Uma doutrina em questão
No Le Monde Diplomatique Brasil
O desafio é recuperar a capacidade do Estado de ter um papel
estratégico na definição e controle das políticas públicas geridas pelo
setor privado. Trata-se de buscar uma nova equação entre os interesses
da cidadania e os interesses privados, na defesa do interesse público.
Nos anos 1990, as instituições internacionais formuladoras de
políticas globais – como a Organização para a Cooperação e o
Desenvolvimento Econômico (OCDE), o Banco Mundial e a Comissão Europeia –
iniciaram uma ofensiva para privatizar bens públicos e submeter a ação
do Estado e as políticas públicas aos interesses das empresas privadas.
Secundada por organismos internacionais como o Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) e algumas universidades como a
London School of Economics, na Inglaterra, e a Harvard Kennedy School of
Government, nos Estados Unidos, essa doutrina está altamente difundida,
sendo também amplamente propagada por revistas especializadas e pelos
grandes órgãos de imprensa.1
A ofensiva neoliberal percorreu um caminho até se tornar hegemônica.
Segundo Pierre Bourdieu, suas ideias são compostas de “lugares-comuns –
no sentido aristotélico das noções ou teses com as quais se argumenta,
mas sobre as quais não se argumenta nunca – e devem o essencial de sua
força de convicção ao prestígio do lugar do qual emanam e ao fato de
que, circulando intensamente, de Berlim a Buenos Aires e de Londres a
Lisboa, estão presentes simultaneamente por todos os lados”.2
Os argumentos básicos dessa doutrina são de que o Estado deve ser
mínimo, deixando para a empresa privada a gestão das políticas públicas,
que seria comprovadamente mais eficiente e eficaz quando realizada por
empresas e seguindo as leis do mercado. Outro argumento, complementar, é
a necessidade de fazer caixa diante dos déficits no orçamento do
Estado. A teoria da new public management condensa essa doutrina e vem
coagindo governos a adotar “métodos e técnicas gerenciais advindos do
setor privado e, sobretudo, a conceder, contratualizar e terceirizar
serviços e responsabilidades a empresários e a agentes tidos como
‘privados sem fins lucrativos’ (ou ‘públicos não estatais’)”.3
O impacto dessa doutrina no Brasil é enorme. Apesar das denúncias de
subvalorização do patrimônio público, apenas em 1997 a venda de empresas
estatais totalizou US$ 23,7 bilhões.4 Responsável pela formulação da
reforma do Estado, o ministro de FHC, Luiz Carlos Bresser Pereira,
considera que somente a segurança pública e a formulação das políticas
públicas devem permanecer como responsabilidade direta do Estado. Tudo o
mais, como a prestação dos serviços de saúde, educação, desenvolvimento
científico e tecnológico, serviços culturais etc., seria mais bem
administrado por empresas privadas.5
Como? Promovendo a transformação de empresas estatais em privadas; a
publicização de organizações estatais, convertendo-as em instituições de
direito privado, públicas, mas não estatais (Organizações Sociais –
OSs); a terceirização, com a transferência para o setor privado de
serviços auxiliares ou de apoio antes executados diretamente pelo
Estado. Mais do que isso, porém, é central nessas propostas de mudança
do papel do Estado que este passe a adotar critérios de mercado para a
formulação e aplicação de políticas públicas. A eficiência e eficácia
são brandidas em defesa das empresas privadas, que seriam muito mais
efetivas que as instituições públicas.
Não importa se o que se afirma é verdade. O que importa é que a
afirmação legitima uma política que é, de fato, uma expropriação da
comunidade de uma parte de seus bens. Segundo Ugo Mattei, toda
privatização decidida por uma autoridade pública priva cada cidadão de
sua quota-parte de um bem comum. Como consequência, “a expropriação dos
bens comuns em favor de interesses privados – das multinacionais, por
exemplo – coloca os governos em uma condição de fraqueza e dependência
com relação a essas empresas, que passam a ditar as condições de consumo
e exploração desses serviços. A situação gerada pelas privatizações na
Grécia e na Irlanda é particularmente emblemática dessa nova condição”.6
Mesmo o argumento da maior eficácia do setor privado na gestão de
serviços públicos é contestado por recente pesquisa do Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que afirma que a produtividade do
setor público é maior que a do setor privado. Segundo Marcio Pochmann,
então presidente do instituto, “há muita ideologia e poucos dados na
argumentação de que o Estado é improdutivo. O estudo realizado abrangeu o
período de 1995 a 2006, e em todos os anos pesquisados a produtividade
do setor público foi superior em 35% à do setor privado”.7
O fato é que a desestatização aconteceu no Brasil e modificou
substancialmente a economia e o papel do Estado. “Conceitos como
concessão, regulação e parcerias público-privadas concretizam um novo
modelo de Estado, baseado em relações contratuais com o setor privado e
responsável por definir objetivos de políticas públicas a serem
colocadas em prática com a parceria do setor privado.
Simultaneamente
esse mesmo movimento se faz presente na relação do Estado com o terceiro
setor. Conceitos como Organizações Sociais, Oscips [Organizações da
Sociedade Civil de Interesse Público], Serviços Sociais Autônomos e
outros materializam uma série de relações público-privadas em áreas como
saúde, educação e cultura...”8
As consequências são desastrosas do ponto de vista do interesse
público. Tomando o caso da prefeitura de São Paulo nas gestões de José
Serra e Gilberto Kassab, as concessões, a terceirização e
contratualização via OSs e Oscips na área de saúde pulverizaram de tal
forma o atendimento que o poder público se viu fragilizado e esvaziado,
tornando-se um mero espectador da gestão dos serviços médicos públicos.9
O desafio, partindo dessa realidade, é recuperar a capacidade do
Estado de ter um papel estratégico na definição e controle das políticas
públicas geridas pelo setor privado. Trata-se de buscar uma nova
equação entre os interesses da cidadania e os interesses privados, na
defesa do interesse público. Para isso o Estado precisa assumir o
protagonismo, qualificar os funcionários públicos e desenvolver suas
capacidades de planejamento e mecanismos efetivos de regulação e
controle que garantam políticas voltadas ao interesse coletivo. No
entanto, como a questão do papel do Estado e do modelo de gestão é
política e não técnica, a democratização da gestão pública é o único
caminho para enfrentar os interesses privatistas e equilibrar essa
relação entre os distintos atores, assegurando que no centro das
decisões esteja a participação cidadã e mecanismos para o controle
social das políticas públicas.
Se considerarmos que acima de tudo está o bem-estar dos cidadãos, a
atuação do setor privado na gestão pública precisa se submeter a esse
objetivo e se limitar a áreas específicas. Há políticas públicas em que a
administração por empresas privadas é incompatível com o interesse
público, como afirma a prefeitura de Paris ao retomar a gestão direta do
fornecimento de água na cidade, retirando-a das mãos das multinacionais
que antes a geriam.
Silvio Caccia Bava
Diretor e editor-chefe do Le Monde Diplomatique Brasil
1 Silvio Caccia Bava, “A produção da agenda social: uma
discussão sobre contextos e conceitos”, Cadernos Gestão Pública e
Cidadania, v.31, Fundação Getulio Vargas, São Paulo, 2003.
2 Pierre Bourdieu, “Una nueva vulgata planetaria”, Santiago do Chile, Editorial Aún creemos en los sueños, 2002, p.42.
3 Francisco Fonseca, “A privatização da gestão pública”, 8 jun. 2013. Disponível em: cartamaior.com.br.
4 Cristina Andrewsi e Alexander Kouzminli, “O discurso da nova administração pública”, Lua Nova, São Paulo, n.45, 1998.
5 Bresser Pereira, “A reforma do Estado dos anos 90: lógica e
mecanismos de controle”, Cadernos MARE da Reforma do Estado, 1997, p.16.
6 Ugo Mattei, “Por uma Constituição baseada nos bens comuns”, Le Monde Diplomatique Brasil, dez. 2011.
7 Marcio Pochmann, “Produtividade no setor público supera a do setor privado”, 25 ago. 2009. Disponível em: cartamaior.com.br.
8 Octavio Penna Pieranti, Silvia Rodrigues e Alketa Peci,
“Governança e new public management: convergências e contradições no
contexto brasileiro”, XXXI Encontro da Anpad, Rio de Janeiro, 2007.
9 Francisco Fonseca, op. cit.
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