É o mais sólido e tradicional clichê que somos todos, em algum grau, loucos. Como a maioria é algo estranha, ser louco conteria um certo charme. O glamour da insanidade aparece na belíssima Balada do Louco: “Mais louco é quem me diz, e não é feliz...”, dos Mutantes, que ganhou registros com Ney Matogrosso, Rita Lee e Cida Moreira. A normalidade é tediosa, opressiva e até pecaminosa, algo que ecoa Erasmo de Roterdã (O Elogio da Loucura) ou Paulo Apóstolo (I Coríntios 4,10).
O sonho da contracultura articula-se com a postura de considerar que a vida enquadrada é “careta”, antiga, ultrapassada e você, cumprindo todo o trajeto da “normalidade”, acaba apenas servindo de massa de manobra. A sinceridade dos loucos e outsiders sempre foi admirada como emanação. Não seja mais um tijolo no muro, não marche para a mesmice: é o tema recomendado do clássico The Wall, de Pink Floyd.
Um jovem que não tenha sido seduzido em algum momento pela ideia da insanidade contestadora de um Hamlet a apontar coisas podres no reino da Dinamarca, provavelmente, não é um jovem de verdade. Hoje quase uma denúncia de idade, lembro de um livro clássico da minha juventude: O Louco, de Khalil Gibran.
Narrei a loucura poética. Ela é irmã da contestação, da rebeldia criativa, da insubordinação contra poderes. O louco manso e criativo ri, diz aquilo que está engasgado na garganta dos comuns racionais e infelizes. A poesia-hino do levante contra o tradicional é o famoso Cântico Negro, de José Régio. Sim, a plateia ralou no emprego para obter a soma do ingresso, seguiu ordenadamente até o lugar numerado, chegou no horário previsto, arrumou-se para isso e seguiu organizada e racional. De repente, a genial artista recita o cântico e todos apoiam e gritam. Era o momento permitido de rebeldia. Depois, em ordem e pagando estacionamentos extorsivos, todos voltamos para nossas casas. Para ser muito louco, hoje, precisamos de renda sólida, diferentemente dos filósofos cínicos como Diógenes, que podiam ser pobres e perturbados.
Tenho temido o crescimento do outro tipo de loucura, aquela amparada na classificação psiquiátrica. Acompanho, com horror, cenas como o perigoso empurrão de uma senhora sobre o padre Marcelo ou o casal de mulheres que tortura e mata um menino: é uma lista infindável de pessoas que não apresentam a loucura risível, todavia a perigosa e assassina.
cultura.estadao| 14 de Agosto de 2019
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