quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

O discurso perigoso e reacionário da corrupção

Por Márcio Berclaz

Corrupção. Expressão de significado altamente negativo, Corromper é tirar as coisas do seu devido lugar, subverter a ordem, enfim, praticar algo valorado negativamente e prejudicial ao interesse geral da coletividade para fim de se obter um privilégio ou uma vantagem indevida. O “corrupto” apodrece a política, enfraquece a democracia e prejudica o Estado no cumprimento do seu papel. Todos de acordo.

O problema é a forma como se  estrutura o discurso vulgar, simplificado, fundamentalista e “messiânico” construído em torno do tema da corrupção. O argumento endêmico que tenta localizar e extrair ganhos oportunistas de um fenômeno que, antes de ser local, é reconhecidamente global, decorrente, em, boa parte, do próprio sistema capitalista de circulação no tabuleiro do xadrez econômico mundial. Afinal, vale perguntar, a partir dele, para onde vamos? Onde queremos chegar?

O que fazer quando a ordem e a lógica desse sistema-mundo capitalista  estimulam o egoísmo, a ambição, a exploração e opressão de vítimas pulverizadas geradas em larga escala para uma violência institucionalizada muito pior do que aquela produzida individualmente e agravada por um quadro de brutal desigualdade social e de classe? Vítimas do desemprego, vítimas das guerras, vítimas da falta de comida e dos venenos agrotóxicos que destroem o meio ambiente num mundo onde, repita-se, tolera-se, silenciosamente, que mais de um bilhão de pessoas passem fome; nesse tempo do mundo atual, que não é novo nem nada admirável, as terras continuam a ser desigualmente distribuídas; pior do que isso, incentiva-se financeiramente quem não precisa ou não poderia ser suportado com recursos públicos. O resultado desse perverso cenário é fácil imaginar, porém difícil de reverter.

Não faz muito, o diferenciado jornal francês “Le Monde” publicou uma semana de reportagens retratando episódios de corrupção na China. Os Estados Unidos da América mantém uma prisão de exceção e relatórios recentes indicam uso de tortura em nome da “guerra ao terror”. No Brasil, há meses, trata-se o “escândalo” da Petrobrás como se fosse algo efetivamente “novo”, quando, em verdade, desde o nosso descobrimento-conquista, há pouco mais de quinhentos anos, estamos recheados de episódios similares.

Quantos casos desses de corrupção já envolveram doleiros, agentes políticos, empresários e banqueiros? Será a primeira vez que empreiteiras são investigadas ou acusadas de envolvimento com a corrupção? Esqueceu-se do que houve nas privatizações? O que pensam as entidades empresariais?  Qual é o debate sério e atual sobre a Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/92)? O que verdadeiramente muda ou se acrescenta com a chamada Lei Anticorrupção (Lei 12.846/13)? Em rápido retrato, as Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI’s)  do Congresso Nacional, as “megaoperações” de nomes criativos que brotam daqui e dali, o sistema político-eleitoral de campanhas constrangedoramente milionárias e as absurdas verbas publicitárias gastas como “propaganda oficial” são bem reveladoras para condensar o quanto ainda se está longe da República.

Lamentavelmente as mesmas situações-tipo de ilicitude supostas em relação à Petrobrás aconteceram e acontecem diariamente em diversos entes federados do Estado brasileiro. As propinas, comissões e percentuais são práticas disseminadas. Isso é um óbvio que precisa ser dito. Para piorar, a imprensa informa superficial e temporariamente, mas não ensina, não educa, pouco explica e analisa. Alguém já viu uma reportagem elucidativa sobre a Lei de Licitações (Lei 8.666/93), explicando os requisitos do ato administrativo ou questionando a importância de acompanhamento da publicidade e transparência obrigatória dos atos oficiais? Definitivamente, as “notícias” não transcendem os episódios concretos em busca da construção da cidadania.

Com os meios de comunicação social que temos, de modo geral, a corrupção só interessa como fato jornalístico quando ela permite a exposição interessada e lucrativa de um episódio com nomes e fatos concretos, de preferência se estivermos falando de celebridades; pouco discute-se quanto as causas do fenômeno e quase nada se fala do direito fundamental à probidade administrativa. Falar de corrupção em ir às causas é como querer entender e aplicar direito penal e processo penal sem entender um pouco de criminologia.  Só serve para quem, apesar da pose de paladino, deseja manter tudo exatamente como está ou é um ingênuo e feliz e alienado ser-aí.
É nesse contexto que, dentre as diversas análises possíveis, destaca-se alguns pontos para consideração.

O primeiro tem por diagnóstico a falta de eficiente mecanismos de controle interno administrativo, financeiro, contábil e jurídico das pessoas jurídicas de direito público; em palavra da moda, é tempo de se entender melhor como devem funcionar os mecanismos de “compliance”. Por mais que se saiba que o controle interno, previsto constitucionalmente na parte final do artigo 70, é o mais eficaz e poderoso mecanismo para evitar ou reprimir fraudes e malfeitos, como é que essa estratégia pode funcionar de modo satisfatório se muitos ocupantes do cargo de “controlador interno” são servidores comissionados, ou seja, de livre nomeação e exoneração pelo Chefe de Poder (artigo 37, V, da Constituição), e não servidores admitidos pela via do concurso público que assegura igualdade e isonomia (artigo 37, II, da Constituição)? Como aceitar que Secretários Municipais, Estaduais e Ministros sejam nomeados com base em critério exclusivamente político e sem mínimos requisitos de mérito e currículo para ocuparem postos relevantes que exigem um fazer administrativo técnico e profissional? O que os Tribunais de Contas têm dito ou feito sobre isso? Quais dos meios de comunicação social que fazem bons diagnósticos de jornalismo dito “investigativo” para avaliar as estruturas de controle interno ou a necessidade de mudarmos os critérios de provimento dos principais cargos do Poder Executivo?

Por segundo, faltam recursos humanos e materiais do Polícia e do Ministério Público para combater e reprimir a corrupção. Quem não percebe que mesmo a festejada Polícia Federal têm algumas de suas operações “esvaziadas” depois do estrépito inicial? O que dizer, então, da Polícia Civil, cujas delegacias especializadas na repressão do crime organizado ou dos crimes econômicos apresentam orçamento absolutamente desproporcional e insuficiente em comparação com a averiguação de outros delitos, como o tráfico de entorpecentes? Isso sem falar nos problemas das nomeações políticas na Polícia, muitas derivadas como causa da escolha do Secretário de Segurança se dar por critérios da mesma ordem. Falando agora do Ministério Público, arrisca-se afirmar que o número de Promotorias e Procuradorias com atuação exclusiva na defesa do patrimônio público no âmbito do Ministério Público é escancaradamente insuficiente para demanda, que não pode ser apenas a movida por provocação, mas sobretudo a buscada de modo planejado e criterioso, de ofício.  De modo geral, a atuação não é regionalizada e carece de maior eficácia, de revisão de método e critérios objetivos para eleição de prioridades. Por que motivo seriam montadas “forcas tarefas” se a estrutura ordinária desse conta do trabalho? Quais casos que o Ministério Público investiga e apura de ofício, ou seja, independentemente de provocação? Os quadros de peritos e auditores são suficientes? Por que não há maior integração e troca de informações entre membros do Ministério Público brasileiro? Será que o Ministério Público conseguirá ter uma adequada atuação eminentemente preventiva na proteção ao patrimônio público ou dependerá sempre de “delações premiadas” e da pressão midiática?
A terceira parada  passa pelo Legislativo, que deve (ria) fiscalizar o Executivo como missão precípua. Por que parece que não o faz à contento? Até quando admitiremos as “emendas” e os acordos de “governabilidade”? Quando a população também cobrará a conta de Vereadores, Deputados e Senadores? O controle na aprovação do orçamento ocorre na prática?

Quarto. O que dizer de um ordenamento jurídico que, para o crime praticado por um Prefeito de subtração de recursos públicos, prevê pena mínima de 02 (dois) anos quando o “tráfico” de entorpecentes tem pena mínima de 05 (cinco) anos? O que dizer de uma legislação que se preocupa em punir os crimes patrimoniais individuais com rigor desmedido, não observando o mínimo cuidado com os crimes tributários (que absurdamente podem ser extintos depois da ação penal com o simples pagamento do tributo, como se o processo penal servisse para cobrança de dívida?), os crimes financeiros e os denominados “delitos de colarinho branco”? Pode o patrimônio privado individual merece proteção mais rigorosa e efetiva do que a proteção do acervo patrimonial que é de todos?

Como quinto momento dessa reflexão, forçoso concluir que um elemento de caráter difuso crucial e decisivo para mudar esse processo é a postura do cidadão, que, mais do que nunca, precisa exercer seu poder para fiscalizar junto e com as instituições, muitas vezes para vigiar a postura adotada pelas próprias instâncias de poder da sociedade política, também para cobrar estatísticas, ações  e resultados. Cidadania pressupõe conhecimento dos direitos e adoção de postura ativa para que esses sejam respeitados. Nesse sentido, merece indagação que tipo de fiscalização ordinária que licitações milionárias de obras públicas, transporte, merenda escolar, uniforme escolar, aquisição de medicamentos e terceirizações duvidosas etc recebem de parte das estruturas do poder constituído, dos meios de comunicação e, em último grau, da própria sociedade?

Derradeiramente, talvez o mais importante de tudo. Para além do irritante senso comum vigente – que de modo cínico e oportunista tenta associar a corrupção com o simples fato da esfera pública existir e funcionar, é chegada a hora de  reconhecer que a identificação da corrupção na estrutura do Estado exige um movimento no sentido do seu fortalecimento como conquista civilizatória. O  Estado constitucional, tal como a democracia, com todos os seus muitos  problemas, ainda é a melhor das alternativas. Embora os meios de comunicação e o discurso de mídia insistam em revelar o contrário, quanto maior a incidência ou o índice de percepção de corrupção, maior e melhor haverá de ser a estrutura do Estado, o que inclui controle interno e o aparelhamento de instituições (Tribunais de Contas, Poder Legislativo, Ministério Público e Poder Judiciário, por exemplo), em condições de desempenharem os melhores serviços. Pontualmente. Nas Cortes de Contas, as nomeações políticas precisam ter fim para um provimento via concurso público e por critérios técnicos; quem, porém, aposta efetivamente nessa pauta? Já no que diz respeito ao para o Ministério Público, a prevenção e o combate à corrupção precisam deixar de ser apenas retórica de simbólico discurso para revestirem-se de prioridade prática e estratégica interna, o que pressupõe fortalecimento de órgãos auxiliares e criação de órgãos de execução de atribuição exclusiva suficientemente treinados e aparelhados para o cumprimento do seu papel. Ao lado disso quer-se um Legislativo que efetivamente fiscalize ao invés de “negociar” vantagens e um Poder Judiciário ocupado de uma gestão responsável não só quantitativa, mas qualitativa, das tutelas coletivas relacionadas à probidade administrativa.

Em suma, o discurso anticorrupção carece de melhor reflexão crítica. Os olhos, as mesas, as lentes e os microfones estão voltados para a exploração superficial na qual cada episódio merece uma abordagem repetida e fugaz que logo cai no esquecimento, sem uma avaliação retrospectiva, de memória. Sem essa análise de conjuntura, sem extração inteligente de resultados sistêmicos para reduzir a complexidade na leitura do problema,  continua-se do mesmo modo, produzindo um discurso tortamente reacionário incapaz de produzir novos e transformadores horizontes. Um discurso cego, corrupto e desonesto na origem, incoerente com o que se diz pretender reprimir e combater.

Márcio Berclaz é Promotor de Justiça no Estado do Paraná. Doutorando em Direito das Relações Sociais pela UFPR (2013/2017), Mestre em Direito do Estado também pela UFPR (2011/2013). Integrante do Grupo Nacional de Membros do Ministério Público (www.gnmp.com.br) e do Movimento do Ministério Público Democrático (www.mpd.org.br). Membro do Núcleo de Estudos Filosóficos (NEFIL) da UFPR. Autor dos livros “Ministério Público em Ação (4a edição – Editora Jusvpodium, 2014) e “A dimensão político-jurídica dos conselhos sociais no Brasil: uma leitura a partir da Política da Libertação e do Pluralismo Jurídico (Editora Lumen Juris, 2013).

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