Por Frederico Mattos - Psicólogo
“Gosto
não se discute”, discordo, tudo se discute. Não o direito pelo gosto, mas a
natureza dele, é o que farei com “50 tons de cinza”.
A análise
Não
precisei ler a trilogia de “50 tons de cinza” ou ver o filme para tirar
valiosas análises sobre mulheres, homens e seus desejos. Quando um paciente
fala sobre um parente ou cônjuge, eu não preciso conhecer a pessoa em questão,
pois o meu olhar é sempre sobre a própria pessoa que fala.
Quando as
mulheres dão declarações efusivas sobre Christian Grey eu não preciso conhecer
o que de fato ele é ou o que faz para entender essas mulheres. O que me
interessa é o gesto saboroso que muitas fazem ao descrever um homem que
amordaça, bate, faz contratos sobre seus comportamentos sexuais, oferece um
mundo de luxo e traz consigo uma dor sem fim.
Gosto de
ver como se vestem com as roupas psicológicas de Ana em sua virgindade,
bravura, personalidade indomável e capacidade de gozar ininterruptamente.
Grey e
Ana não existem, é óbvio, isso é uma ficção, mas existem materializados na
mente das pessoas devotas de “50 tons de cinza”. Isso para mim é ouro.
Por que
as leitoras são fervorosas?
Eles são
tão concretos para as leitoras e qualquer tentativa de derrubar o mito é
seguida de uma chuva de críticas sobre o iconoclasta estraga-prazeres. E
entendo o motivo, elas não querem perceber que aquilo é um conto erótico
ficcional. Assim como um religioso fanático ou um torcedor fiel, precisam
imaginar que aquele céu é possível.
Quando
alguém se apega dessa forma a uma imagem fantástica da realidade eu não me
atrevo a aproximar a agulha perto da bexiga e estourar os sonhos. Deve ser uma
proteção psicológica importante e nunca desestimulo um mecanismo de defesa sem
oferecer outro mais maduro que o anterior. [leia mais]
Existe
alguma razão para tanto ardor atrás do fanatismo, uma falta substancial em sua
vida concreta que faz com que os devaneios com um personagem imaginário seja
tão indispensável. Nisso não vai nenhuma acusação, mas uma reflexão.
Queremos
acreditar nos heróis e num tipo de vida infalível.
Quando
defendem o amor de Grey e Ana, de Romeu e Julieta, a Bela e a Fera, ou a fúria
do lobo mau contra os 3 porquinhos as pessoas estão defendendo a si mesmas.
Protegem o seu próprio direito de sonhar. Atacar qualquer uma dessas imagens
lúdicas é mexer num vespeiro de faltas, dores e traumas sem fim.
A
essência da história
O que
prende as leitoras da história de 50 tons de cinza, na minha visão, não é o
sadomasoquismo, mas a dor e sua cura pelo amor. É esse o gancho e fascínio das
mulheres. Elas se vestem no corpo de Ana na tentativa de curar um homem
enigmático e lindo acreditando que o amor tem essa força. Essa ideia reafirma
uma fantasia feminina de que seu sentimento de amor tem o poder mágico de
transformar um homem fechado, amargurado e violento em alguém expansivo, aberto
e regenerado. [leia mais]
O
fascínio por Grey
Ao mesmo
tempo elas se vestem e colocam no corpo de Grey e sabem que também carregam
cicatrizes no coração. Quando protegem Christian dos ofensores elas não estão
levantando a bandeira da pancadaria na cama, mas daquela criança machucada na
infância que precisa de proteção. Ana é a reconfiguração da mãe perfeita que
faltou ao nosso caro bilionário, atenciosa, amorosa, persistente e levemente
indomável.
Agora
coloque sua paixão de lado (sei que será meio difícil), mas o jeito
“prestativo” de Grey, ao contrário do que muitas pensam não é cuidado, mas
checagem, obsessão e doença. E todos defendemos esse tipo de comportamento
dele, pois temos um pezinho nesse tipo de insegurança fundamental sobre o amor.
Queremos prender a paixão numa gaiola imaginando que ela vai se perpetuar para
sempre na mesma intensidade e frequência se estiver protegida. [leia mais]
O
problema é elas imaginarem que o amor que sentem pode curar feridas de uma
pessoa. E isso pode ser demorado, perigoso e corrosivo para suas vidas. Na vida
real pode chegar a assassinato.
O
bilionário generoso
O bilhão
guardado na conta de Grey fascina não por conta do que os críticos rasos
atestam ao acusar as mulheres de interesseiras. Isso é machismo da pior
qualidade. O que essa parte do conto de fadas denuncia é que todos nós em algum
nível imaginamos que ao ter um carro, uma casa e um emprego novo seremos
asseguradamente felizes.
Desagradavelmente
somos possuídos por essa falsa ilusão de que ao preencher nosso vazio com um
iate não iremos mais sofrer ou nos sentir desprotegidos. Queremos sentir que
nosso espaço e o nosso corpo está seguro de qualquer agressão ou solidão
extrema.
Nosso
inconsciente é traiçoeiro porque associa o tamanho de um objeto físico pela sua
capacidade de preencher um espaço emocional. Associamos os tons de liberdade
psicológica ao tamanho do quintal para os cachorros ou as cilindradas de uma
moto veloz no meio da estrada.
Quando as
leitoras veem a Ana ser cercada por carro novo, casa maravilhosa, casamento dos
sonhos, emprego ideal e dona da tal empresa ideal, o que elas querem é
preencher todos os espaços faltantes em suas vidas. Homens também pensam assim.
Todos nós
queremos isso: a sensação de que nenhum mal-estar nos atingirá e que a
riqueza pode prover tudo isso. O texto da autora apenas estimula esse mito
já impregnado na sociedade de que dinheiro converte não só sua conta bancária,
mas sua personalidade. O mito de que o dinheiro abre espaço psicológico para
você poder gozar a vida. Eu sempre insisto, o dinheiro (ou a falta dele) revela
quem você é. Um chato pobre caso enriqueça será um chato andando de Ferrari. Se
é meio maluco sem nenhum tostão será apenas um milionário “excêntrico”.
O
sadomasoquismo
O
sadomasoquismo é uma fixação em estruturas primitivas da mente humana que
associa castigo com amor, no caso de Christian o legado de sua mãe (e a amiga
dela) é claro, o seu “amor” de menino foi associado a submissão, abuso físico e
sexual. Portanto a maneira que ele encontra para reencenar o amor era com dor.
Muitas
pessoas que se identificam com essas práticas podem carregar históricos de
eventos abusivos ou negligentes por parte de figuras cuidadoras, pelos quais
precisavam implorar atenção. Sabe aquela criança que apronta só para ser vista
e levar uma bordoada dos pais? Pois é.
Em alguma
medida todos nos sentimos um pouco negligenciados e vulneráveis e mais uma vez
o livro “50 tons de cinza” mexe com esse imaginário: de uma cura definitiva
para nossa solidão irremediável.
Sexo com
“força”
O século
XXI trouxe características especiais a nossa vida acelerando o tempo e criando
overdoses de estímulos. Por essa razão nossos sentidos se acostumaram com muito
ruído visual, auditivo e cinestésico, ou seja, nos anestesiamos para suportar a
sobrecarga.
Com o
sexo ocorreu o mesmo, perdemos sua naturalidade, agora ele é mais um
instrumento de entretenimento, fuga do tédio da vida e prova desesperada de
amor. Pelo sexo buscamos ser reconhecidos, apreciados e sair leves.
Em
essência quando buscamos sexo é sobre intimidade que estamos tratando, mas
estamos fixados em performance e ego, vivemos defendidos de nossas emoções e
vulnerabildades mais profundas. O sexo seria uma via para descobrir o que
ocultamos de nós mesmos, mas nos apegamos nos malabarismos da cama, quantidade
de orgasmos e brinquedinhos sexuais. Transformamos o sexo num parque de
diversões.
Se isso
for uma via de intimidade profunda para alguns acho ótimo, mas a maioria apenas
se distrai do prato principal da cama: a sensação de comunhão profunda
consigo e o outro.
A
cobrança das mulheres
Muitas
leitoras de “50 tons de cinza” usam o livro como uma arma para emparedar seus
parceiros exigindo um homem que trepe com força porque querem ter certeza mais
que absoluta de que são desejadas. Apenas a presença, a penetração, o carinho
não bastam num mundo onde a desconfiança se coloca como vigilante dos
cafajestes e insensíveis. Se ele quer mostrar seu desejo deve meter até o fundo
sem piedade.
Eu
consigo ouvir um grito de desespero misturado com solidão nesse desejo por
sadismo sexual: “machuque meu corpo para que eu sinta que realmente
existimos”. Existe tanta anestesia no cotidiano que não basta tocar, tem
que prender, privar movimentos e fazer jogos mentais de tortura.
O
contrato
Se isso
não bastasse precisa haver um contrato especificando cada movimento sexual e
comportamental.
Grey
deixou explicito que a relação era com um objeto, Ana deixou isso oculto. Rico,
lindo, poderoso e dominador, esse foi o fascínio inicial. Ela também queria um
objeto, mas é vergonhoso uma mulher admitir isso sob pena de reforçar o
estereotipo da mulher interesseira. Uma relação cheia de regras, enigmas e
quebras de contrato… [leia mais]
“Mas eles
se amaram depois, Fred”. Exato, depois disso tudo eles se amaram. A questão é,
ele se amaram apesar disso ou exatamente por causa disso?
Como é
uma ficção tudo acabou bem, mas na realidade um homem que carrega esse nível de
loucura precisa de tratamento sério e não o toque do “amor”. Relacionamentos
não curam patologias, apenas as revelam.
“Ele
fazia tudo por ela, isso é amor!”
Não
querida leitora, não é amor, isso é fixação, sequestro emocional e roubo de
identidade. Se uma mulher (ou homem) acha que amor é ter um escravo que atenda
todos os seus anseios, faltas e buracos emocionais, existe um grande problema.
De outro
lado quem disse que todas nossas carências devem e podem ser atendidas? Isso
acontecia ilusoriamente na sua infância porque você tinha meia dúzia de
necessidades. Na vida adulta isso é impossível, não haveria tanto leite para
esses bebês-adultos buscando mamadeiras inesgotáveis. Talvez você veja no Mr.
Grey uma versão repaginada de figuras maternas, mas quando um adulto ainda
busca ter todos os seus desejos atendidos ele estará em sérios apuros.
Imagine
um homem por 1 ano “adivinhando” seus pensamentos e cercando você de
absolutamente tudo o que você quer e atendendo inclusive seus desejos mais
destrutivos. Lindo. E por dois anos, dez anos, vinte anos? Os seres humanos tem
ânsia por construir sua própria realidade, apesar de muitos alegarem o desejo
por pais multimilionários.
Receber
cada mimo desse em pouco tempo teria a sensação de asfixia psicológica, ou
seja, um homem que infantiliza você e cria um mundo encantado ao seu redor.
Isso parecia normal quando víamos o Michael Jackson na Neverland? Notem a
função paternal de Grey, um pai (severo) impõe o que ela deve vestir, onde
trabalhar e morar, sem questionamento. Um parceiro de verdade está lado a lado,
pergunta e planeja sonhos compartilhados. [leia mais]
Resumindo
O livro
“50 tons de cinza” na minha visão não me parece um manual “de como os homens
deveriam se comportar na cama”, mas um retrato de como andamos cansados de nós
mesmos e ainda insistimos em jogos psicológicos para sentir algum tom de
vivacidade nessa vida carregada de automatismos.
Se não
estivéssemos esperando um milagre econômico ou uma epopeia amorosa banhada a chicotadas
para dar rumo a essa perda de sentido na vida seria ótimo. Temos que trabalhar
nossas emoções sem descanso para tanto.
Precisamos
de intensidade na vida, quem dera fosse uma meia dúzia de palmadas na hora do
sexo que proporcionasse isso…
http://www.sobreavida.com.br/2012/12/18/50-tons-de-cinza-uma-analise-psicologica/
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