quinta-feira, 1 de novembro de 2018

Droga, uma economia informal. Antônio Risério

Tem um outro dado aí que é o tráfico de drogas, consumo e tráfico de drogas, que gera muito dinheiro... 
E emprego.

Pois é, a economia informal da cidade gera mais que a formal... E gera muita violência em cima disso, muita repressão policial, muita corrupção. Corrupção policial, corrupção política, corrupção da Justiça. Como esse elemento, que não existia e que agora é cada vez mais forte em Salvador, pode mexer e já está mexendo no quadro em que a gente vive? 
Não acho que o negócio das drogas tenha criado um "Estado paralelo", como falam. Pode até ter formas fragmentárias de atuação de tipo estatal, coisas filantrópicas, até tribunais e tal. Mas nem chega a ser uma organização para-estatal. É apenas um empresariado ilegal e o que você tem são grupos armados disputando espaços de mercado. Nem tem também essa história de guerra civil. Guerra civil é quando uma classe ou uma etnia, por exemplo, enfrenta outra, por questões econômicas, ideológicas, etc. Você tem mesmo é disputa de mercado, numa situação de ilegalidade. O tráfico oferece ao jovem pobre, além de aventura e risco, coisas que a juventude adora, dinheiro e acesso ao consumo. Você fica vendo o tempo todo, nas novelas da Globo, aquele padrão de vida ali... e vai ter acesso àquilo como? Ou tomando ou traficando, não há muitos caminhos. Não temos política educacional, a política de inclusão social ainda é muito fraca, não tem inclusão cultural, não tem nada. A periferia é abandonada e é um prato cheio, claro, para o tráfico. Com um agravante, hoje, que é o seguinte. Antes, a gente falava que o que distinguia o tráfico no Brasil era a base territorial. É um traço específico da bandidagem brasileira. Uma quadrilha controlava um morro no Rio, por exemplo, que então era fechado a outras quadrilhas. Aqui, também. Era a partir da base territorial que se negociava. Era isso que fazia, por exemplo, com que o crack não entrasse no Rio. Mas esse ano a gente viu que esse negócio foi detonado. O PCC passou a controlar financeiramente o tráfico carioca. Então, essas bases territoriais não existem mais. Continuam sob controle, mas não são fechadas ao jogo financeiro. O que existe hoje são redes de empresas do tráfico, sediadas em São Paulo, como as grandes empresas legais. Esse empresariado paralelo está no país todo e de forma organizada. Agora, para lidar com isso a gente também não pode ser hipócrita. É o óbvio: se existe tráfico, existem consumidores. Um sujeito que cheira pó, num apartamento de luxo na Vitória, não tem autoridade nenhuma para falar de tráfico e violência urbana. Ele tem que se ver como cúmplice, como partícipe do processo. Sem ele, o tráfico de drogas não existiria. Muita gente não tem consciência disso, fala como se o tráfico fosse uma coisa distante. Não é. Nós fazemos parte desse circuito comercial. Nós fazemos parte estruturalmente do tráfico de drogas. Nós somos o mercado.

O fato de ser uma briga territorial faz com que determinadas áreas das cidades, inclusive aqui em Salvador, sejam totalmente dominadas. Não entra polícia, nem serviços públicos, nem nada. Como se fosse um território estrangeiro. 
E que foi criado graças à complacência dos poderes públicos, que nunca quiseram lidar com isso, sempre pactuaram, permitiram, e isso alimentado pelo conjunto da sociedade. Agora, é o seguinte. Essas bases territoriais distinguem o tráfico brasileiro do tráfico de Londres ou Nova York, por exemplo, onde você tem tráfico, mas não tem base territorial. E isso é uma coisa terrível aqui. Porque, com a base territorial, você tem comunidades controladas e pessoas que já nascem naquilo, né? Todo mundo sabe disso no Rio, mas não vejo ninguém discutindo isso em Salvador. Você vê como as coisas estão reduzidas aqui. Em relação a tudo. Passei esse ano em São Paulo e não tinha uma semana que eu não recebesse um manifesto para assinar. Aí você pensa, é a sociedade civil se movimentando e tal. Mas tudo era manifesto para preservar alguma coisa. Claro que há coisas há serem preservadas. Mas nem sempre era o caso. Não tem mais critério. Eu digo: até fogareiro de baiana do acarajé virou monumento histórico. Só tinha preocupação preservacionista e nenhum projeto para o presente ou para o futuro? Por outro lado, até entendo. As intervenções no espaço urbano de Salvador têm sido tão desastrosas que você se sente inclinado a preservar até tampinha de guaraná. Mas a cidade não pode ficar paralisada. Isso aqui precisa de uma puta sacudida. De onde, não sei.

Talvez do tráfico... 
Vamos ver se essa meninada aí vem com alguma coisa. O que resta à gente é tentar transformar o que é possível transformar. Mas é difícil. Você apresenta um projeto, acham maravilhoso, mas não vai pra lugar nenhum. Nós estamos vivendo no reino da lábia.

O que é o reino da lábia? 
Todo mundo fala, acha ótimo, faz um barulho, mas fica só nisso. Parece psicanalista, que acha que resolve tudo na conversa. Aqui, as pessoas conversam sobre um assunto e acham que o assunto foi resolvido. A conversa não é uma preliminar pra encarar o problema. O problema já se resolve na conversa. Quer dizer, a conversa é um âmbito auto-suficiente onde as coisas se resolvem. Deveria se fazer aqui o que o governador de Brasília fez. Proibiu o gerúndio: estamos fazendo, estamos construindo, estamos dando... Sempre estamos dando alguma coisa, mas cadê a coisa?

Antônio Risério, poeta e antropólogo
entrevista a Mário Kertész (Revista Metrópole, n. 17, novembro 2008)
Reprodução de "Terra Magazine"

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