segunda-feira, 27 de maio de 2019

Os ricos doam pouco, Revista Veja

Quinto dos sete filhos de Olavo Setubal, um dos fundadores do Banco Itaú, José Luiz Egydio Setúbal, de 62 anos, fugiu do curso natural de sua família e não se tornou banqueiro. Graduou-se em pediatria e, embora seja um dos acionistas da instituição financeira, nunca se envolveu no dia a dia da empresa. Com fortuna particular estimada em 1 bilhão de reais, ele já doou mais de 20% de seu patrimônio em vida. Além da distribuição de dinheiro a museus, igrejas e escolas, sua maior área de atuação é a infância. Ele mantém um hospital filantrópico cujo caráter é patrocinar pesquisas e ações voltadas para a primeira infância. Discreto, de fala pausada e com nove stents no coração, lançou um programa para que empresários atuem na filantropia. Por sua experiência, atesta: o brasileiro rico doa muito pouco. Setúbal, que fez do terceiro setor sua causa de vida, dispensa motorista e seguranças.

Bilionários franceses doaram dinheiro para reconstruir a Catedral de Notre-­Dame, mas não foi visto algo similar no caso do Museu Nacional, no Rio, destruído por um incêndio em 2018. O brasileiro rico doa pouco? São comparações diferentes. A Notre-Dame, um dos monumentos mais visitados do mundo, é um símbolo espiritual e, por isso, causa comoção maior. Quantas pessoas foram ao Museu Nacional? Poucas, comparado às que a igreja de Paris recebeu. Isso posto, sim, o brasileiro doa pouco. Já doou menos, mas muita coisa precisa ser melhorada. Um estudo do Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social mostrou que em 2015 os brasileiros doaram 13,7 bilhões de reais. Detalhe: proporcionalmente, o rico doa menos que o pobre. O Nordeste foi a região com maior concentração das doações. Quem tem menor poder aquisitivo doa mais. Há alguns anos, eu e o empresário Elie Horn (fundador da construtora Cyrela) fizemos uma série de reuniões com pessoas de alto poder aquisitivo para que assinassem um manifesto, igual ao do The Giving Pledge, fundado por Bill Gates e Warren Buf­fett, como forma de incentivá-­las a doar 20% de sua fortuna.
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Afinal, o que é a filantropia? Há quem não goste da palavra filantropia por associá-la ao assistencialismo. Trata-se de um equívoco. Filantropia significa amor ao ser humano, à humanidade. Esse amor vai além da caridade, embora tenha começado com ela, na Idade Média, pelo cristianismo. Hoje, a pergunta que fazemos é: “Onde investir dinheiro e tempo de forma a obter um maior impacto social?”. É quase uma visão utilitarista do recurso a ser empregado. Muitos avaliam aplicar onde há mais necessidade. A Fundação Bill e Melinda Gates investe na África para solucionar a questão da malária. Querem achar a vacina para essa doença, o que salvaria a vida de milhões de pessoas. Agora, e quem vive na África, no mesmo contexto social, mas não sofre de malária? Uma única entidade não consegue abarcar tudo, mas o engajamento da sociedade civil transforma como um todo. Um bom cidadão é aquele que cuida do seu entorno.

Como o senhor avalia o assistencialismo? Apesar de eu não fazer uma filantropia assistencialista, vejo mérito. O Brasil é tão desigual que há pessoas passando fome; então, se não se der comida a essas pessoas, elas podem morrer. O assistencialismo é necessário para solucionar um problema imediato. Você pode ensinar a pescar, mas, enquanto a pessoa não aprende, precisa dar o peixe. O Bolsa Família é importante, mas precisa ter estratégia de saída. O programa não é filantropia, mas ação de governo. O cobertor é muito curto no Brasil, o governo é incapaz de resolver tudo. A sociedade precisa se organizar.

Qual é a diferença entre a filantropia no Brasil e a praticada nos Estados Unidos? Temos um estilo parecido com o da Europa: pensamos que o Estado deve prover tudo. Nos Estados Unidos, a colonização predominante foi protestante e prega que aquilo que recebemos se dá em função de méritos, sendo fundamental compartilhar com a comunidade. O católico sente culpa por ser rico. Também há o caráter histórico. Na Europa sempre existiu guerra entre nações, que foram reconstruídas pelos estados. Nos Estados Unidos, as guerras se deram de forma interna, o que fez com que as comunidades precisassem ser fortes. Lá, existe uma enormidade de fundações voltadas para a escola, a igreja, o bairro. Elas nascem com a ideia de retribuir e colaborar com o entorno. Já na Europa, as organizações filantrópicas operam em torno de causas, como o racismo.

Como avalia o imposto sobre herança dos Estados Unidos? Vejo como uma forma de o governo direcionar um dinheiro considerável para a criação de fundações. Ao colocar uma taxa de 40%, elevada, para o sujeito adquirir o patrimônio de seus pais, o Estado indica aos interessados que eles devem se movimentar. É preciso criar a fundação ainda em vida para não pagar nenhuma taxa sobre a herança. Não adianta os filhos terem essa ideia após a morte dos pais. No Brasil, as pessoas se queixam de que se paga imposto para doar dinheiro. É verdade até certo ponto. Cada estado tem seu imposto sobre transmissão causa mortis e doação de quaisquer bens ou direitos. No caso de São Paulo, é de 4%. Muito pouco se comparado ao dos Estados Unidos. Quando uma instituição é isenta de imposto, caso das Santas Casas, não se paga imposto. Mas há muitas entidades que pagam imposto ao receber doação, o que vejo como uma deturpação da lei.
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O senhor tem fortuna particular avaliada em 1 bilhão de reais. Chegou a doar 20%, como pediu aos amigos abonados? (Longo silêncio) Doei mais. Há dez anos, comprei o Hospital Sabará, em São Paulo, voltado para o público infantil. Existem duas espécies de fundação: a que não tem recurso próprio e, portanto, precisa de doação, e a que tem recursos próprios, meu caso. Todo o dinheiro gerado pelo hospital é usado para a filantropia. O orçamento deste ano será de 360 milhões de reais. A fundação tem um fundo de 150 milhões, que eu coloquei lá trás. Embora realize doações a igrejas, museus, bolsa de estudos de alunos de medicina, o meu foco é em pesquisas, de forma a embasar novas políticas públicas para a saúde infantil. Neste momento, em parceria com as universidades Harvard, Maryland e Tulane, estamos fazendo uma pesquisa de cinco anos com crianças institucionalizadas do Brasil, ou seja, que vivem em abrigos. Esse trabalho replica um estudo feito na Romênia pelo pediatra Charles Nelson, nos anos 90. O estudo revelou que as crianças que viviam em creches, em tese perfeitas em termos de equipamentos, esqueceram do carinho. Ninguém pegava um bebê no colo. Criou­-se uma geração de malucos.

Artigo completo publicado em VEJA de 29 de maio de 2019, edição nº 2636

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