'Não sou solidário e cuido apenas de mim' é prática muito popular no Brasil
A descoberta do outro é um desafio.
Temos um jogo distinto na média da cultura brasileira. Meu problema deve ser o de todos e, muitas vezes, consideramos obrigação ajudar estranhos. Muitos acham que é um dever moral a solidariedade ou a compreensão de necessidades específicas. Outro detalhe: em décadas de uso intenso de aviões e aeroportos, eu jamais vi alguém se enganar sobre a fila de embarque indo para a mais demorada. Sempre, sem exceção, alguém promove um upgrade pessoal e ilegal. Pasmem, queridas leitoras e caros leitores, na maioria absoluta das vezes o “engano” funciona.
O Outro é um conceito de Antropologia, aquele que define a diferença, a relação de alteridade.
Na prática, construir quem é o Outro implica, quase sempre, determinar quem merece ou não ser ajudado, quem pode ser alvo da nossa compaixão.
Quase sempre nossa solidariedade é dada pela nossa identidade. Nesse campo, haveria três categorias:
a) sou solidário com toda a espécie humana;
b) sou solidário com quem está próximo de mim pela situação (mãe, pai, gestante, idoso, etc.) ou pelo grupo (outro evangélico, um militante de alguma causa, alguém com a mesma deficiência minha ou de alguém da família);
c) não sou solidário e cuido apenas de mim.
Os itens A e B são narcísicos, baseados na identidade de si projetada sobre o outro, ainda que o A tenha amplitude mais desejável. Santos e humanos notáveis são adeptos do item A, por vezes ampliado para todo ser vivo.
Curiosamente, adeptos dos itens A e B são um pouco mais invasivos e zelam para que a compaixão seja norma, mesmo que incomodando alguém da categoria C.
A categoria C é vivida de forma mais velada no Brasil, entretanto é muito popular. Temos antipatia pelos seres voltados a si, ainda que difiram de nós em menos coisas do que gostaríamos.
A vasta categoria C é pouco social, ainda que igualmente menos invasiva. Seu “viva e deixe viver” confunde liberdade com indiferença, autonomia com egoísmo.
É muito complexo identificar os casos nos quais devemos deixar o Outro viver por si ou quando devemos ajudar ou até impor alguma medida de compaixão. Suspeito que todos nós que somos obrigados a fazer coisas para ir ao encontro das necessidades alheias temos uma secreta inveja dos habitantes do item C.
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https://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,o-outro,70002995207
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