quarta-feira, 19 de abril de 2017

Há meio século, tropicália chegava para 'arrombar a festa'

Marcos Augusto Gonçalves
Na Folha de São Paulo

RESUMO Autor lembra o caldo cultural em que o tropicalismo eclodiu. Por incorporarem o imaginário estrangeiro e temas da sociedade de consumo, seus artífices destoavam da canção engajada em voga nos anos 1960. Segundo o artigo, ecos do movimento ressoam ainda hoje na arte do país.

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"Baby" foi gravada em 1968, um ano depois da explosão de "Alegria, Alegria" e "Domingo no Parque" no festival da Record, que marcou o lançamento dos tropicalistas na cena nacional.

Com formações inusitadas para a época, Caetano se fazia acompanhar de um grupo pop argentino, chamado Beat Boys, e Gil aparecia escoltado pelos moderníssimos Rita Lee e Os Mutantes.

Assim como "Alegria, Alegria", "Baby" destoava da nota nacionalista dominante na canção engajada que prosperava no país e atraía os corações e ouvidos de grande parte da juventude de esquerda, na onda de protestos contra a ditadura militar brasileira.

A canção de Caetano revestia-se de um internacionalismo "cool", enganosamente ingênuo, que repetia palavras do universo do consumo pop e dizia que você precisava ouvir Roberto Carlos e aprender inglês.

A letra, influenciada por conversas do compositor com sua irmã Maria Bethânia, citava também outra música, que não era da jovem guarda: a "Carolina", de Chico Buarque, que surgia justaposta à "margarina" e à "gasolina" –deixando transparecer a dimensão mercadológica da música popular, fosse ela escrita por um compositor de esquerda em registro poético elevado, fosse feita por um cabeludo do iê-iê-iê escapista. Os tropicalistas sabiam de onde estavam falando.

A ambição internacionalista do movimento decolava da plataforma de lançamento da bossa nova, uma síntese bem-sucedida e sofisticada do samba com as lições do jazz, que, ao ritmo único do violão de João Gilberto, musicou um projeto de país.

Em 1966, num depoimento à "Revista Civilização Brasileira", Caetano disse: "João Gilberto, para mim, é exatamente o momento em que isto aconteceu: a informação da modernidade musical utilizada na recriação, na renovação, no dar-um-passo-à-frente da música popular brasileira".

MODERNISMO

O tropicalismo valeu-se também da pista aberta pelo modernismo brasileiro dos anos 1920, embora os baianos ainda não soubessem inteiramente dessa conexão. Foi o poeta Augusto de Campos quem os apresentou à obra de Oswald de Andrade (1890-1954) e a suas teses sobre a antropofagia.

As relações com o grupo concreto são um capítulo importante da inscrição mais ampla do tropicalismo em São Paulo, que foi a cena fundamental do movimento. Na época dos festivais, Caetano e Gil moraram na capital paulista, e o tropicalismo suscitou nos meios intelectuais da cidade, dentro e fora da universidade, uma extensa e qualificada fortuna crítica.

Augusto de Campos foi um observador entusiasmado da primeira hora do movimento, identificando-se com sua inclinação vanguardista e seu interesse pelas linguagens da cultura de massa. O livro "O Balanço da Bossa" (2005) é um registro vivo desses encontros –e a canção "Batmacumba", do álbum "Panis et Circensis", de 1968, exemplifica muito bem a atração exercida pela poesia concreta.

Outro paulista, Roberto Schwarz, que tem seus atritos com o concretismo, tornou-se também, por caminhos diferentes, um interlocutor relevante no debate. Seu ensaio "Cultura e Política, 1964-1969", publicado no calor da hora, em 1970, na revista francesa "Les Temps Modernes", fazia uma avaliação crítica da tropicália que marcou época e continua a ser uma referência para as discussões sobre o movimento.

Mais recentemente, em comentário ao livro "Verdade Tropical" (1997), Schwarz escreveu sobre o internacionalismo tropicalista: "Caetano foi precoce na compreensão da política internacional da cultura, em que o influxo estrangeiro –inevitável– tanto pode abafar como trazer liberdade, segundo o seu significado para o jogo estético-político interno, que é o nervo da questão".

Nessa dinâmica, a influência estrangeira ou diretamente norte-americana, ainda que problemática, poderia servir como um caminho esperto para questionar o conformismo político e o preconceito cultural brasileiro –de direita, mas também de esquerda.

"O que conta não é a procedência dos modelos culturais, mas a sua funcionalidade para a rebeldia, esta sim indispensável ao país atrasado", escreveu Schwarz.

Como atitude política e estética, o tropicalismo assumiu antes a perspectiva do rebelde do que a do militante marxista, sem que isso necessariamente representasse um muro intransponível.

A politização da arte de vanguarda no pós-guerra, que ecoava a boa fórmula de Vladimir Maiakóvski ("não há arte revolucionária sem forma revolucionária"), disseminava-se em movimentos como a Nouvelle Vague francesa e se materializava no Brasil do energético 1967, em realizações potentes associadas ao tropicalismo, como o filme "Terra em Transe", de Glauber Rocha, a montagem de "O Rei da Vela" pelo Oficina ou a instalação "Tropicália", de Hélio Oiticica, que foi exposta no Rio de Janeiro em abril e emprestou seu título à canção-símbolo do movimento.

CONTRADIÇÕES

Atuando no território da música popular, exposto às complicações (mas também às vantagens) da cultura comercial e dos veículos de massa, Caetano e Gil tomaram partido de construções alegóricas e paródicas para criticar e, ao mesmo tempo, exaltar, de maneira sarcástica, carnavalesca e, por vezes, melancólica, as contradições de um país onde arcaísmos e modernidades conviviam e se entrechocavam.

O efeito dessas colagens bombásticas e cinematográficas, que confrontavam referências eruditas e vulgares nos arranjos e nas letras das canções, rompia com o programa nacional-popular, inclinado a separar, e não a justapor, o que seriam polos antagônicos e excludentes –esquerda x direita, consciente x alienado, militante x desbundado, popular x elitista, nacionalismo x imperialismo.

Em 1967, em uma entrevista, Caetano respondeu aos que lhe cobravam mais compromisso com as "raízes" da cultura nacional: "Nego-me a folclorizar meu subdesenvolvimento para compensar dificuldades técnicas. Ora, sou baiano, mas a Bahia não é só folclore. E Salvador é uma cidade grande. Lá não tem apenas acarajé, mas também lanchonetes e hot dogs''.

O compositor dizia-se cada vez mais interessado "pela vitalidade natural da música vulgar e comercial" do que pelo "intelectualismo" em que teriam caído "todos os que se acreditavam continuadores de Caymmi, Noel e outros". E completava: "Estou me esforçando para respeitar meu público, que é jovem como eu, e está também interessado em que sejamos gente do mundo de agora''.

A figuração paródica e fragmentada do país levada adiante pelo tropicalismo, embora criticada à esquerda por ser supostamente incapaz de resolver a equação e projetar o resultado para o futuro, tinha, sim, um vetor progressista e, a seu modo, nacionalista.

Um nacionalismo, no entanto, que se via tolhido pela plataforma hegemônica da esquerda e que veio a se encontrar nas imensidões históricas, afetivas, críticas e utópicas de Nabucos, Freyres, Bonifácios e Jobins.

O tropicalismo, disse Caetano certa vez, "foi uma maneira de arrombar a festa". Esquematicamente, foi uma intervenção atinada e anárquica no ambiente politizado da cultura brasileira da década de 1960, sintonizada com a cultura pop da juventude internacional.

Renovou a sintaxe, a semântica e o aspecto visual da música popular. Abriu o leque para uma atitude inconformista, transversal e cosmopolita, que questionava o obscurantismo autoritário, os moralismos, os tabus da "intelligentsia" e os códigos do bom-gostismo.

A bossa e a palhoça, Brasília e Carmen Miranda, Beatles e Vicente Celestino, Batman e macumba. A cultura brasileira contemporânea sem a tropicália seria imensamente mais pobre.

HERANÇA

Mesmo num país já bastante diferente, o tropicalismo continuou a despertar interesse nas novas gerações. A aproximação entre Chico Science e Gil ou, mais recentemente, entre Caetano e os rapazes da Banda Cê, são amostras dessas relações, atualizada pelos tribalistas Arnaldo Antunes, Marisa Monte e Carlinhos Brown.

O legado está vivo, não apenas na figura lendária de alguns dos personagens centrais dessa história, como Caetano, Gil, Zé Celso ou Tom Zé, que continuam ativos e criativos, mas também na incorporação natural de questões levantadas àquela época ao fluxo da cultura contemporânea.

Ninguém imagina que se possa, no Brasil de hoje, organizar protestos contra a guitarra elétrica ou considerar que a bossa nova seja uma intromissão imperialista para descaracterizar o genuíno samba brasileiro.

Os desdobramentos estão aí, tanto nas margens, como informação e alimento para novos artistas, quanto na consagração do "mainstream" –basta dizer que "Tropicália" tornou-se música de abertura de uma novela da Globo.

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