A menos de um ano das Olimpíadas e
durante o Rock in Rio, o maior evento musical brasileiro, fatos, cenas e
imagens de arrastões nas praias e assaltos nas ruas do Rio de Janeiro
chocaram quem as viveu como vítima, quem as viu incrédulo pela TV e nas
capas de jornais e, claro, os turistas brasileiros e estrangeiros que
sonham ou planejam uma viagem para a cidade maravilhosa. Entretanto,
infelizmente, o buraco é muito mais embaixo. O poço parece cada vez mais
sem fundo quando se trata da imperativa violência urbana brasileira e a
ocorrência de arrastões, agressões e assaltos nas ruas e no transporte
público no Rio é apenas uma das várias ilustrações do esgarçamento da
civilidade e da guerra civil não oficial que cada vez mais caracterizam
todas as grandes cidades brasileiras.
A
repetição das teses segundo as quais o Brasil passou por uma onda de
desenvolvimento e crescimento jamais vista nos últimos tempos esconde um
paradoxo que poucos ousam abordar e menos ainda conseguem explicar. O
que o país assistiu foi um fluxo de desenvolvimento econômico associado a
uma explosão dos índices de consumo, mas sem jamais associar isso a um
equivalente avanço no comportamento cidadão da população e a uma
melhoria nos índices de civilidade do povo. Embora muita gente confunda e
torne equivalente a condição de cidadão e a de consumidor, há, no caso
brasileiro, um abismo entre ambas.
Brancos e Pretos
O
que se viu no Rio no final de semana e que não é, diga-se, um
“privilégio avessado” da capital fluminense, foi o retrato do
aprofundamento do apartheid no qual a sociedade brasileira investe sem
sequer se dar conta da velocidade com que o faz. Entraram em cena até
mesmo personagens e cenários novos: jovens brancos de classe média,
malhados, quebrando vários ônibus na orla da zona sul carioca para
arrancar de dentro e espancar os pretos da periferia, todos tidos e
havidos como integrantes das gangues que arrastavam literalmente tudo
nas praias, no calçadão e nas ruas internas dos bairros da zona sul. Era
o lado de fora contra o lado de dentro, e vice-versa, não mais tendo
como limite o muro do condomínio ou a cerca de arame eletrificada, mas
um ônibus.
Antes, o que se via era a
periferia quebrando os ônibus, revoltada contra um abuso ou uma
injustiça do poder público ou da sociedade cometida contra os mais
pobres ou contra um dos seus. Agora é, como se diz no Rio, o asfalto
barbarizando contra o buzu, mas do lado de fora, para linchar o morro e a
periferia que está dentro dele. Turistas estrangeiros urravam de choro
pronunciando a palavra “horrible” e “never more”, após serem agredidos
na areia do Arpoador e perderem tudo o que carregavam, passaporte
incluído. Se isso não é uma guerra civil que a hipocrisia governamental e
política não ousa pronunciar o nome, como classificar a coisa, como
nomeá-la? Do lado do exército dos arrastões, literalmente crianças, de
tão novos que são os meninos que integram as gangues.
Rastros explícitos
da incapacidade brasileira de cuidar de suas crianças, de tirá-las da
rua antes que elas tivessem passado a considerá-la como sinônimo de sua
casa.
O Rio é tão somente a
metáfora do país, que nunca foi tão dividido, tão violento, tão
esgarçado socialmente, tão tolerante e tão ignorante. Costurando tudo,
infelizmente, está não um governo ou um projeto de país, mas um poderoso
e visível exército paralelo da droga, uma narco-sociedade assombrosa
produzindo cidades culturalmente raquíticas e exterminadora de gente e
de futuro.
Quando, em cenários como esses, se fala em alavancar o
turismo, o discurso soa além do esquizofrênico. Quem quer frequentar a
praia Brasil, nadar nessas águas turbulentas de medo? Um país trevoso
sai da toca, cada vez mais mostra a sua cara e ela é medonha.
Malu Fontes é jornalista e professora de Jornalismo da Ufba
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