Ouviu-se bastante na última semana que as eleições de 2014 marcariam
uma virada conservadora na política brasileira cuja causa seria o ciclo
de protestos iniciado em junho do ano passado. Dizendo isto, contudo,
apenas registra-se dois fatos - houve protestos, cresceu o voto da
direita - sem oferecer explicação. O que seria preciso estabelecer é a
relação causal entre manifestações e comportamentos eleitorais, o que
chavões como "a direita saiu do armário" não fazem. Do que exatamente
estamos falando: que parte da direita votava no PT, mas deixou de
fazê-lo? Que os manifestantes teriam se tornado eleitores da direita?
Que graças às manifestações, parte da população brasileira se descobriu
de direita? Se sim, porquê?
Desde antes de junho de 2013 já se
invocava no Brasil as lições e advertências de Egito (a vitória da
Irmandade Muçulmana e o golpe militar), Espanha (a derrota do Partido
Socialista e o retorno do Partido Popular) e Grécia (o fim do
social-democrata Pasok e o crescimento da Aurora Dourada): grandes
mobilizações de massa provocam guinadas à direita. Não se pode negar que
a tese parece ter evidências que a corroborem; se quiséssemos ir mais
longe, poderíamos citar as eleições francesas pós-Maio de 68 francês.
Mas dado que nunca se chega a dizer porque isto ocorre, não estranha se
os mais novos tratarem a ideia como uma crendice que os mais velhos
repetem - como não nadar depois do almoço ou não comer melancia com
leite.
Crises de projeto e crises de representação
Encontrar
as causas destas "guinadas" exigiria analisar cada caso isoladamente
para descobrir o que pode ser generalizado. Explicar o bicho-papão,
contudo, tira dele um pouco da aura de tabu cuja quebra implica castigo.
Tomemos o caso egípcio. Somente a ignorância justifica que se diga que o
golpe militar "puniu" a temeridade de quem foi às ruas contra um regime
opressivo há 30 anos no poder, ao fim do qual somente um partido de
oposição (a Irmandade Muçulmana) tinha base e estrutura para ganhar as
eleições e as forças armadas eram o grupo de interesse mais poderoso do
país. O que teriam feito nossos especialistas de fim-de-semana -
aconselhado as multidões que começavam a ocupar a Praça Tahrir que
voltassem para casa, se contentassem com a ditadura que já tinham e
esperassem que ela caísse por seu próprio peso?
De Espanha e
Grécia, por outro lado, é possível tirar lições - embora não
necessariamente do tipo que se espera. Em ambos países é inexato falar
em "ascensão da direita"; o que ocorreu, mais exatamente, foi uma queda
da esquerda. Isto é, menos que uma migração de votos da esquerda para a
direita, ocorreu uma queda súbita do apoio à "esquerda oficial",
expressa imediatamente no aumento de abstenções e votos inválidos e no
crescimento gradual de alternativas menores.
Mas como "derrota
da esquerda" e "vitória da direita" podem não ser sinônimos? Aí
justamente está a questão. Aqueles que abandonaram a esquerda oficial o
fizeram por entender que esta - de quem se esperaria, diante da crise
financeira, assumir a luta pela regulação do mercado de capitais e
contra as políticas de austeridade - havia abdicado de seu papel. Para
estes, a polarização "oficial" entre esquerda e direita deixara de
representar as polarizações realmente existentes; o que havia era uma
crise de representação. Abrem-se aí duas perspectivas incomensuráveis.
Para quem segue dentro das coordenadas do sistema representativo,
"derrota da esquerda" necessariamente quer dizer "vitória da direita",
porque "esquerda" e "direita" seguem significando o mesmo: a esquerda
oficial e a direita oficial. Para quem deixou de se sentir representado,
as opções oficiais "esquerda" e "direita" se tornaram suficientemente
indistintas para que a possibilidade de vitória da "direita" lhes pareça
menos importante que o desejo de alterar as próprias coordenadas.
Crises de representação em geral são provocadas por crises de projeto político,
mas não se confundem com elas; caracterizam-se pelo aumento da rejeição
das coordenadas do sistema de representativo, o que se traduz em
fragmentação do eleitorado e crescimento do não-voto (abstenções,
brancos e nulos). Além disto, os dois tipos de crise têm temporalidades
distintas.
Enquanto as crises de projeto podem se resolver com a
alternância no poder, a resolução de crises de representação tende a ser
mais lenta que os ciclos eleitorais, retardada pela inércia própria das
instituições, o espírito de corpo da classe política e o tempo que leva
para que novas alternativas se tornem viáveis. Este último fenômeno,
aliás, é o que parece começar agora na Espanha (com o Podemos e
diferentes experiências municipais) e já vem acontecendo na Grécia com o
Syriza (que, nossos especialistas não dizem, só ficou atrás da coalizão
entre PASOK e direita em 2012 porque teve todo o establishment europeu
jogando contra).
Embora o resultado imediato seja o mesmo - o
sucesso eleitoral do "outro lado" -, aqueles para quem há uma crise
aguda de representação podem preferir assumir este risco pelo tempo que
for necessário até a consolidação de uma nova alternativa. Tornaram-se
imunes à ameaça porque, para eles, a responsabilidade pela derrota não é
dos que deixaram de confiar, mas sim dos que deixaram de merecer
confiança.
Ascensão da direita e/ou queda da esquerda
O que aconteceu então nas eleições deste ano - ascensão da direita ou queda da esquerda? A resposta é: ambos.
Há
uma reação conservadora em curso no país desde quando o PT foi eleito e
suas políticas sociais começaram a surtir efeito. À medida em que
ex-sindicalistas se tornavam ministros e pobres tinham acesso a
possibilidades antes restritas de consumo, uma parte da sociedade
brasileira tornou-se cada vez mais acesa e explícita em seu ódio de
classe e raça. (Convém notar, portanto, que não são somente protestos de
esquerda que atiçam e radicalizam a direita, mas governos de esquerda
também; de onde talvez se devesse concluir que o único jeito seguro de
não fortalecer a direita seria não ser de esquerda.) Guardadas
as devidas proporções, o crescimento do discurso e da bancada do
preconceito e do conservadorismo social no Brasil seria comparável aos
efeitos da Aurora Dourada na Grécia, diminuindo o espaço para uma
centro-direita "moderna" (socialmente liberal) e puxando o centro de
todo o debate mais à direita.
Mas este fenômeno não foi criado
por junho: ele vem de antes e está, inclusive, entre as causas que
explodiram nos protestos. Ele chega às eleições de 2014 seguindo uma
curva linear ascendente que há uma década se alimenta do denuncismo
seletivo, dos ataques da mídia e do desgaste natural de 12 anos de poder
- bem como de todas as alianças e conciliações que o governo fez com
forças como religiosos e ruralistas. As manifestações certamente
provocaram uma nova onda de exacerbação retórica; mas isto se deu
justamente na medida em que, pela primeira vez, compensou-se a lenta
deriva à direita dos últimos anos com uma nova polarização à esquerda.
O
impacto realmente decisivo dos protestos sobre as eleições não estaria,
portanto, na subida da direita, mas na queda da esquerda oficial. Dilma
Rousseff chegou ao segundo turno com quase 5% a menos que na eleição
anterior, enquanto Aécio Neves ganhou apenas 1% a mais que José Serra em
2010.. Enquanto isso, abstenções e inválidos cresceram 2,25%, ficando à
frente do candidato do PSDB, e eleitores históricos do PT migraram para
as candidaturas de Marina Silva, Luciana Genro e opções menores à
esquerda. Fragmentação dos votos e aumento do não-voto - possíveis
indícios, como vimos, de uma crise de representação - bastam para
explicar a oscilação negativa de Dilma e ajudam a entender a queda do PT
no legislativo.
Entre causa e sintoma
Não
é preciso negar tudo que as manifestações tiveram de conflitante e
incoerente para enxergar os limites da narrativa segundo a qual junho
teria "tirado a direita do armário", e que isto bastaria para entender
as eleições. Não apenas, como vimos, porque ela não oferece uma
verdadeira explicação, mas porque simplifica drasticamente o fenômeno
complexo que começou em junho de 2013.
Primeiro, reduzindo
arbitrariamente os treze meses de mobilizações que se seguiram à luta
pela redução das tarifas (protestos contra as remoções da Copa,
manifestações de movimentos sociais tradicionais e sindicatos, ocupações
de câmaras municipais, protestos em favelas contra a violência
policial, rolezinhos, greves selvagens e oficiais, movimentos contra a
especulação urbana...) àqueles dez dias em que a mídia corporativa e
setores anti-petistas, vendo uma oportunidade de desestabilização,
tentaram apropriar-se do que se passava. Segundo, reduzindo
apressadamente ao rótulo "direita" toda a multidão que desceu às ruas
neste curto momento, cuja maioria era composta por pessoas de inclinação
política pouco definida, mas que estiveram entre os mais beneficiados
pelas administrações petistas.
Em ambos os casos, elege-se um
elemento temporal e numericamente menor como "a verdadeira face" de um
acontecimento com muitos aspectos. Em ambos os casos, o recorte facilita
a conclusão de que um processo que teve entre suas principais consignas
a qualificação dos serviços públicos, a mobilidade urbana, o direito à
cidade, o fim da violência policial e os direitos humanos - pautas
progressistas, mesmo quando não conscientemente de esquerda - tendeu
eminentemente para a direita. Com isso, confunde-se duas tendências dos
últimos anos que deveríamos absolutamente saber separar: uma
radicalização ideológica da direita e um desejo difuso de mudança.
Aqueles poucos dias de "direita nas ruas" a que se tenta reduzir junho
de 2013 manifestaram o primeiro; o processo que vai de antes da Copa das
Confederações até a final Copa de 2014 expressou majoritariamente o
segundo.
Acima de tudo, esta interpretação parece ser incapaz de
explicar a propagação e adesão massiva aos protestos, que aparecem ou
como inexplicável relâmpago em céu azul, ou como súbita emergência de
uma até então insuspeita maioria de direita. Curiosa assimetria: as
manifestações, que bastariam para explicar as eleições, seriam elas
mesmas inexplicáveis. Evita-se assim a pergunta mais difícil, mas também
mais importante: do que aquilo que se inicia em junho é sintoma?
Ascensão conservadora e desejo de mudança
Foi
sintoma, por um lado, de um desencanto crescente com o PT por parte de
um público de perfil progressista. Seguro de que a ameaça de "volta da
direita" sempre bastaria para reter o voto cativo da esquerda, o governo
Dilma abriu mão de pautas caras a este público, esquecendo-se que, se
dificilmente uma delas sozinha decidiria uma eleição, derrotas seguidas
em várias (o retrocesso no Ministério da Cultura, Belo Monte, "kit gay",
Código Florestal, remoções, demarcação de terras indígenas...)
provocariam perda de confiança. A fatura política deste erro foi paga
nas ruas em 2013; a fatura eleitoral, nas urnas em 2014, pelo menos no
primeiro turno.
Mas assim como certamente não foram só "de
direita", os manifestantes não foram só gente que já se identificava
como "de esquerda", mas também "batalhadores" sem experiência prévia na
política, garis, sem-teto, motoristas de ônibus, favelados... Percebe-se
aí o que há de politicamente desastroso em confundir crescimento da direita e desejo de mudança.
Se a esquerda oficial passa a tratar toda expressão de um desejo de
mudança como de direita, acaba por assumir a defesa daquilo que existe
como o melhor que poderia existir, obscurecendo a diferença entre
mudanças progressivas e regressivas e entregando o monopólio da
representação deste desejo à direita. Neste sentido, a ideia de
"ascensão conservadora" tem um elemento de profecia autorrealizada:
quando desejos legítimos e potencialmente progressivos são
desqualificados como "de direita", abre-se o caminho para que de fato
assim se tornem.
A brecha à esquerda aberta pelos protestos
poderia ter servido ao PT para, mesmo após doze anos de governo, assumir
a bandeira da mudança e ressituar-se na polarização com a direita,
tomando a iniciativa de propor a radicalização de reformas que lhe
permitissem caracterizá-la como obstáculo a ser vencido. Notavelmente,
porém, sua propaganda eleitoral talvez tenha sido a que menos invocou os
protestos. Aliás, desde o programa de reformas anunciado pela
presidenta, imediatamente sabotado e abandonado mesmo pelo PT, até o
primeiro turno de 2014, preferiu-se polarizar com a esquerda, jogando
com a chantagem do "ou nós ou a direita". O papel de interlocutor entre
sociedade e instituições foi trocado pela inércia e o espírito de corpo
da classe política.
O risco de perder as conquistas dos últimos
doze anos talvez seja suficiente para trazer de volta eleitores perdidos
no primeiro turno, garantindo a reeleição. Ainda parece haver
suficiente diferença entre esquerda e direita oficiais para que a crise
de representação não chegue ao limiar crítico atravessado em Grécia e
Espanha. Não havendo correções de rumo, contudo, a tendência é que esta
crise cresça; chegará o dia em que as diferenças terão se tornado
suficientemente pequenas para o medo do retrocesso deixar de funcionar.
Pode
haver correções de rumo? Não é somente a reação pós-junho que deixa
poucas esperanças. Se há verdade nestas hipóteses, estas eleições
poderiam ser disputadas pela esquerda, mas pouco se fez neste sentido
além de reforçar a redução de um dos projetos mais ricos e generosos da
história da esquerda mundial à pobre fórmula rica "crescer a todo custo e
incluir pelo consumo". Tornou-se comum ouvir declarações de voto em
Dilma dizerem não esperar mais que mais do mesmo, tanto no que isso
ainda pode ter de bom quanto no acentuamento das tendências ruins (falta
de diálogo, desenvolvimentismo desenfreado, violação de terras e
direitos indígenas, flexibilização da agenda ambiental e de direitos
humanos, fortalecimento das bancadas rural e religiosa, acordos com
construtoras, mineradoras, oligopólios de mídia...).
Talvez
disto, sobretudo, junho tenha sido sintoma: o grande paradoxo de doze
anos de governos petistas não é a radicalização da direita, mas o fato
que hoje o PT tem menos, não mais, condições de promover
grandes reformas. Tendo feito o que podia nas condições que encontrou,
mas pouco tendo feito para transformar estas condições, ele não apenas
vê seu espaço de manobra cada vez mais reduzido, como cada vez mais se
compromete a afirmar a inevitabilidade do status quo ao qual vai se
adaptando. Isto não afeta apenas a possibilidade de seguir avançando,
mas também, a médio prazo, de manter o que já feito; não afeta apenas as
sensibilidades de um eleitorado progressista, mas eventualmente também
aqueles que se beneficiaram das últimas décadas. No momento em que a
conjuntura torna impossível a continuidade do bem-sucedido "pacto
lulista" - crescimento acelerado com distribuição de renda, em que os
ricos ficam mais ricos e os pobres, menos pobres -, que força e
disposição terá o governo para criar uma repactuação em que a corda não
arrebente do lado mais fraco?
De forma mais ou menos consciente,
os ex-petistas e "batalhadores", anarquistas e professores públicos,
ciclistas e favelados, ambientalistas e afetados pela Copa, garis e
midialivristas que estiveram nas ruas no último ano anunciavam que, nas
atuais condições, não somente a energia de transformação do atual
projeto está se esgotando, como ele começa a fortalecer o seu contrário.
Foram tratados pelo sistema político, pelo próprio PT, como os troianos
trataram a princesa Cassandra: incoerentes, irrazoáveis, ignoráveis. É
cada vez mais evidente, porém, que "mudar mais" ou "seguir mudando"
dependerá, nos próximos anos, daquilo que se saiba conquistar nas ruas,
com ou sem o apoio da esquerda oficial. Por isso, é provável que ainda
veremos mais do ciclo de protestos aberto em 2013.
Embora
certamente possa trazer retrocessos, esta eleição dificilmente pode, por
si só, trazer avanços. Neste sentido, qualquer que seja o resultado
final das eleições, até aqui é Cassandra que está ganhando.
http://www.brasilpost.com.br/rodrigo-nunes/os-protestos-e-as-eleicoe_b_5990468.html?utm_hp_ref=brazil
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