sábado, 16 de agosto de 2025

Somos forças do destino, do acaso ou do livre-arbítrio?

A tensão entre destino, acaso e livre-arbítrio não é um problema a ser resolvido, mas o terreno onde a vida floresce.

No palco do cosmos, o humano ergue seu dilema: somos tecidos por um fio pré-desenhado ou bordamos livremente, ponto a ponto, a nossa existência? Duas correntes filosóficas respondem de forma oposta.

Uma diz que guardamos uma essência imutável – centelha transcendente que nos singulariza entre todos os seres sencientes. Essa essência não apenas nos influencia, mas talvez trace os mapas secretos de nosso destino.

A outra corrente diz que não há forma prévia, mas que é no ato mesmo de existir – no respirar consciente, no tropeçar, no amar, no sofrer, no escolher – que forjamos nossa própria essência. É esse fazer-se a si mesmo, afirma, que nos leva além da pura animalidade, transformando a mera biologia em biografia.

Esse enigma nos leva a uma questão central: somos marionetes de um destino inscrito nas estrelas ou arquitetos da própria vida. Existe um sentido que vá além de sobreviver, crescer e se reproduzir.

Biologicamente, o humano herdou o cérebro reptiliano, voltado à sobrevivência, mas não é apenas isso. Em seu crânio habita também o reino da límbica forja, que transforma impulsos em emoções, e o neocórtex soberano, a consciência, que permite abstrair, refletir e planejar. Essa tríade — instinto, emoção e pensamento — nos torna capazes de perguntar, duvidar e criar.

Por isso, o desígnio precisa ser compreendido como bússola, e não como trilho. Destino não é um roteiro fixo, mas uma bússola interior. Este seria o chamado da alma, que nos convida a realizar nosso potencial mais autêntico — o processo de autorrealização . Esse chamado não dita cada passo, mas aponta uma direção.

A história da humanidade oferece centenas de exemplos de pessoas que cumpriram o chamado para a jornada do herói, por exemplo, como diria Jung, ao servir a um propósito maior. Nelson Mandela é um caso emblemático.

Sua biografia foi um mero acaso? Teria ele agido movido por um destino cego ou exerceu seu livre-arbítrio ao suportar 27 anos de prisão, motivado pelo desejo de acabar com toda forma de segregação? Sua resiliência foi fortalecida pela inspiração no poema "Invictus", de William Ernest Henley, com sua poderosa mensagem de perseverança e superação, que culmina no verso emblemático: "Eu sou o mestre do meu destino, eu sou o comandante da minha alma"?

O livre-arbítrio, nesse caso, é a nossa capacidade de navegar. Podemos seguir a bússola, mesmo por mares turbulentos e desconhecidos, ou guardá-la no bolso e tentar traçar nosso próprio mapa, guiados apenas pelos ventos do momento ou pelos mapas que outros desenharam para nós.

O acaso, por sua vez, pode ser a resultante de uma lei desconhecida. Talvez ele não seja tão cego. Quando alinhamos nossa vontade (o leme do nosso barco) com a direção apontada pela bússola (nosso desígnio), eventos aparentemente aleatórios podem se revelar como sincronicidades.

São essas "coincidências significativas" que surgem como sinais –na metáfora do barco, ventos favoráveis ou ilhas inesperadas que nos oferecem abrigo. O universo parece ecoar nossa jornada, conspirando a nosso favor não por mágica, mas porque estamos em ressonância com um fluxo maior e evolutivo.

A história bíblica de Jonas ilustra a recusa de seguir esse chamado. Ao fugir, enfrentou consequências que o levaram a confrontar o que evitava. Muitas vezes, crises funcionam como esse "mergulho forçado" em nós mesmos. A tempestade e o grande peixe não foram punições divinas arbitrárias, mas a manifestação inevitável da energia psíquica que ele tentou reprimir.

O ventre da baleia é a metáfora perfeita para o mergulho forçado no inconsciente. Quando nos recusamos a olhar para dentro, a vida, por vezes, nos engole.

Essas reflexões mudam a pergunta de "qual força me governa?" para "com qual força escolho dialogar?". Viver plenamente é abraçar a tensão entre forças internas e externas, ousar escutar o sussurro do nosso desígnio interior. Fazer escolhas alinhadas ao que consideramos essencial. Manter a sensibilidade para perceber os sinais do acaso como guias, e não como meros acidentes.

Não somos apenas a argila nem apenas o escultor: somos o resultado do diálogo entre os dois. A verdadeira liberdade talvez não seja ausência de destino, mas a coragem de aceitá-lo como convite para criar junto.

Seríamos então, simultaneamente, o cárcere e as asas? O destino traçado e o traçador de destinos? A essência que nos precede e a que forjamos no fogo da existência? É nessa fronteira entre o dado e o construído, entre o instinto e o espírito, entre o acaso cego e a vontade consciente que ressoa o canto mais profundo da humanidade: quem somos?

Qualquer das hipóteses pode ser verdadeira ou falsa, a vida pode ter e não ter propósito, significado e sentido. Particularmente, aposto que tenha. Mas esse é o mistério com o qual somos fadados a conviver. E esse fardo já é um destino que só pode ser aliviado por meio da crença, dando crédito à hipótese que produza menos angústia.


Trecho de um artigo da Folha de São Paulo 
https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2025/08/o-terreno-onde-a-vida-humana-acontece-e-destino-acaso-ou-livre-arbitrio.shtml


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