Razão e contracultura nos artigos de Luiz Carlos Maciel em O Pasquim:
1969-1972
O presente artigo pretende discutir a concepção de racionalidade na
contracultura difundida por Luiz Carlos Maciel, entre os anos de 1969 e 1972,
no jornal O Pasquim.
(...) O Pasquim destacou-se, em um período de forte repressão à
imprensa, pela regularidade de suas edições e por suas grandes tiragens,
alcançando, desde o número trinta, cerca de duzentos mil exemplares semanais,
desencadeando mudanças comportamentais no país, principalmente entre os jovens.
Entre os articulistas do jornal do primeiro período (1969-1972), coube a
Luiz Carlos Maciel o principal papel como difusor da contracultura. Seja por
intermédio de artigos editados em colunas marcadas pela heterogeneidade
temática, como As dicas, Dicas de Mulher e Cartas, no ano
de 1969, seja, principalmente, na sua coluna Underground, introduzida a
partir de 1970 e da qual foi o responsável até a sua saída do jornal, em 1972,
Luiz Carlos Maciel divulgou e discutiu autores e concepções estéticas,
intelectuais e religiosas do movimento contracultural internacional.
O discurso de Luiz Carlos Maciel em O Pasquim se integra à corrente
contracultural oriunda dos EUA e da Europa. Dentre suas manifestações,
destaca-se a crítica ao racionalismo ocidental.
Para Arthur Herman, essa crítica, característica do movimento
contracultural, é o desdobramento contemporâneo de teorias inventadas no século
XIX e desenvolvidas no XX a respeito da decadência da civilização ocidental.
Contrária à ideia de progresso científico, essa ideologia estaria presente em
diversas correntes filosóficas – inclusive a Escola de Frankfurt, cuja
ascendência sobre o movimento contracultural foi enorme, transformando-se em
uma profecia autorrealizadora.
Quando se fala em “contracultura”, é preciso ter claro que se trata de um
fenômeno complexo – isto é, fragmentário e contraditório –, não redutível a uma
de suas expressões. Insinuar, por exemplo, que ele foi o desdobramento de uma
única ideologia, implica negar as contradições ideológicas internas ao
fenômeno, na tentativa de simplificá-lo. Por outro lado, explicá-lo como o
reflexo de um conjunto de ideias – pessimistas ou não – sem considerar os
aspectos socioeconômicos e políticos subjacentes, corresponde a uma
interpretação idealista da História.
A fim de não cair nessa armadilha, a análise a ser feita a seguir se define,
a priori, enquanto parcial e meramente ilustrativa de um fenômeno que,
por sua amplitude, merece um estudo em profundidade.
Feitas estas ressalvas, serão aventadas algumas hipóteses a respeito da
questão, as quais serão analisadas por intermédio de dois artigos de Luiz
Carlos Maciel publicados em O Pasquim.
Nos dois trechos de artigos selecionados, fica bem evidente a sua crítica às
ideias predominantes de razão e de ciência. Comentando o pensamento de Norman
Mailer, em 1969 Maciel afirma que:
Ele não se limita a raciocinar dentro das estruturas estabelecidas da
razão analítica ou da razão dialética. O pensamento, para ele, é uma exploração
nos territórios ocultos da mente, uma viagem ao desconhecido, uma aventura – se
quiserem. Ele trabalha com as sugestões de sua intuição, com associações das
imagens que a realidade lhe fornece. Um irracionalismo? Sim, ainda se
quiserem. Por que não? Na medida em que a natureza vê seus segredos ameaçados
pelas conquistas da razão humana, ela também mobiliza cada vez mais os seus
mistérios. Os métodos de Mailer são uma resposta a esse desafio. No seu
pensamento, os conceitos e as categorias cedem lugar ao que ele chama de
“equações poéticas”, ou seja, metáforas – no sentido mais agudo do termo. (grifo
meu)
Em outro artigo, de 1972, é a ciência o objeto de sua crítica:
A crítica radical do conhecimento científico feita por Ernesto Bono em “É
a ciência uma nova religião?” depende de uma libertação efetiva do prisma
dualista, pois se fundamenta nessa experiência. Não é um livro que apresente um
sistema, uma teoria ou, sequer, uma ideia. É um livro que visa à compreensão
íntima do leitor, usando como caminho para isso a destruição do mito mais
poderoso e enganador de nossa civilização: a ciência com suas pretensões a
conclusões objetivas, universais etc, embora ela própria esteja continuamente
desmentindo essas conclusões. Para as pessoas familiarizadas com a visão
monista, essa libertação, essa experiência, pode ser indicada por vários nomes:
“... aquilo que é”, ou seja, “Eu sou” de certa passagem da bíblia, ou o TAO de
Lao-Tse, ou então o Saha-Nirvikalpa-Samadhi de Krishna e dos yogues, ou ainda o
Nirvana de Buda, ou o nosso conhecido e nunca compreendido “Reino de Deus” de
Cristo (...) A compreensão se dá de dentro para fora e o monismo, aqui,
consiste fundamentalmente no reconhecimento de que tudo, o que está dentro de
nós e o que está fora de nós, é uma coisa só. O que julgamos ver na realidade
externa, como separado de nós, é apenas uma projeção mental deformada pelo
prisma do ego.(...) Se a realidade física existe independentemente de nossas
mentes, quem nos dá testemunho dela, além de uma outra mente qualquer? Se
acreditamos que, contudo, existe, isso é uma questão de fé, fé cega e
irracional. (grifos meus)
As críticas de Maciel, tanto ao racionalismo quanto à ciência, se integra à
corrente intelectual, sobretudo frankfurtiana, de crítica ao modelo de
progresso ocidental. Progresso, aqui, é entendido enquanto domínio da natureza
pela razão. Em outras palavras, implica o desenvolvimento científico e
tecnológico e, na esfera das relações humanas, o aperfeiçoamento das
instituições – educativas, políticas, jurídicas etc. – com o consequente
desenvolvimento da civilização. Ou seja, existe apenas um tipo de progresso: o
controle cada vez maior da humanidade sobre as forças da natureza.
Nota-se, no primeiro artigo, quando Maciel afirma que “na medida em que a
natureza vê seus segredos ameaçados pelas conquistas da razão humana, ela
também mobiliza cada vez mais os seus mistérios”, uma preocupação que
inverte as posições assumidas pela Ideologia do Progresso em relação à
natureza. O importante, dentro da concepção contracultural, não é o seu
domínio. Muito pelo contrário, é preciso que o homem se integre a ela,
invertendo, no parecer de Arthur Herman, o processo civilizatório. Para ele,
esse tipo de posicionamento é a manifestação de um legado cultural,
desenvolvido principalmente a partir do século XIX por diversos autores, que se
baseia na “ideia de decadência na história ocidental”. Correspondendo a uma
visão pessimista da civilização, ao contrário dos Ideólogos do Progresso, que
veem o domínio da natureza como um bem, os Ideólogos da Decadência o veem
enquanto um mal. Se, para os primeiros, o progresso da civilização corresponde
a um incremento da felicidade humana, para os outros ocorre o inverso: a
infelicidade é desencadeada justamente devido ao progresso civilizatório.
Segundo o autor, portanto, a crítica ao racionalismo e ao progresso da
Sociedade Ocidental, sob esse enfoque, corresponde a uma visão decadentista.
No segundo artigo, partindo da obra de Ernesto Bono “É a ciência uma nova
religião?”, Maciel conclui que ela se constitui enquanto o “mito mais poderoso
e enganador de nossa civilização”. O título do artigo é esclarecedor: “O
dogma científico”. Para Maciel, a ciência moderna imita a religião
institucionalizada ao estabelecer certas “verdades” como inquestionáveis. O
problema, segundo ele, é que “a ciência, com suas pretensões a conclusões
objetivas, universais etc. [na verdade está] continuamente desmentindo essas conclusões”.
Sendo os postulados científicos desencadeados por uma visão dualista –
segundo a qual a observação se estabelece a partir de um ‘sujeito’ separado do
objeto observado, constituindo-se, assim, a objetividade –, para Maciel tais
postulados são intrinsecamente questionáveis, uma vez que “se a realidade
física existe independentemente de nossas mentes, quem nos dá testemunho dela,
além de uma outra mente qualquer? Se acreditamos que, contudo, existe, isso é
uma questão de fé, fé cega e irracional.”
É preciso, aqui, sublinhar que a crítica se refere a um modelo específico de
racionalidade: a ocidental. Tanto no primeiro quanto no segundo artigo essa
crítica é operacionalizada no sentido de oferecer um modelo alternativo de
racionalidade. Ou seja, é o “prisma dualista”, base da “razão analítica”
e da ”razão dialética”, o objeto de sua crítica. No seu lugar, Maciel propõe
uma outra concepção de conhecimento, denominada “monista”.
Verifica-se, assim, que sua crítica à racionalidade ocidental é debitária de
posições filosóficas relativistas. Mas não só. Seu discurso sintetiza outro
elemento desencadeador da contracultura, qual seja, a religiosidade, sobretudo
a de fundo oriental.
Não se trata, aqui, de uma religião específica. Antes, corresponde a uma
concepção religiosa – designada monista – destacada de diversas tradições
(judaico-cristã, hindu, taoista, budista), que dará ensejo à criação de um novo
movimento: a Nova Era.
Segundo Ricardo M. Gonçalves, essa concepção, reduzida a seus elementos
básicos, consiste no seguinte:
1) Há um Real, um Absoluto inacessível ao pensamento e à linguagem, que
está em todas as coisas e também dentro delas. (...) 2) Ele é o Uno, a
Totalidade da Existência, o Absoluto, mas pode-se revelar a si mesmo através da
multiplicidade dos fenômenos relativos, contingentes e transitórios. (...) 3)
Degradado à esfera do relativo, o Absoluto revela-se como um ego, preocupado em
se autoafirmar através da realização de pequenos desejos insignificantes,
esquecido de sua identidade original. Urge que, através de um processo de
evolução, ele recupere a consciência da mesma, que tome consciência de que ele
é o próprio Absoluto.
Originária do Hinduísmo e do Budismo, ela se afirma, no discurso de Maciel,
enquanto portadora de uma racionalidade específica, diametralmente oposta à
racionalidade ocidental. Enquanto a racionalidade ocidental, fundada no
dualismo, desencadeou um processo de dominação sobre a natureza, cujo objetivo
é a ascendência do Homem sobre o reino da Necessidade, a racionalidade proposta
pela contracultura (monista) inverte o processo: a Liberdade resulta da própria
(re)integração do Homem à sua essência, ou seja, à Unidade original. Os reinos
da Necessidade e da Liberdade são, deste modo, harmonizados num todo maior: o
“Absoluto”.
Para Maciel, a experiência religiosa não é concebida como irracional. Pelo
contrário, ela é portadora de uma racionalidade mais profunda que a
predominante (ocidental) e capaz, deste modo, de propiciar ao ser humano a
compreensão de sua essência, ou seja, do próprio Universo, pois ambos, “o que
está dentro de nós e o que está fora de nós, é uma coisa só.”
A contracultura, entendida enquanto movimento de rebeldia em relação aos
ícones socioculturais do Ocidente teve, na crítica à racionalidade
predominante, uma de suas principais manifestações. Luiz Carlos Maciel –
introdutor e principal difusor da contracultura no Brasil, participou,
sobretudo com seus artigos em O Pasquim, dessa crítica que, na verdade,
fazia parte de um questionamento mais amplo, ao próprio Sistema, ao denominado
“Establishment”.
Ainda que se possa definir, pelos padrões epistemológicos de conhecimento
vigentes, sua postura como contrária à racionalidade, seu discurso se afirma no
sentido de propor uma racionalidade alternativa, baseada em alguns
pressupostos, todos eles alinhavados em torno de um conceito que,
posteriormente, seria batizado de holístico: a ideia segundo a qual, em
princípio, a separação entre sujeito e objeto do conhecimento é arbitrária,
podendo ser superada. A “nova” epistemologia, baseada no monismo, coadunava-se
com as formas de comportamento do movimento contracultural como um todo,
baseadas na integração do ser humano com a natureza, do indivíduo com o grupo,
da mente com o universo.
Muito embora o movimento contracultural, justamente por seu caráter
anárquico, tenha se esgotado rapidamente enquanto modelo alternativo de
sociedade e de civilização, é inquestionável a sua influência na formação de
toda uma geração.
Marcos Alexandre Capellari
Doutorando em História Social (FFLCH – USP)
Artigo completo:
“Razão e contracultura nos artigos de Luiz
Carlos Maciel”
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