Por Edson Furlan, no blog de Luís Nassif
Ainda que a lei iguale formalmente homens e
mulheres, o que se observa no dia a dia é toda uma estrutura social erigida de
modo a manter relações de subjugação, domínio e controle. O sistema patriarcal
e o machismo em nossa sociedade não são as principais bases desse edifício. Há
também sistema de ideias, conjunto de costumes, de valores, de interesses e
crenças religiosas nos quais estão cravadas as grades que cercam os corpos e enclausuram
as almas femininas.
Antes de estar na vanguarda da libertação, as
religiões em geral situam-se na retaguarda do sistema repressor que procura
manter indefinidamente o controle sobre o corpo, comportamentos, desejos e
anseios femininos.
Para isso utilizam um forte instrumento que não
apenas causa um enorme constrangimento pela reprovação social que o estigma
causa, mas também em virtude do temor do que o futuro ao atingido espera. Esse
instrumento é a ideia de pecado.
O pecado como instrumento de controle
Homens e mulheres são iguais em direitos e
obrigações segundo nossa Constituição Federal. A igualdade de todos perante a
lei, sem distinção de qualquer natureza, é o que consta em seu artigo 5°,
ninguém sendo obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude
de lei.
Tal como nossas leis, a religião exerce limitação ao
livre agir do indivíduo para evitar comportamentos prejudiciais à sociedade e a
outros indivíduos. Essas alterações nas
condutas individuais são operadas principalmente por meio da ideia de pecado.
Tradução do hebraico
hhattá'th ou do grego hamartía, pecado, na forma verbal tanto hebraica (hhatá) quanto grega
(hamartáno) significa errar. Do ponto de vista Bíblico é qualquer coisa que
seja contrária à personalidade, aos padrões e à vontade de Deus - seja em
palavra, ação, ou deixando de fazer o que deve ser feito (como exemplos temos
os Dez Mandamentos da Bíblia ou os Sete Pecados Capitais da Igreja Católica). A
consequência punitiva para o pecado é a morte, “porque o salário do pecado é a
morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna em Cristo Jesus nosso Senhor”
(Romanos, 6:23).
O peso maior do pecado feminino
Criada a partir da costela de Adão, um homem - desde
o início tendo sua origem sob o estigma da dependência masculina, a mulher foi
o primeiro ser humano pecador, pois contrariando a vontade de Deus comeu o
fruto proibido e induziu o homem, Adão, a pecar. A punição a ela dirigida por
Deus não foi pequena:
“E à mulher disse: Multiplicarei grandemente a dor
da tua conceição; em dor darás à luz filhos; e o teu desejo será para o teu
marido, e ele te dominará.” (Gênesis, 3:16)
Observa-se nessa e noutras passagens que a dominação
exercida pelo homem sobre a mulher adquire um consentimento divino, uma
superioridade moral e um embasamento religioso.
Os pecados mais intensamente combatidos pelas
religiões no que se refere às mulheres são aqueles através dos quais se
procura, de forma direta ou indireta, exercer controle sobre o desejo e sobre o
comportamento sexual feminino.
A partir de seu entendimento da Bíblia muitas
religiões consideram pecado a vaidade, a adoção de métodos contraceptivos, a
realização do aborto, o divórcio, a orientação homossexual, ingestão de bebidas
alcoólicas, o ato sexual antes do casamento etc.
O fato de as grandes religiões terem sido fundadas
por homens explica não só o condicionamento da liberdade individual feminina à
vontade masculina, mas também a própria ideia de um ente masculino ter
encarnado a figura do criador, contrariando aquilo geralmente encontrado na
natureza: a vida provém DA água, DA terra, DA fêmea, logo a inteligência
criadora deveria advir de um ente feminino, não de um masculino. Não DO
criador, sim DA criadora.
A emancipação feminina
Com a emancipação feminina, a conquista de espaços
sociais e a busca da igualdade de tratamento as mulheres passaram a assumir
abertamente comportamentos não aceitos por certas religiões.
A construção de “uma sociedade livre, justa e
solidária” e a promoção do “bem de todos, sem preconceitos de origem, raça,
sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”, objetivos
fundamentais elencados no artigo 3° de nossa Constituição Federal colidem
frontalmente como muita coisa pregada em diversas religiões, que, de modo
diferente da lei, cobram comportamentos que poderiam não ser benéficos para o
indivíduo e para a sociedade.
A emancipação feminina é um caminho sem volta.
Conseguirão as religiões continuar com velhos discursos ou precisarão se
autoavaliar para adequar o “discurso divino” às novas mudanças sociais
encabeçadas pelos movimentos femininos?
O que presente em cada religião pode realmente ser
considerado algo divino?
Quando até leis humanas parecem mais justas que as
do "sábio criador", é preciso saber discernir se não atribuíram a um
o que na verdade eram em prol dos interesses de outros - no caso, homens.
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