segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

50 Tons de Cinza. Um conto de fadas para mulheres “maduras”


Por Frederico Mattos - Psicólogo

“Gosto não se discute”, discordo, tudo se discute. Não o direito pelo gosto, mas a natureza dele, é o que farei com “50 tons de cinza”. 

A análise 

Não precisei ler a trilogia de “50 tons de cinza” ou ver o filme para tirar valiosas análises sobre mulheres, homens e seus desejos. Quando um paciente fala sobre um parente ou cônjuge, eu não preciso conhecer a pessoa em questão, pois o meu olhar é sempre sobre a própria pessoa que fala. 

Quando as mulheres dão declarações efusivas sobre Christian Grey eu não preciso conhecer o que de fato ele é ou o que faz para entender essas mulheres. O que me interessa é o gesto saboroso que muitas fazem ao descrever um homem que amordaça, bate, faz contratos sobre seus comportamentos sexuais, oferece um mundo de luxo e traz consigo uma dor sem fim. 

Gosto de ver como se vestem com as roupas psicológicas de Ana em sua virgindade, bravura, personalidade indomável e capacidade de gozar ininterruptamente. 

Grey e Ana não existem, é óbvio, isso é uma ficção, mas existem materializados na mente das pessoas devotas de “50 tons de cinza”. Isso para mim é ouro. 

Por que as leitoras são fervorosas? 

Eles são tão concretos para as leitoras e qualquer tentativa de derrubar o mito é seguida de uma chuva de críticas sobre o iconoclasta estraga-prazeres. E entendo o motivo, elas não querem perceber que aquilo é um conto erótico ficcional. Assim como um religioso fanático ou um torcedor fiel, precisam imaginar que aquele céu é possível.

Quando alguém se apega dessa forma a uma imagem fantástica da realidade eu não me atrevo a aproximar a agulha perto da bexiga e estourar os sonhos. Deve ser uma proteção psicológica importante e nunca desestimulo um mecanismo de defesa sem oferecer outro mais maduro que o anterior. [leia mais]

Existe alguma razão para tanto ardor atrás do fanatismo, uma falta substancial em sua vida concreta que faz com que os devaneios com um personagem imaginário seja tão indispensável. Nisso não vai nenhuma acusação, mas uma reflexão.

Queremos acreditar nos heróis e num tipo de vida infalível.

Quando defendem o amor de Grey e Ana, de Romeu e Julieta, a Bela e a Fera, ou a fúria do lobo mau contra os 3 porquinhos as pessoas estão defendendo a si mesmas. Protegem o seu próprio direito de sonhar. Atacar qualquer uma dessas imagens lúdicas é mexer num vespeiro de faltas, dores e traumas sem fim. 

A essência da história 

O que prende as leitoras da história de 50 tons de cinza, na minha visão, não é o sadomasoquismo, mas a dor e sua cura pelo amor. É esse o gancho e fascínio das mulheres. Elas se vestem no corpo de Ana na tentativa de curar um homem enigmático e lindo acreditando que o amor tem essa força. Essa ideia reafirma uma fantasia feminina de que seu sentimento de amor tem o poder mágico de transformar um homem fechado, amargurado e violento em alguém expansivo, aberto e regenerado. [leia mais]


O fascínio por Grey

Ao mesmo tempo elas se vestem e colocam no corpo de Grey e sabem que também carregam cicatrizes no coração. Quando protegem Christian dos ofensores elas não estão levantando a bandeira da pancadaria na cama, mas daquela criança machucada na infância que precisa de proteção. Ana é a reconfiguração da mãe perfeita que faltou ao nosso caro bilionário, atenciosa, amorosa, persistente e levemente indomável.

Agora coloque sua paixão de lado (sei que será meio difícil), mas o jeito “prestativo” de Grey, ao contrário do que muitas pensam não é cuidado, mas checagem, obsessão e doença. E todos defendemos esse tipo de comportamento dele, pois temos um pezinho nesse tipo de insegurança fundamental sobre o amor. Queremos prender a paixão numa gaiola imaginando que ela vai se perpetuar para sempre na mesma intensidade e frequência se estiver protegida. [leia mais]

O problema é elas imaginarem que o amor que sentem pode curar feridas de uma pessoa. E isso pode ser demorado, perigoso e corrosivo para suas vidas. Na vida real pode chegar a assassinato.

O bilionário generoso

O bilhão guardado na conta de Grey fascina não por conta do que os críticos rasos atestam ao acusar as mulheres de interesseiras. Isso é machismo da pior qualidade. O que essa parte do conto de fadas denuncia é que todos nós em algum nível imaginamos que ao ter um carro, uma casa e um emprego novo seremos asseguradamente felizes.

Desagradavelmente somos possuídos por essa falsa ilusão de que ao preencher nosso vazio com um iate não iremos mais sofrer ou nos sentir desprotegidos. Queremos sentir que nosso espaço e o nosso corpo está seguro de qualquer agressão ou solidão extrema.

Nosso inconsciente é traiçoeiro porque associa o tamanho de um objeto físico pela sua capacidade de preencher um espaço emocional. Associamos os tons de liberdade psicológica ao tamanho do quintal para os cachorros ou as cilindradas de uma moto veloz no meio da estrada.

Quando as leitoras veem a Ana ser cercada por carro novo, casa maravilhosa, casamento dos sonhos, emprego ideal e dona da tal empresa ideal, o que elas querem é preencher todos os espaços faltantes em suas vidas. Homens também pensam assim.

Todos nós queremos isso: a sensação de que nenhum mal-estar nos atingirá e que a riqueza pode prover tudo isso. O texto da autora apenas estimula esse mito já impregnado na sociedade de que dinheiro converte não só sua conta bancária, mas sua personalidade. O mito de que o dinheiro abre espaço psicológico para você poder gozar a vida. Eu sempre insisto, o dinheiro (ou a falta dele) revela quem você é. Um chato pobre caso enriqueça será um chato andando de Ferrari. Se é meio maluco sem nenhum tostão será apenas um milionário “excêntrico”.

O sadomasoquismo

O sadomasoquismo é uma fixação em estruturas primitivas da mente humana que associa castigo com amor, no caso de Christian o legado de sua mãe (e a amiga dela) é claro, o seu “amor” de menino foi associado a submissão, abuso físico e sexual. Portanto a maneira que ele encontra para reencenar o amor era com dor.

Muitas pessoas que se identificam com essas práticas podem carregar históricos de eventos abusivos ou negligentes por parte de figuras cuidadoras, pelos quais precisavam implorar atenção. Sabe aquela criança que apronta só para ser vista e levar uma bordoada dos pais? Pois é.

Em alguma medida todos nos sentimos um pouco negligenciados e vulneráveis e mais uma vez o livro “50 tons de cinza” mexe com esse imaginário: de uma cura definitiva para nossa solidão irremediável.

Sexo com “força”

O século XXI trouxe características especiais a nossa vida acelerando o tempo e criando overdoses de estímulos. Por essa razão nossos sentidos se acostumaram com muito ruído visual, auditivo e cinestésico, ou seja, nos anestesiamos para suportar a sobrecarga.

Com o sexo ocorreu o mesmo, perdemos sua naturalidade, agora ele é mais um instrumento de entretenimento, fuga do tédio da vida e prova desesperada de amor. Pelo sexo buscamos ser reconhecidos, apreciados e sair leves.

Em essência quando buscamos sexo é sobre intimidade que estamos tratando, mas estamos fixados em performance e ego, vivemos defendidos de nossas emoções e vulnerabildades mais profundas. O sexo seria uma via para descobrir o que ocultamos de nós mesmos, mas nos apegamos nos malabarismos da cama, quantidade de orgasmos e brinquedinhos sexuais. Transformamos o sexo num parque de diversões.
Se isso for uma via de intimidade profunda para alguns acho ótimo, mas a maioria apenas se distrai do prato principal da cama: a sensação de comunhão profunda consigo e o outro.

A cobrança das mulheres

Muitas leitoras de “50 tons de cinza” usam o livro como uma arma para emparedar seus parceiros exigindo um homem que trepe com força porque querem ter certeza mais que absoluta de que são desejadas. Apenas a presença, a penetração, o carinho não bastam num mundo onde a desconfiança se coloca como vigilante dos cafajestes e insensíveis. Se ele quer mostrar seu desejo deve meter até o fundo sem piedade.

Eu consigo ouvir um grito de desespero misturado com solidão nesse desejo por sadismo sexual: “machuque meu corpo para que eu sinta que realmente existimos”. Existe tanta anestesia no cotidiano que não basta tocar, tem que prender, privar movimentos e fazer jogos mentais de tortura.

O contrato

Se isso não bastasse precisa haver um contrato especificando cada movimento sexual e comportamental.

Grey deixou explicito que a relação era com um objeto, Ana deixou isso oculto. Rico, lindo, poderoso e dominador, esse foi o fascínio inicial. Ela também queria um objeto, mas é vergonhoso uma mulher admitir isso sob pena de reforçar o estereotipo da mulher interesseira. Uma relação cheia de regras, enigmas e quebras de contrato… [leia mais]

“Mas eles se amaram depois, Fred”. Exato, depois disso tudo eles se amaram. A questão é, ele se amaram apesar disso ou exatamente por causa disso?

Como é uma ficção tudo acabou bem, mas na realidade um homem que carrega esse nível de loucura precisa de tratamento sério e não o toque do “amor”. Relacionamentos não curam patologias, apenas as revelam.


“Ele fazia tudo por ela, isso é amor!” 

Não querida leitora, não é amor, isso é fixação, sequestro emocional e roubo de identidade. Se uma mulher (ou homem) acha que amor é ter um escravo que atenda todos os seus anseios, faltas e buracos emocionais, existe um grande problema.

De outro lado quem disse que todas nossas carências devem e podem ser atendidas? Isso acontecia ilusoriamente na sua infância porque você tinha meia dúzia de necessidades. Na vida adulta isso é impossível, não haveria tanto leite para esses bebês-adultos buscando mamadeiras inesgotáveis. Talvez você veja no Mr. Grey uma versão repaginada de figuras maternas, mas quando um adulto ainda busca ter todos os seus desejos atendidos ele estará em sérios apuros.

Imagine um homem por 1 ano “adivinhando” seus pensamentos e cercando você de absolutamente tudo o que você quer e atendendo inclusive seus desejos mais destrutivos. Lindo. E por dois anos, dez anos, vinte anos? Os seres humanos tem ânsia por construir sua própria realidade, apesar de muitos alegarem o desejo por pais multimilionários.

Receber cada mimo desse em pouco tempo teria a sensação de asfixia psicológica, ou seja, um homem que infantiliza você e cria um mundo encantado ao seu redor. Isso parecia normal quando víamos o Michael Jackson na Neverland? Notem a função paternal de Grey, um pai (severo) impõe o que ela deve vestir, onde trabalhar e morar, sem questionamento. Um parceiro de verdade está lado a lado, pergunta e planeja sonhos compartilhados. [leia mais]

Resumindo

O livro “50 tons de cinza” na minha visão não me parece um manual “de como os homens deveriam se comportar na cama”, mas um retrato de como andamos cansados de nós mesmos e ainda insistimos em jogos psicológicos para sentir algum tom de vivacidade nessa vida carregada de automatismos.

Se não estivéssemos esperando um milagre econômico ou uma epopeia amorosa banhada a chicotadas para dar rumo a essa perda de sentido na vida seria ótimo. Temos que trabalhar nossas emoções sem descanso para tanto.

Precisamos de intensidade na vida, quem dera fosse uma meia dúzia de palmadas na hora do sexo que proporcionasse isso…

http://www.sobreavida.com.br/2012/12/18/50-tons-de-cinza-uma-analise-psicologica/

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