O que está nascendo nas ruas? Em quatro atos
Por Hânder Leal, no blog Brasil de Fato
Deixando de lado os méritos das mobilizações recentes, faço desde já
um alerta: há um desvio sóciocognitivo grave por grande parte dos
movimentos sociais que têm se manifestado recentemente, como é típico de
movimentos análogos que eclodem em outras partes do mundo nesses tempos
de capitalismo falsamente trôpego. O protesto no Congresso Nacional e
em outras sedes do poder público (que de poderoso e de público, na
verdade, não tem nada), as ridículas petições pelo impeachment da
Presidenta Dilma, o desvio de foco para a corrupção, dentre outras ações
momentâneas ou não, embora partam de diferentes vertentes da marcha de
descontentes que se forma no país, encobrem todas um grave problema:
apesar de vigorosa e contagiante, a escolha dos alvos das mobilizações
populares recentes mostra que a massa crítica vanguardista brasileira
dessa nova geração ainda está para descobrir que a democracia é um
embuste do capital.
No sistema democrático de governo, os políticos operam como
verdadeiros bodes expiatórios do capital nacional e internacional.
Enquanto o povo toma o Congresso Nacional, o lucro Brasil foge num
clique para os paraísos fiscais e para as economias desenvolvidas no
exterior. Por quê? Acredite, não é por causa de nenhum dos três poderes
que constituem o Estado democrático de direito no Brasil, tampouco é
algo que se possa solucionar com a convocação de uma nova Assembleia
Nacional Constituinte. Antes fosse: a mudança social seria menos custosa
e as bandeiras de esquerda teriam outra cor. As causas das
manifestações são estruturais, conforme tentei deixar claro no primeiro
ato.
Desconsiderar isso é a mesma coisa que servir de massa de manobra
(i) das forças de oposição ao governo, ávidas por uma crise de
governabilidade que lhes permita livrar-se do alinhamento circunstancial
ao Partido dos Trabalhadores e retomar a vanguarda no seu papel
histórico de defensoras dos interesses elitistas e (ii) da própria base
governista centrista.
O brasileiro está com um ponto de interrogação estampado na testa
pois fomos educados e adestrados para conceber qualquer solução política
possível apenas dentro do maniqueísmo “ditadura vs. democracia”. Não
importa o quanto mude a situação da sociedade brasileira: não importa
que um terço da população passe a exigir seus direitos pela primeira vez
na história; tampouco importa que os brasileiros tomem as ruas do país
para protestar. Isso não é uma questão institucional; é uma questão
cultural. Nada pode ser mais conveniente para o embuste democrático
orquestrado pelos grupos de poder do que uma esquerda que, ao invés de
propor uma agenda positiva de esquerda e a retomada de seu papel
histórico, aceita como inimigo o fantasma capengo da ditadura,
ressuscitado por uma imprensa calhorda, detentora do monopólio midiático
espetacular.
A estratégia dos poderosos para confundir os movimentos de esquerda é
complexa mas pode ser resumida nos seguintes passos. Primeiro, cooptar
os movimentos sociais e convencer a população a não interagir com os
verdadeiros partidos de esquerda nos quais surgiram as principais
lideranças desses movimentos (vale lembrar que centro-esquerda não é
esquerda). Segundo: o povo atônito engrossa a multidão de descontentes
de forma anônima e apartidária. Terceiro, uma vez bloqueado o elo entre o
povo e os partidos de esquerda, a população passa a acreditar que o
único caminho para a mudança é o próprio fortalecimento das instituições
que regem o espetáculo democrático.
Por outro lado, cabe à esquerda compreender que não há a mínima
possibilidade de que tenhamos um retrocesso à ditadura militar no
Brasil. E isso se deve não a uma ausência de vulnerabilidade popular ao
discurso da moralidade propagado pela direita. Essa vulnerabilidade
existe e é latente. Mas meus caros, o motivo é muito mais simples e
concreto: a história nos mostra que lucra-se muito mais no regime
democrático do que em qualquer regime ditatorial. Pense nas
privatizações, no crescimento econômico e na inserção internacional do
Brasil no período pós-redemocratização; pense no crescimento vertiginoso
do PIB mundial e da concentração de renda per capita após o fim da
Guerra Fria e a implementação da democracia liberal sobre três quintos
da população mundial.
Aliás, nada mais sintomático do embuste democrático do que a união de
todas as frentes do complexo democrático espetacular contra um suposto
inimigo comum, o elo transitório e mais fraco da corrente, a classe
política, testa de ferro das elites que a controla. Nada mais natural
que personalidades famosas, vinculadas institucionalmente à política ou
não, elejam esse alvo para os seus ataques de grande apelo popular. Copa
do mundo, democracia espetacular, Estado democrático de direito: nada
disso está ameaçado. Meus caros, essas manobras apenas representam o
modo como o espetáculo democrático renova-se para sustentar-se a si
mesmo e não chegar a lugar algum.
Vivemos um momento crucial na história da esquerda, e não da direita
brasileira. Não nos deixemos enganar pelos anônimos hollywoodianos
mascarados nas ruas do país. O problema é que três décadas de democracia
acabaram por domesticar a nossa esquerda. Cair na armadilha do fantasma
do regime militar e acreditar que metade da nação está flertando com a
ditadura é uma falha de uma esquerda carente de projeto substantivo e
que parece desconhecer seu papel histórico. Ultimamente o descrédito tem
atingido até mesmo a parcela da mídia que até ontem se dizia de
esquerda. A reorganização dos movimentos de esquerda brasileiros não se
dará através do discurso alarmista do retorno ao Estado ditatorial;
discurso esse, aliás, propagado a partir da própria base governista.
Muito pelo contrário; esse é um mito oportunista que deve ser
imediatamente derrubado. A esquerda tem que se desvencilhar do alarmismo
que os grandes grupos de poder pretendem conferir às manifestações.
Acreditar que testemunhamos o retorno do fascismo, comparar as
manifestações recentes aos movimentos que precederam ao golpe militar de
1964, dentre outras peripécias mirabolantes ainda mais anacrônicas,
ingênuas e simplórias apenas contribui para enriquecer o universo
especulativo que renova e perpetua o embuste democrático espetacular a
cada ameaça que lhe surge no transcorrer da história.
Confesso que quando comecei a escrever, minha intenção era dar apenas
um puxão de orelha na esquerda brasileira. Mas pelo tanto que escrevi
até aqui, seria eufemismo chamar uma mijada dessas de um puxãozinho de
orelha. Isso está mais para uma tunda de laço, igual àquelas que a gente
leva quando é piá e deixa de fazer a lição de casa para ir jogar bola.
De qualquer forma, mantive o título original. Sendo assim, espero que
pelo menos a orelha tenha ficado bem vermelha.
Nenhum comentário:
Postar um comentário