terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Razão e contracultura nos artigos de Luiz Carlos Maciel

Razão e contracultura nos artigos de Luiz Carlos Maciel em O Pasquim: 1969-1972

O presente artigo pretende discutir a concepção de racionalidade na contracultura difundida por Luiz Carlos Maciel, entre os anos de 1969 e 1972, no jornal O Pasquim.

(...) O Pasquim destacou-se, em um período de forte repressão à imprensa, pela regularidade de suas edições e por suas grandes tiragens, alcançando, desde o número trinta, cerca de duzentos mil exemplares semanais, desencadeando mudanças comportamentais no país, principalmente entre os jovens.

Entre os articulistas do jornal do primeiro período (1969-1972), coube a Luiz Carlos Maciel o principal papel como difusor da contracultura. Seja por intermédio de artigos editados em colunas marcadas pela heterogeneidade temática, como As dicas, Dicas de Mulher e Cartas, no ano de 1969, seja, principalmente, na sua coluna Underground, introduzida a partir de 1970 e da qual foi o responsável até a sua saída do jornal, em 1972, Luiz Carlos Maciel divulgou e discutiu autores e concepções estéticas, intelectuais e religiosas do movimento contracultural internacional.

O discurso de Luiz Carlos Maciel em O Pasquim se integra à corrente contracultural oriunda dos EUA e da Europa. Dentre suas manifestações, destaca-se a crítica ao racionalismo ocidental.

Para Arthur Herman, essa crítica, característica do movimento contracultural, é o desdobramento contemporâneo de teorias inventadas no século XIX e desenvolvidas no XX a respeito da decadência da civilização ocidental. Contrária à ideia de progresso científico, essa ideologia estaria presente em diversas correntes filosóficas – inclusive a Escola de Frankfurt, cuja ascendência sobre o movimento contracultural foi enorme, transformando-se em uma profecia autorrealizadora.

Quando se fala em “contracultura”, é preciso ter claro que se trata de um fenômeno complexo – isto é, fragmentário e contraditório –, não redutível a uma de suas expressões. Insinuar, por exemplo, que ele foi o desdobramento de uma única ideologia, implica negar as contradições ideológicas internas ao fenômeno, na tentativa de simplificá-lo. Por outro lado, explicá-lo como o reflexo de um conjunto de ideias – pessimistas ou não – sem considerar os aspectos socioeconômicos e políticos subjacentes, corresponde a uma interpretação idealista da História.
 
A fim de não cair nessa armadilha, a análise a ser feita a seguir se define, a priori, enquanto parcial e meramente ilustrativa de um fenômeno que, por sua amplitude, merece um estudo em profundidade.

Feitas estas ressalvas, serão aventadas algumas hipóteses a respeito da questão, as quais serão analisadas por intermédio de dois artigos de Luiz Carlos Maciel publicados em O Pasquim.
Nos dois trechos de artigos selecionados, fica bem evidente a sua crítica às ideias predominantes de razão e de ciência. Comentando o pensamento de Norman Mailer, em 1969 Maciel afirma que:

Ele não se limita a raciocinar dentro das estruturas estabelecidas da razão analítica ou da razão dialética. O pensamento, para ele, é uma exploração nos territórios ocultos da mente, uma viagem ao desconhecido, uma aventura – se quiserem. Ele trabalha com as sugestões de sua intuição, com associações das imagens que a realidade lhe fornece. Um irracionalismo? Sim, ainda se quiserem. Por que não? Na medida em que a natureza vê seus segredos ameaçados pelas conquistas da razão humana, ela também mobiliza cada vez mais os seus mistérios. Os métodos de Mailer são uma resposta a esse desafio. No seu pensamento, os conceitos e as categorias cedem lugar ao que ele chama de “equações poéticas”, ou seja, metáforas – no sentido mais agudo do termo. (grifo meu)


Em outro artigo, de 1972, é a ciência o objeto de sua crítica:

A crítica radical do conhecimento científico feita por Ernesto Bono em “É a ciência uma nova religião?” depende de uma libertação efetiva do prisma dualista, pois se fundamenta nessa experiência. Não é um livro que apresente um sistema, uma teoria ou, sequer, uma ideia. É um livro que visa à compreensão íntima do leitor, usando como caminho para isso a destruição do mito mais poderoso e enganador de nossa civilização: a ciência com suas pretensões a conclusões objetivas, universais etc, embora ela própria esteja continuamente desmentindo essas conclusões. Para as pessoas familiarizadas com a visão monista, essa libertação, essa experiência, pode ser indicada por vários nomes: “... aquilo que é”, ou seja, “Eu sou” de certa passagem da bíblia, ou o TAO de Lao-Tse, ou então o Saha-Nirvikalpa-Samadhi de Krishna e dos yogues, ou ainda o Nirvana de Buda, ou o nosso conhecido e nunca compreendido “Reino de Deus” de Cristo (...) A compreensão se dá de dentro para fora e o monismo, aqui, consiste fundamentalmente no reconhecimento de que tudo, o que está dentro de nós e o que está fora de nós, é uma coisa só. O que julgamos ver na realidade externa, como separado de nós, é apenas uma projeção mental deformada pelo prisma do ego.(...) Se a realidade física existe independentemente de nossas mentes, quem nos dá testemunho dela, além de uma outra mente qualquer? Se acreditamos que, contudo, existe, isso é uma questão de fé, fé cega e irracional. (grifos meus)


As críticas de Maciel, tanto ao racionalismo quanto à ciência, se integra à corrente intelectual, sobretudo frankfurtiana, de crítica ao modelo de progresso ocidental. Progresso, aqui, é entendido enquanto domínio da natureza pela razão. Em outras palavras, implica o desenvolvimento científico e tecnológico e, na esfera das relações humanas, o aperfeiçoamento das instituições – educativas, políticas, jurídicas etc. – com o consequente desenvolvimento da civilização. Ou seja, existe apenas um tipo de progresso: o controle cada vez maior da humanidade sobre as forças da natureza.

Nota-se, no primeiro artigo, quando Maciel afirma que “na medida em que a natureza vê seus segredos ameaçados pelas conquistas da razão humana, ela também mobiliza cada vez mais os seus mistérios”, uma preocupação que inverte as posições assumidas pela Ideologia do Progresso em relação à natureza. O importante, dentro da concepção contracultural, não é o seu domínio. Muito pelo contrário, é preciso que o homem se integre a ela, invertendo, no parecer de Arthur Herman, o processo civilizatório. Para ele, esse tipo de posicionamento é a manifestação de um legado cultural, desenvolvido principalmente a partir do século XIX por diversos autores, que se baseia na “ideia de decadência na história ocidental”. Correspondendo a uma visão pessimista da civilização, ao contrário dos Ideólogos do Progresso, que veem o domínio da natureza como um bem, os Ideólogos da Decadência o veem enquanto um mal. Se, para os primeiros, o progresso da civilização corresponde a um incremento da felicidade humana, para os outros ocorre o inverso: a infelicidade é desencadeada justamente devido ao progresso civilizatório.

Segundo o autor, portanto, a crítica ao racionalismo e ao progresso da Sociedade Ocidental, sob esse enfoque, corresponde a uma visão decadentista.

No segundo artigo, partindo da obra de Ernesto Bono “É a ciência uma nova religião?”, Maciel conclui que ela se constitui enquanto o “mito mais poderoso e enganador de nossa civilização”. O título do artigo é esclarecedor: “O dogma científico”. Para Maciel, a ciência moderna imita a religião institucionalizada ao estabelecer certas “verdades” como inquestionáveis. O problema, segundo ele, é que “a ciência, com suas pretensões a conclusões objetivas, universais etc. [na verdade está] continuamente desmentindo essas conclusões”.

Sendo os postulados científicos desencadeados por uma visão dualista – segundo a qual a observação se estabelece a partir de um ‘sujeito’ separado do objeto observado, constituindo-se, assim, a objetividade –, para Maciel tais postulados são intrinsecamente questionáveis, uma vez que “se a realidade física existe independentemente de nossas mentes, quem nos dá testemunho dela, além de uma outra mente qualquer? Se acreditamos que, contudo, existe, isso é uma questão de fé, fé cega e irracional.”

É preciso, aqui, sublinhar que a crítica se refere a um modelo específico de racionalidade: a ocidental. Tanto no primeiro quanto no segundo artigo essa crítica é operacionalizada no sentido de oferecer um modelo alternativo de racionalidade. Ou seja, é o “prisma dualista”, base da “razão analítica” e da ”razão dialética”, o objeto de sua crítica. No seu lugar, Maciel propõe uma outra concepção de conhecimento, denominada “monista”.

Verifica-se, assim, que sua crítica à racionalidade ocidental é debitária de posições filosóficas relativistas. Mas não só. Seu discurso sintetiza outro elemento desencadeador da contracultura, qual seja, a religiosidade, sobretudo a de fundo oriental. 

Não se trata, aqui, de uma religião específica. Antes, corresponde a uma concepção religiosa – designada monista – destacada de diversas tradições (judaico-cristã, hindu, taoista, budista), que dará ensejo à criação de um novo movimento: a Nova Era.

Segundo Ricardo M. Gonçalves, essa concepção, reduzida a seus elementos básicos, consiste no seguinte:

1) Há um Real, um Absoluto inacessível ao pensamento e à linguagem, que está em todas as coisas e também dentro delas. (...) 2) Ele é o Uno, a Totalidade da Existência, o Absoluto, mas pode-se revelar a si mesmo através da multiplicidade dos fenômenos relativos, contingentes e transitórios. (...) 3) Degradado à esfera do relativo, o Absoluto revela-se como um ego, preocupado em se autoafirmar através da realização de pequenos desejos insignificantes, esquecido de sua identidade original. Urge que, através de um processo de evolução, ele recupere a consciência da mesma, que tome consciência de que ele é o próprio Absoluto.


Originária do Hinduísmo e do Budismo, ela se afirma, no discurso de Maciel, enquanto portadora de uma racionalidade específica, diametralmente oposta à racionalidade ocidental. Enquanto a racionalidade ocidental, fundada no dualismo, desencadeou um processo de dominação sobre a natureza, cujo objetivo é a ascendência do Homem sobre o reino da Necessidade, a racionalidade proposta pela contracultura (monista) inverte o processo: a Liberdade resulta da própria (re)integração do Homem à sua essência, ou seja, à Unidade original. Os reinos da Necessidade e da Liberdade são, deste modo, harmonizados num todo maior: o “Absoluto”.

Para Maciel, a experiência religiosa não é concebida como irracional. Pelo contrário, ela é portadora de uma racionalidade mais profunda que a predominante (ocidental) e capaz, deste modo, de propiciar ao ser humano a compreensão de sua essência, ou seja, do próprio Universo, pois ambos, “o que está dentro de nós e o que está fora de nós, é uma coisa só.”

A contracultura, entendida enquanto movimento de rebeldia em relação aos ícones socioculturais do Ocidente teve, na crítica à racionalidade predominante, uma de suas principais manifestações. Luiz Carlos Maciel – introdutor e principal difusor da contracultura no Brasil, participou, sobretudo com seus artigos em O Pasquim, dessa crítica que, na verdade, fazia parte de um questionamento mais amplo, ao próprio Sistema, ao denominado “Establishment”.

Ainda que se possa definir, pelos padrões epistemológicos de conhecimento vigentes, sua postura como contrária à racionalidade, seu discurso se afirma no sentido de propor uma racionalidade alternativa, baseada em alguns pressupostos, todos eles alinhavados em torno de um conceito que, posteriormente, seria batizado de holístico: a ideia segundo a qual, em princípio, a separação entre sujeito e objeto do conhecimento é arbitrária, podendo ser superada. A “nova” epistemologia, baseada no monismo, coadunava-se com as formas de comportamento do movimento contracultural como um todo, baseadas na integração do ser humano com a natureza, do indivíduo com o grupo, da mente com o universo.

Muito embora o movimento contracultural, justamente por seu caráter anárquico, tenha se esgotado rapidamente enquanto modelo alternativo de sociedade e de civilização, é inquestionável a sua influência na formação de toda uma geração.

Marcos Alexandre Capellari
Doutorando em História Social (FFLCH – USP)

Artigo completo:
Razão e contracultura nos artigos de Luiz Carlos Maciel”

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