O que está nascendo nas ruas? Em quatro atos
Por Hânder Leal, no blog Brasil de Fato
Construir um sistema político que transcenda a democracia é o papel
que a história reserva para a esquerda no século XXI. No Brasil, o
arcaísmo de nossas instituições políticas, e aqui incluem-se inclusive
os partidos majoritários, não suportou a pressão das políticas de
inclusão social recentes. E não poderia ter sido diferente. A história é
rica o suficiente para mostrar-nos que quando o povo começa a exigir
seus direitos historicamente reprimidos, não há Estado democrático de
direito que dê conta do recado. Por isso está todo mundo com o rabo
preso: os partidos, porque começaram a perceber a necessidade de
reestruturação de suas bases para conseguir liderar uma juventude que se
assume apartidária; os grupos de poder, mais ainda, porque sabem que
aquilo que lhes é mais caro e sagrado, baluarte de seu papel histórico
segregacionista, as instituições políticas, não conseguem conter as
pressões populares sem mostrar o seu lado repressor. Estão todos
perdidos feito bestas, e disparam para todos os lados. Bravejam chavões
às cegas, como as balas de borracha e os rojões de gás com os quais a
polícia nos presenteia nas manifestações. Mais do que isso:
recentemente, os congressistas começaram a aprovar propostas de emenda
constitucional com a mesma velocidade com que costumam trocar de
partido.
Se por um lado isso é bom, por outro, para se
transformar o quadro econômico e político brasileiro, não há que se
mudar os atores do espetáculo; mas sim, o seu roteiro. E só se muda o
roteiro mudando o roteirista. A última vez que o Brasil fez isso foi
quando mesmo? Nas diretas já? No fora Collor? Não.
Obviamente, seria
tolice ignorar a importância histórica de todos os movimentos que
construíram a democracia no Brasil, gerando direitos políticos
elementares para todos os brasileiros. Mas quanto aos direitos
econômicos e sociais? Houve alguma mudança efetiva? Não. E o motivo é
muito simples: não se mudou o roteirista do embuste democrático que
impera no Brasil em nenhuma dessas ocasiões. Enquanto a classe política
continuar pagando o pato sozinha, continuaremos sendo meros fantoches do
capital privado e financeiro, nacional e transnacional. A urbe ainda
não sabe em verdade porque marcha. Espero que descubra logo. Enquanto
isso, marcharemos em círculos.
O fortalecimento da bancada
evangélica e a aprovação recente da tragicômica “cura gay” é um exemplo
do recrudescimento dos grupos que controlam a política brasileira. A
legitimidade e o repentino protagonismo da bancada evangélica
explicam-se não apenas pelas alianças políticas típicas de nosso
presidencialismo de coalizão, mas também pelo crescimento da comunidade
evangélica no Brasil, reflexo da falta de apelo social da anacrônica
igreja católica – se é que existe religião ou instituição religiosa que
não seja anacrônica –, outrora grande aliada do governo e do capital
privado nacional – basta lembrarmos do papel social que essa instituição
desempenhou e desempenha em nossa história até os tempos presentes.
Enganam-se os religiosos que pensam que a igreja é uma instituição que
está do lado do povo.
Em verdade, está do lado do capital e do poder,
como sempre esteve na história mundial. Por favor, não sejamos
hipócritas: ninguém consegue trabalhar 44 horas por semana durante um
mês, recebendo em troca disso apenas um salário mínimo, se não receber
também, em letras garrafais no final do contracheque, a promessa de algo
melhor lhe esperando no reino dos céus.
Mesmo que isso lhe custe metade
do contracheque; não importa. Poucos fatores são mais enriquecedores
para o embuste democrático do que o consumo de massa e o
transcendentalismo religioso.
Pois bem, você a essa altura deve
estar se perguntando: “então quer dizer que eu li tudo isso para o cara
me dizer que devemos superar a democracia, o que vai levar um tempão
para acontecer e que, portanto, as manifestações são apenas um sintoma
de um processo histórico que levará um século para surtir o efeito
desejado pelo povo? E até lá, o que podemos fazer?”. Meus amigos e
amigas, o importante é compreendermos desde já que algo além da
democracia representativa começa a engatinhar pelas ruas brasileiras.
Ainda não tem rosto definido, tampouco sabe falar. Porém, a verdade é
que o Brasil é talvez o único país do mundo que apresenta os requisitos
para a construção de algo além da democracia representativa liberal.
Primeiro: um alto nível de desenvolvimento das instituições democráticas
(dentro das limitações estruturais abordadas no primeiro ato), de modo
que a população não permitiria o ressurgimento de regime ditatorial de
qualquer ordem. Segundo: um grande contingente social que ainda não
atingiu o status de classe média e que começa a desconfiar que não o
atingirá dentro dos limites institucionais corporificados pelo embuste
democrático espetacular, nem pela centro-esquerda e muito menos com o
retorno da direita ao poder. Terceiro: o historicamente malfadado
simulacro de instituições políticas ditas democráticas copiadas de
sociedades com alto nível de industrialização está sendo suficiente para
mostrar que tais instituições apenas perpetuam a condição subordinada
de grande parte do povo brasileiro.
Quarto: um Estado que, até mesmo por
causa de sua inserção internacional subordinada no sistema ocidental de
nações, ostenta na esfera internacional um histórico de pacifismo e
não-intervenção e que, por isso, não toleraria ser alvo de
intervencionismo externo. Vale observar que esses quatro fatores
diferenciam as manifestações brasileiras dos movimentos que eclodiram na
chamada Primavera Árabe.
Por tudo isso, acredito que a
conjuntura atual é favorável à revitalização da esquerda brasileira.
Você conhece o significado da palavra “momentum”? Este é um conceito da
física que designa o impulso gerado pelo movimento de um corpo; impulso
esse que deve ser imediatamente aproveitado enquanto o corpo ainda está
em movimento, antes que sua energia seja dissipada. Esse conceito pode
ser aplicado à conjuntura política brasileira. A conjunção de fatores
apresentada acima é mais do que motivo para que a sociedade civil
brasileira canalize o momentum gerado pelas manifestações para uma
reforma política e econômica de verdade no país.
Por fim, é
óbvio que as manifestações são ideológicas e devem ser partidárias. Não
poderiam deixar de ser. O pragmatismo da classe política em defesa dos
interesses econômicos do mercado também é uma escolha ideológica e
partidária. A falta de investimentos produtivos em ciência, tecnologia e
inovação por parte da iniciativa privada brasileira é uma postura
ideológica. Soldados da cavalaria da brigada militar acossando
manifestantes com baionetas em riste também estão repletos de ideologia.
A cegueira de uma civilização guiada pela obsessão inconsciente à forma
em detrimento do conteúdo e à materialidade em detrimento da
subjetividade também é resultado de uma ideologia dominante. Não existe
defesa desinteressada de causas.
O problema do Brasil é que a
democracia viciou o povo a confiar nas instituições políticas e a
exprimir suas insatisfações de maneira pacífica. Aos brasileiros que se
sentiram inseguros devido ao furor das manifestações recentes e à mídia
reacionária que muito oportunamente aproveita-se do ímpeto das
manifestações para fomentar de forma magistral o espírito de vigilância
mútua na sociedade civil brasileira, utilizando para isso a classe média
como massa de manobra, vale lembrar-lhes: o conflito é a morfologia do
espaço urbano em uma sociedade desigual. O verdadeiro vandalismo está na
expropriação diária e silenciosa da existência, do tempo e do trabalho.
Aos manifestantes e à esquerda, vale lembrar também: ignorar isso é um
vandalismo contra as próprias causas que vocês pensam que defendem com
propriedade. Não é com bandeira nem hino nem prédios incólumes que se
constrói uma sociedade livre e justa. O simbolismo estético é apenas o
reflexo das cabeças ocas e dos bolsos cheios que o contemplam e
enaltecem, retrato fidedigno da incipiência cognitiva que assola grande
parte da humanidade ainda nos tempos de hoje.
Aos teóricos como
eu, por favor não me venham usar teoria das redes para explicar os
movimentos atuais porque esse é apenas mais um truque do embuste
econômico-democrático-midiático que vivemos. Conforme tentei explicar na
primeira parte, as manifestações exprimem as limitações estruturais de
um sistema social que de novo não tem nada. A única novidade é que,
descobrindo que a rua é mais complexa do que as redes sociais digitais,
mais uma geração de brasileiros está saindo do berço esplêndido. Ao
contrário do que possa parecer, há tempos o povo brasileiro não vivia em
um Brasil tão seguro quanto o das últimas semanas. A sociedade
brasileira deve descobrir que é chegada a hora de acelerar a história, e
isso somente será possível com o reconhecimento de que o motivo pelo
qual estamos indo às ruas transcende em muito as demandas temáticas
escritas nos cartazes que seguramos em riste. E como cada um constrói a
sua utopia de acordo com o tamanho da sua vontade de mudar o mundo: não
seria a descoberta de que a democracia é um embuste do capital a
contribuição do povo brasileiro para a orquestra das civilizações?
*Hânder Leal é mestrando em Ciência Política da UFRGS. Contato: handercl@gmail.com
http://www.brasildefato.com.br/node/13406
Nenhum comentário:
Postar um comentário