sábado, 9 de abril de 2016

Cidades inteligentes, uma ideia burra

Maxwell Smart, o Agente 86 da série de sucesso dos anos 60 trabalhava para a agência C.O.N.T.R.O.L.E que tinha como principal objetivo combater os vilões da K.A.O.S.

Utilizando seus famosos gadgtes que variavam entre o ridículo e o simplesmente inútil como o sapato-fone e o cone do silêncio, o agente Max já mostrava uma crítica ao protagonismo das tecnologias que surgiam em meio ao fascínio pelas explorações espaciais e novos computadores.

A disputa entre o caos e o controle é parte da história das cidades, principalmente das principais capitais latino-americanas, onde a ideia de uma grande massa disforme que deve ser controlada para garantir a segurança é senso comum.

O boletim sobre Smart Cities que foi publicado este mês no projeto Antivigilância mostra as várias maneiras como as chamadas soluções inteligentes para as cidades reforçam e intensificam propostas excludentes que já vinham sendo implementadas há muito tempo em capitais como Santiago no Chile, Buenos Aires, Bogotá ou mesmo Rio de Janeiro.

A grandiosidade das máquinas industriais e urbanas está, hoje, subordinada ao consumo de gadgets, aplicativos e de objetos inteligentes (conectados à Internet das Coisas), todos desenvolvidos por um pequeno grupo de empresas multinacionais.

De câmeras de reconhecimento facial a postes  que detectam a presença de pessoas na calçada, os dispositivos de controle automático das funções dos serviços urbanos vão se tornando  parte da paisagem urbana.

Artistas como Zach Blas abordam o viés binário deste tipo de solução com projetos que questionam a digitalização das faces e corpos via biometria e outros sistemas de detecção.

Blas chama a atenção para o fato destas tecnologias, massivas por natureza, não apenas invadirem a privacidade individual, mas compartimentarem pessoas em categorias fechadas de gênero, raça e orientação sexual. E também para o fato destas tecnologias servirem para controlar grupos minoritários ou coletivos que utilizam as ruas para protestarem e solicitar mais direitos.

O que nos leva uma vez mais a questionar se estas novas tecnologias servem como alternativa às tensões e conflitos na cidade ou apenas reforçam sistemas de exclusão já presentes. Por isso, é necessário questionar as premissas implícitas nas tecnologias para além da segurança, conforto e facilidade que pareçam oferecer.

Os dados da NSA colhidos por espionagem em registros de chamadas de telefone permitiu ao governo determinar redes sociais, condições de saúde, crenças religiosas e muito mais. Os dados gerados pelas várias tecnologias das cidades inteligentes serão ainda mais abrangentes, massivos e reveladores.

Um exemplo brasileiro digno de menção é o Centro de Operações do Rio de Janeiro (COR), iniciado inaugurado na cidade por ocasião da Copa do Mundo de 2014. Imagens da sala de controle aparecem com frequência na mídia como símbolo de uma proposta eficiente de gestão moderna da cidade, não por acaso lembrando o que vemos em filmes de aventura espacial.

O prefeito da cidade, Eduardo Paes, descreve os primeiros passos rumo à smartização da cidade, afirmando que “estamos aplicando tecnologia para beneficiar a população e fazer eficientemente a transição para uma smart city. Além de utilizar toda a informação disponível para a gestão municipal, nós as compartilhamos com a população em dispositivos móveis e redes sociais. Deste modo, nós os empoderamos com iniciativas que podem contribuir com a melhora do fluxo das operações da cidade.”

Mas esta proposta de transparência não se revela nas tecnologias escolhidas para a gestão do empreendimento. As funcionalidades foram desenvolvidas com base no API do Google Earth. Concessionárias, órgãos públicos e a própria população (por meio do aplicativo Olhos da Cidade, desenvolvido especificamente para a prefeitura do Rio) colaboram enviando dados de tráfego, incêndio, chuvas, protestos, etc para o COR, mas os usuários só podem ter acesso aos boletins e análises realizadas e disponibilizadas pelo COR. Ou seja, ao conteúdo já processado.

Temos aí problemas de acesso unidirecional aos dados. Enquanto a central acessa tudo, o usuário fica dependente das alternativas que o COR decide publicar. Há também a limitação das interfaces destes aplicativos, isto é, o usuário apenas se adapta ao formato previamente desenhado, sem a possibilidade de gerar suas próprias análises de acordo com seus interesses de cidadãos.

Como observa Paz Peña, a ideia do espaço urbano como “laboratório de inovação” com viés empresarial faz com que as controvérsias próprias de um organismo complexo como a cidade surjam desafetadas de sua história, seus interesses, paixões e resistências.

As ideias de ‘cidades inteligentes’ que vemos surgir no contexto atual são tão neutras e universalistas como o discurso dos “técnocratas” que buscam maximizar a eficiência e que não fazem senão reproduzir sua própria ideologia. Renata Ávila chama a atenção para o fato das cidades do futuro promovidas pelos conglomerados tecnológicos e empresariais permitirem antecipar eventos, decidir preventivamente como controlar multidões, bloquear protestos e prever manifestações em prol de mais e melhores direitos.

Elas também permitem discriminar com base em um algoritmo e excluir com base em padrões de comportamento. Passamos da disputa entre K.A.O.S e C.O.N.T.R.O.L.E, a sistemas que mais se assemelham ao Minority Report onde todos são suspeitos, até que se prove o contrário. É hora de pensar se é este o tipo de inteligência que queremos para nossas cidades.

Autora:

Raquel Rennó, pesquisadora em comunicação digital e espaços urbanos (UFRB) e colaboradora do Coding Rights

Colaboraram com este artigo:

Angela Precht, jornalista e gestora de projetos em estratégia digital

Natasha Felizi, pesquisadora e engenheira de tráfego da Coding Rights

Tiago Rubini, pesquisador e artista que desenvolve projetos que relacionam tecnologia e gênero

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