domingo, 29 de janeiro de 2023

O futuro chegou depressa

 O futuro chegou depressa

A convivência democrática vai ter de viver em paralelo com uma pulsão antidemocrática sob a forma de um golpe de Estado continuado.

Dificilmente se encontrará na política internacional um começo tão turbulento de um mandato democrático como o que caracterizou o do presidente Lula. A democracia esteve por um fio e foi salva (por agora) devido a uma combinação contingente de fatores excepcionais: o talento de estadista do presidente, a atuação certa no momento certo de um ministro no lugar certo, Flávio Dino, logo secundado pelo apoio ativo do STF. As instituições especificamente encarregadas de defender a paz e a ordem pública estiveram ausentes, e algumas delas foram mesmo coniventes com a arruaça depredadora de bens públicos. 

Quando uma democracia prevalece nestas condições dá simultaneamente uma afirmação de força e de fraqueza. Mostra que tem mais ânimo para sobreviver do que para florescer. A verdade é que, a prazo, só sobreviverá se florescer e para isso são necessárias políticas com lógicas diferentes, suscetíveis de criarem conflitos entre si. E tudo tem de ser feito sob pressão. Ou seja, o futuro chegou depressa e com pressa.

O Brasil não volta a ser o que era antes de Bolsonaro, pelo menos durante alguns anos.

O Brasil tinha duas feridas históricas mal curadas: o colonialismo português e a ditadura. 

A ferida do colonialismo estava mal curada porque nem a questão da terra nem a do racismo antinegro, anti-indígena e anticigano (as duas heranças malditas) foram solucionadas. A última só com o primeiro governo de Lula começou a ser enfrentada (ações afirmativas, etc). 

A ferida da ditadura estava mal curada devido ao pacto com os militares antidemocráticos na transição democrática de que resultou a não punição dos crimes cometidos pelos militares. 

Estas duas feridas explodiram com toda a purulência na figura de Bolsonaro. O pus misturou-se no sangue das relações sociais por via das redes sociais e aí vai ficar por muito tempo por ação de um lúmpen-capitalismo legal e ilegal, racial e sexista, que persiste na base da economia, uma base ressentida em relação ao topo da pirâmide, o capital financeiro, devido à usura deste. 

Esta ferida mal curada e agora mais exposta vai envenenar toda política democrática nos próximos anos. 

A convivência democrática vai ter de viver em paralelo com uma pulsão antidemocrática sob a forma de um golpe de Estado continuado, ora dormente ora ativo. Assim será até 2024, data das eleições norte-americanas, devido ao pacto de sangue entre a extrema-direita brasileira e a norte-americana.

A tentativa de golpe de 8 de janeiro alterou profundamente as prioridades do presidente Lula. Dado o agravamento da crise social, a agenda de Lula estava destinada a privilegiar a área social. De repente, a política de segurança impôs-se com total urgência.

Prevejo que ela vá continuar a ocupar a atenção do Presidente durante todo o tempo em que o subterrâneo golpista mostrar ter aliados nas Forças Armadas, nas forças de segurança e no capital antiamazônico. 
(...)

Trecho de Artigo de Boaventura de Sousa Santos 

nasceu em Coimbra, em 1940. É doutor em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale (1973), além de professor catedrático jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e distinguished legal scholar da Universidade de Wisconsin-Madison. Foi também global legal scholar da Universidade de Warwick e professor visitante do Birkbeck College da Universidade de Londres.

Matéria do site Boitempo

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