dos primeiros três.

Isso realmente se alinha muito bem com as grandes crises cívicas recorrentes na história dos Estados Unidos: a Revolução Gloriosa, a Revolução Americana, a Guerra Civil, a Segunda Guerra Mundial e a Grande Depressão.

E agora estamos aqui de novo.

Na década de 1990, dizíamos que estávamos no que chamamos de Terceira Virada, um período de grande individualismo que chegaria ao seu fim em algum momento da primeira década do século 21.

E que se isso acontecesse até aproximadamente 2010, o novo ciclo provavelmente duraria até 2030 e seria uma era de crise que duraria uma geração, um pouco como o New Deal e a Segunda Guerra Mundial, que realmente começou no final dos anos 1920 indo até o final da década de 1940.

Nós sugerimos que a parte mais agitada desta era começaria na década de 2020. Então, um ponto crítico de inflexão seria o ano de 2020.

Agora, pela nossa forma de ver o futuro, a Quarta Virada provavelmente começou com a grande crise financeira e a Grande Recessão, que começaram em 2008 e 2009.

Então ocorreram grandes mudanças na atitude das pessoas nos Estados Unidos, como o (a ideia de) globalismo, a desigualdade de renda e o populismo, etc.

Acredito que esse é o começo da segunda metade desta era, que é o ano de 2020. E como acontece, a crise do confinamento pela pandemia coincide perfeitamente com o começo do clímax desta era.

Então, 2020 é a segunda década da era da crise, em que ocorre a maior parte da ação.

BBC - Vocês falam de quatro tipos distintos de gerações. Pode explicar essa ideia?

Howe - Há quatro tipos diferentes de gerações, o que chamamos de arquétipos. Um para cada virada ou era, que são esses períodos que duram uns 20 anos.

A PRIMEIRA VIRADA se parece mais com a primavera, e é uma era posterior à crise. Nos Estados Unidos isso aconteceu desde a metade da década de 1940 até o começo dos anos 1960.

Foi um período de instituições fortes e um grande sentido de progresso nacional. Um momento em que o individualismo, os inconformistas e até as minorias étnicas raciais eram deixados de lado. Uma era de grande cultura majoritária. E isso foi típico de uma era posterior à crise.

A SEGUNDA VIRADA é um despertar. É como o verão.

É um momento em que, especialmente pela nova geração nascida depois da última crise, todos querem se desfazer das obrigações sociais e redescobrir a sua individualidade, o próprio sentido de paixão.

São períodos de agitação, muito criativos e de transformação da cultura, nos valores e no religioso, como ocorreu nos anos 60 e 70.

A TERCEIRA VIRADA toma lições do recente despertar sobre a necessidade de se consentir ao indivíduo.

Nos Estados Unidos isso começou no princípio dos anos 80 e durou até o começo dos anos 2000. Começou com o início da revolução Reagan: menos impostos, menos regulação, mais tolerância com a desigualdade maior e com as diferenças entre os indivíduos, e menos ênfase na coesão social.

As décadas da Terceira Virada, com as de 1980, 1920 ou 1850, são períodos de cinismo e maus modos. As pessoas vivem suas vidas da forma que querem, independentemente da comunidade. Todos estamos orgulhosos de nós mesmos como indivíduos, mas estamos muito desanimados com respeito a nossa identidade cívica.

A QUARTA VIRADA é um período de crise política e social, quando nos reinventamos civicamente e renascemos como comunidade nacional.

De alguma forma nefasta, diria que até agora nos Estados Unidos estes sempre foram períodos de guerra total. Todas as guerras totais nos Estados Unidos aconteceram na Quarta Virada. E em cada Quarta Virada tem havido conflitos.

Não prevejo que vá ocorrer uma guerra total, mas acredito sim que a guerra expresse ou reflita parte da urgência comunitária que tipicamente vemos nestas crises: o populismo se fortalece, a comunidade começa a exigir muito mais de seus cidadãos, as liberdades individuais se enfraquecem.

Essas coisas acontecem durante esses períodos que, com certeza, não ocorrem só nos Estados Unidos.

Esse novo crescimento do populismo e do autoritarismo se produz em grande parte do mundo: em partes da Europa e, particularmente, no Leste da Europa; no sul e no leste da Ásia.

Se você olha ao redor, vê que isso é assim. Líderes populistas que apelam para a maioria etnocêntrica de sua comunidade.

É um período perigoso na história. E creio que desde a Segunda Guerra Mundial, grande parte do mundo está em um ciclo generacional muito semelhante.

BBC - Se você fosse aplicar sua tese generacional ao momento atual, o que você diria? O que estamos vendo? E, mais importante ainda, o que acontecerá a partir de agora?

Howe - Não estou no ramo de prever eventos reais. O que faço é prever estados de ânimo sociais, o que torna alguns eventos prováveis.

O que eu prevejo é que na medida em que avancemos em 2020 veremos um aumento nos chamados de ambos partidos (Republicano e Democrata) para que o governo faça mais, em vez de menos.

Basta ver a crise do coronavírus. Agora todos são socialistas. Nunca vi uma transformação igual: no Congresso não sobra um só legislador que seja conservador em termos fiscais. Mesmo no lado republicano, todos estão pedindo mais bilhões.

Provavelmente teremos outra lei de estímulo da economia com mais bilhões em subsídios para negócios, para trabalhadores, para todos.

Já estamos voltando a dar prioridade para a comunidade e, no final, isso vai custar dinheiro real. Isso não virá com uma taxa de juros de 0%. Mais tarde alguém terá que renunciar a alguma coisa para pagar isso.

É isso ou teremos taxas de juros zero para sempre e nossa economia nunca voltará a crescer. E, é claro, essa seria uma situação ainda mais sombria, que provocaria um descontentamento ainda maior.

Então acredito que já estamos lançados [nessa fase]. Já entramos na segunda metade da Quarto Virada com essa recente pandemia e a resposta das políticas públicas a ela.

Também acredito que as eleições de 2020 serão um evento muito disputado e que vão transformar os Estados Unidos, qualquer que seja o lado que ganhe.

Neste momento parece provável que seja o Partido Democrata, mas ainda faltam muitos meses. Há muitas possibilidades.

Se os democratas ganharem e exprimirem sua vantagem, acredito que podemos correr inclusive o risco de uma secessão nos Estados Unidos. Acredito que talvez haverá alguns Estados que não vão seguir (o governo federal).

É claro, isso já aconteceu antes na história do país.

BBC - Você acredita que as coisas podem ir tão longe assim?

Howe -Isso é menos provável se os republicanos ganharem, porque acho que os democratas pensam que controlam a classe que dirige as instituições nacionais.

Sempre pensei que era mais possível se os democratas ganhassem: imagine se há uma regulação ou um novo imposto e vários Estados vermelhos (republicanos) dizem "não vamos pagar por isso, não vamos seguir adiante".

Isso levanta um problema real e é interessante como o governo nacional pode enfrentar esse dilema: se ele não faz essa regra ser cumprida, ele se enfraquece permanentemente. Esse é um problema real. Esse é o momento da verdade.

Podem acontecer várias outras coisas. A geração milênio, que sente que nunca vai alcançar o nível de vida dos seus pais, pode, através do voto, levar a uma mudança completa das nossas instituições econômicas.

Isso, como sempre acontece, vai desatar uma certa oposição.

Este momento se parece muito com a década de 1930: ruptura de alianças internacionais, aumento dos autocratas em todo mundo, auge do populismo e um descontentamento enorme com a situação econômica que conduz até a grandes transformações dos governos, em última instância, redefine completamente a cidadania e as próprias instituições públicas.
(...)

BBC - Você disse que cada idade de ouro começa com uma grande crise. Então suponho que poderíamos ser otimistas...

Howe - As idades douradas quase sempre se referem a uma época depois de uma crise se resolveu com êxito e integrou a sociedade em uma nova dinâmica de comunidade.

Isso geralmente permite que a sociedade lance essa era dourada que frequentemente as sociedades lembram como o momento em que todos esperavam progredir e ter um futuro melhor.

Isso, certamente, não é algo que caracteriza os Estados Unidos hoje.

quinta-feira, 23 de abril de 2020

General Braga Netto

Por Assis Ribeiro

O Brasil acorda para o grande erro que o país cometeu por interromper o projeto PAC. São ações do chamado desenvolvimentismo; é quando o ESTADO ASSUME E BANCA PROJETOS de obras de infraestrutura para alavancar o DESENVOLVIMENTO de  um país.

O Brasil, sempre a reboque dos países desenvolvidos,  só agora resolve reconhecer o acerto do PAC e volta a praticar a política desenvolvimentista do governo Lula; é o retorno da participação ativa do Estado nos projetos de país, ao contrário do pensamento do neoliberalismo.

O Brasil, é preciso pontuar, nunca deixou de necessitar destas medidas pelos fatos de termos uma maioria da população em grave situação de pobreza, uma estrutura desorganizada de país e um desequilíbrio abissal tanto social quanto regional.

Nas reflexões necessárias neste período  devemos lembrar que o projeto desenvolvimentista de João Goulart foi impedido pela classe média brasileira que foi a rua para derrubar o seu governo; que a possibilidade da segunda candidatura à presidência de Juscelino Kubitschek foi bloqueada pela sua cassação pelos militares; o Congresso Nacional caçou Dilma para implantar as medidas neoliberais do plano "Ponte para o Futuro" de Temer. O mais desenvolvimentista dos nossos ex-presidentes foi Getúlio Vargas e conhecemos a perseguição que ele sofreu até o seu suicídio.

A história deste país nós conta, também, que os governos militares que mais tiveram sucessos foram aqueles de aplicaram as teorias desenvolvimentistas. Para se ter uma ideia, em 1966 o governo criou a SUDAM e injetou muito dinheiro para levar o desenvolvimento à região da Amazônia, assim como restruturaram a SUDENE para alavancar a economia do nordeste. Os governos militares investiram em grandes obras de infraestrutura.

Todos os países desenvolvidos usaram a política do desenvolvimentismo para criar uma grande classe média, a única receita conhecida para se tornar um país forte - formar uma nação - e garantir o nascimento de grandes empresas nacionais.

A história existe para nos informar. Este momento crítico demonstra que o pensamento pró "mercado"  é tão extremista ao ponto de ter tornado as sua ideia como a única possível para elevar o crescimento da economia aos países.

A teorias liberais se mostraram ineficazes para serem aplicadas em situações de crises, de resolver dificuldades econômicas e fazer desenvolvimento.

As receitas que os países ricos estão tomando para recuperar suas economias na pós pandemia do coronavirus vão no sentido oposto ao neoliberalismo. Fica demonstrada a farsa da ladainha que defendia o Estado Mínimo. Agora nas dificuldades - o que os países em desenvolvimento e os pobres sempre tiveram - praticam a "mão pesada" para interferir de forma direta em toda a vida econômica dos seus países. Está sendo o Estado Forte o modelo capaz fazer sair de suas crises, o que abre a história para nos lembrarmos que foram as medidas econômicas do desenvolvimentismo, implantado pela não do Estado, que alavancaram o crescimento dos países em seus momentos de "economia" travada.

Lamentavelmente o mercado, com o uso da mídia e das teorias da "escola de Chicago", criou uma ideia hegemônica de uma receita igual para todos não levando em conta as peculiaridades que tanto diferenciam países ricos e pobres ou em desenvolvimento.  Os já desenvolvidos têm suas empresas já fortes e musculosas o que garante evidentes vantagens para vencer concorrências, engolir empresas menores e entrar com facilidade em "Estados Fracos".

Aí está a receita que era tida como comunista aqui no Brasil. Paradoxalmente o mesmo modelo utilizado pelos governos militares de maior sucesso econômico e que agora o general Braga Netto - amordaçando as ideias neoliberais do ministro Paulo Guedes - se projeta para trazer de volta, assim como o mundo está praticando, as fórmulas DESENVOLVIMENTISTAS de ESTADO FORTE.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

O senador-delegado e o desmonte do Estado

Ao Brasil de Fato, o senador e ex-delegado de polícia, Fabiano Contarato, do partido Rede Sustentabilidade, fez um balanço do primeiro ano no parlamento, falou sobre segurança pública, desigualdade, o desmonte do Estado, entre outros assuntos.

Confira trechos da entrevista:

Brasil de Fato: Como o senhor avalia seu primeiro ano de parlamento? Foi um ano de mais vitórias ou derrotas?

Fabiano Contarato: Eu vejo que esta casa de leis é uma casa de vaidades. Eu lembro que, quando eu assumi, no ano passado, em 2 de fevereiro, me assustou quando eu verifiquei que existem elevadores privativos para senador. Eu falava: ‘Meu Deus, mas aqui nós não representamos o povo? Aqui não é casa da população brasileira? O que me faz diferente de qualquer pessoa que aqui vem, no Senado Federal?'. (...)
Aqui, se criminaliza a pobreza. Lá fora, o Estado também criminaliza a pobreza. Eu não canso de falar que eu fui usado pelo Estado por 27 anos para agir de forma contundente contra pobres, afrodescendentes e semianalfabetos. Porque, se você traçar o perfil socioeconômico de quem está preso, é esse o perfil. Os crimes que maior prejuízo ocasionam para a população brasileira são crimes praticados por políticos, crimes praticados por funcionários públicos, crimes de sonegação fiscal, os crimes contra a ordem tributária, contra o sistema financeiro. Se você perguntar, em qualquer sistema prisional, qual é o perfil de pessoas presas, por exemplo, por corrupção ativa, por corrupção passiva, por concussão, por peculato, é nada em relação à grande massa.

Eu não estou fazendo apologia ao crime, mas quando você pratica um furto aqui, você tem uma vítima determinada. Agora, quando o governo do Estado desvia verba da saúde, ele está matando milhões de pessoas. Quando um político desvia verba da educação, ele está matando o sonho de milhões de jovens.

Então, eu cheguei aqui e o primeiro dia já foi uma grande decepção para mim. Após essa primeira semana, eu comecei a presenciar a violação de muitos direitos, vindos, infelizmente, pelo Executivo. E aí a gente tem que ter uma defesa do verdadeiro Estado Democrático de Direito. Porque todo poder emana do povo, e é exercido pelos seus representantes legitimamente eleitos. A espinha dorsal de uma democracia é a Constituição Federal.

O governo baixou oito decretos para mudar o Estatuto do Desarmamento no ano passado, anos depois de nenhuma alteração nessa lei. Além disso, dois projetos de lei com a mesma intenção tramitam no Congresso. Como o senhor vê a tentativa do Executivo de flexibilizar o acesso a armas?
(...)

Eu acho lamentável o governo tentar modificar uma lei federal, que foi o Estatuto do Desarmamento, com decreto. Isso está ferindo a Constituição Federal. Não se combate a violência armando a população, porque você está difundindo a cultura de violência, de fazer justiça pelas próprias mãos. Isso foi banido quando, pela democracia, o estado avocou para si essa persecutio criminis, esse direito de sair atrás de quem cometeu qualquer crime ou contravenção penal.

Você reduz a criminalidade e, consequentemente a violência, dando saúde pública de qualidade, que já é uma garantia constitucional, educação pública de qualidade, gerando emprego e renda, você tendo os bolsões de pobreza, mas com iluminação pública – que, infelizmente, não é todos os bairros que nós temos -, com água, com saneamento básico, com água tratada, incentivando a cultura e o esporte. É um conjunto de fatores, de forma interdisciplinar, que faz com que nós tenhamos uma segurança pública de qualidade.

Mas eu vejo que essa ação foi orquestrada de forma pensada para haver um desmonte em várias áreas. É tudo uma coisa muito bem concatenada, uma coisa orquestrada: arma a população, desmantela o meio ambiente, aumenta o número de queimadas, aumenta o número de desmatamento, dizima a população indígena, os povos originários, autoriza extração de minério em terras indígenas.

Observando todo esse desmonte, qual seria a intenção, na sua visão, do governo? É uma intenção puramente econômica? Por que desmontar tanto?

É uma intenção não inteligente. Por exemplo, na área do meio ambiente, a China já esteve aqui e falou: nós acreditamos em uma economia verde. Não adianta o Brasil autorizar a proliferação de agrotóxicos, não adianta estar desmatando, se o mundo está preocupado. O mundo está preocupado com o que está acontecendo com o Brasil. O próprio agronegócio responsável está preocupado. Não adianta você produzir se você não tem para quem vender.

Isso me assusta. E eu ouso falar uma coisa: hoje, eu vejo que a gente vive uma ditadura em plena democracia. Se você parar para fazer um perfil de quem está ocupando as principais pastas, no próprio Palácio do Planalto, são os militares. Não estou generalizando o que os militares A, B ou C são. Eu acho que a gente tem que valorizar o mérito pela pasta.

A meritocracia não faz parte desse governo. Esse governo, definitivamente, não é um governo dos pobres. Esse governo é um governo dos banqueiros, dos empresários e do fortalecimento dos próprios cofres públicos. Nós temos que lutar para que não haja mais retrocesso.
(...)

Eu fico triste quando as pessoas criticam, por exemplo, o sistema de cotas. O pobre filho de uma doméstica, de um lavador de carro, de um pedreiro, que sonha em fazer um curso de Medicina em uma universidade federal. Porque, se não for o sistema de cotas, ele não entra. A concorrência é desleal. Os filhos de camadas economicamente favorecidas, você põe ele na melhor escola de tempo integral, paga um curso de línguas, põe para fazer um intercâmbio fora. Quando ele vai fazer um Enem, a concorrência é desleal.

É tudo muito maquiavélico no sentido ruim da palavra. Eles [o governo] sucateiam a escola pública, principalmente o ensino fundamental e médio, para não oportunizar. Você vê que o nível das universidades e institutos federais são excelentes. Mas quem entra, se não for o sistema de cotas?

Como pode você ter um governo que chama todos os funcionários públicos de parasita? É parasita aquela auxiliar de enfermagem que está limpando as necessidades daquele seu parente que está lá no hospital público? É parasita o policial que está botando em risco a sua vida? Chamar de parasita aquele professor que vai dar formação para o seu filho?

Quem é parasita nessa relação? Parasita é o governo, parasita são os banqueiros, parasita são os empresários. Esses são os parasitas.

Vivemos em um de extremismos políticos. Como navegar entre os lados?

Eu acho que quem perde é a população, enfraquece a política. O extremo é muito ruim. Nós temos que ter o bom senso, o equilíbrio, a serenidade. O que vier de coisa boa desse governo, vai ter em mim um aliado, não tenha dúvidas. Eu fico triste quando falam que você é de esquerda ou de direita. Eu não sou de nada disso. Eu fui eleito para defender a Constituição Federal, para defender os direitos individuais, que estão no artigo 5º, os direitos sociais e os tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário. Eu fui eleito para fiscalizar o Executivo. Não é questão de direita e esquerda.

Nós temos que ter uma forma centrada, coerente. Às vezes o bom é excelente. Eu não posso ter o excelente, vou me contentar com o bom. Porque, se eu ficar no extremismo, não vou ter nem o excelente e nem nada.

Eu amo ser delegado e amo ser professor. Eu estou como senador. Isso tudo passa. E aí me vem à mente aquilo que Martin Luther King diz, que o que mais assusta não é a ousadia dos ruins, mas a omissão dos bons.

Nós temos muitas pessoas boas no Brasil. Mas nós não podemos ser omissos. Se eu puder falar para todas as pessoas se filiarem a um partido político, a movimentos sociais, nas comunidades de base, nas pastorais de suas igrejas, independentemente de religião, ser mais participativo, o homem é um ser social. É isso que eu clamo. Quem sabe um dia nós teremos um verdadeiro Estado Democrático de Direito.