domingo, 1 de maio de 2016

"A Arte de Viver"

De acordo com a tradição estóica em que Epicteto se insere, a filosofia não existe simplesmente para compreender o mundo (embora seja necessário compreendê-lo) e muito menos para transformá-lo. A verdadeira finalidade da filosofia é aprender a viver. E aprender a viver é o mesmo que alcançar aeudaimonia (a vida boa ou felicidade). Alcançar a vida boa deve ser aquilo que a filosofia nos permite ao ensinar a virtude, a qual se traduz numa vida de simplicidade, de autodomínio e de aceitação das circunstâncias que não dependem de nós. É por isso que Epicteto começa o Manualdistinguindo o que depende do que não depende de nós.

No primeiro caso temos os desejos e apetites, os impulsos, a aversão e, em geral, o que resulta das nossas acções. No segundo caso temos o nosso corpo, os bens, a fama, o poder e, em geral, tudo o que não resulta das nossas acções. Querer intervir no que não nos é possível resulta sempre em frustração e infelicidade. Por isso não vale a pena lutarmos contra o que não depende de nós. Em vez de nos deixarmos levar pelo desejo de mudar a realidade, temos antes de nos controlar a nós próprios, moderando os nossos desejos e anulando as nossas ambições, ao mesmo tempo que aceitamos as coisas como elas são. A passagem seguinte resume perfeitamente a moral estóica:

Não procures que tudo quanto acontece aconteça como desejas, antes deseja que tudo aconteça como de facto acontece. Assim serás feliz. (p. 30)


A raiz de toda a frustração e infelicidade reside, segundo Epicteto, na interpretação fantasiosa da realidade e nos juízos falsos que fazemos sobre ela. A filosofia tem assim um papel importante na busca da felicidade porque nos ensina a distinguir as falsas impressões, ou aparências, da verdade. A natureza só pode ser boa, pelo que nada há de errado e de censurável nela. O que nos afasta da virtude e causa infelicidade são os juízos falsos que fazemos sobre a natureza. Por isso devemo-nos abster de fazer juízos sobre a natureza. Assim, é a ignorância que leva à infelicidade, o que está muito próximo do princípio socrático segundo o qual só se erra por ignorância. Se levarmos uma vida filosófica seremos, então, capazes de nos aproximar dos dois grandes ideais que constituem a felicidade: a tranquilidade (apatheia) e a paz de espírito (ataraxia). Por isso recomenda:

Preocupa-te, por isso, em dizer claramente a cada ilusão enganadora: "és uma ilusão e nem de perto és o que pareces ser". Analisa-a de seguida e testa-a segundo essas normas que possuis, das quais a primeira e mais importante é saber se pertence à categoria das coisas que dependem de nós ou à das que de nós não dependem. Então, se for das que não dependem de nós, tem bem pronta a resposta: "não é nada comigo". (p. 24)


Seguindo este princípio, Epicteto dá numerosos exemplos concretos ao longo do livro sobre o modo como devemos encarar as coisas: a propriedade, a morte, a família, as necessidades do corpo, o sexo, etc. Eis o que recomenda a propósito da inevitabilidade da morte:

A morte nada de terrível representa por si — assim teria parecido ao próprio Sócrates — mas o julgamento da morte como algo terrível, isso sim é um mal. Por isso, quando estamos de pés atados, perturbados ou atormentados, ninguém mais podemos culpar para além de nós próprios, ou melhor, dos nossos julgamentos. (pp. 27-28)


Outras passagens são verdadeiramente lapidares:

Culpar-se a si é já próprio de quem deu início à sua formação. (p. 28)


Ou ainda:

Jamais te orgulhes de um qualquer mérito que não seja teu. [..] O que é, em boa verdade, pertença tua? Apenas o uso das impressões externas. (p.29)


Outra passagem que ilustra bem a atitude do estóico perante a realidade é a seguinte:

Jamais digas, acerca do que quer que seja, "perdi-o", antes "devolvi-o". O teu filho morreu? Foi devolvido. Morreu a tua mulher? Foi devolvida. "A minha herdade foi roubada!" Pois bem, também ela foi devolvida. "Mas foi um malvado que ma roubou!" Mas que importa por que meio Aquele que ta deu vem buscá-la de volta? Posto que te foi ofertada, cuida dela enquanto pertença de outrém, tal qual os viajantes desfrutam do seu hospedeiro. (p. 32)


E para aqueles que pensam que a filosofia consiste apenas em interpretar o que os filósofos escrevem, Epicteto não pode ser mais certeiro:

Quando alguém se envaidece por compreender e interpretar os livros de Crisipo, tem para ti próprio que "se Crisipo não tivesse escrito de forma obscura, nada teria esse homem com que se vangloriar".

Mas que pretendo eu? Examinar a fundo a Natureza e seguir os seus ensinamentos. Busco, por isso, quem seja capaz de a interpretar. E tendo ouvido dizer que Crisipo é esse homem, abordo a sua obra. Mas não compreendo os seus escritos. E continuo a minha busca, agora de quem consiga intepretar Crisipo. E até aqui, nenhum motivo de orgulho. Mas quando encontrar um intérprete capaz, é imperativo pôr em prática os seus preceitos. E apenas nisto há lugar para admiração. Se, contudo, admirar apenas a sua intepretação, que outra coisa me tornarei senão gramático, em vez de filósofo? Tão só, em vez de Homero, interpretei Crisipo. (p. 69)


Isto mostra bem que vale muito a pena ler Epicteto ainda hoje e que as suas ideias não têm apenas interesse histórico.

Termino com quatro reparos ao tradutor sobre outros tantos aspectos que merecem ser corrigidos numa futura.


"Epicteto em pratos limpos"

Aires Almeida

A Arte de Viver, de Epicteto
Introdução, tradução e notas de Carlos de Jesus
Lisboa: Edições Sílabo, 2007, 77 pp.

É de saudar a tradução directa do grego para português do Manual de Epicteto, um dos mais populares e acessíveis textos do estoicismo, a escola de pensamento fundada mais de trezentos anos antes por Zenão de Cítio.

Epicteto nasceu por volta do ano 55 da era cristã na Frígia (actual Turquia) e é um dos representantes do chamado estoicismo imperial, juntamente com Séneca, que o antecede, e o imperador romano Marco Aurélio, que ele acabou por influenciar fortemente. Nasceu escravo e como escravo de Epafrodito, uma espécie de secretário do imperador Nero, foi ainda muito jovem para Roma. 

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