Encontrei a Cobra Vadia num terreno baldio de Porto Alegre. Amanhã
explico quem é ela. Adianto que ela tem a língua viperina. Peço apenas
que não a confundam com a Cabra Vadia. A Cobra estava indignada.
Aproximei-me com cautela, pois tinha lido um artigo sobre cobras. Elas
podem picar mesmo depois de perder a cabeça. A Cobra Vadia estava
visivelmente descabelada.
– Que horror! – foi logo esbravejando.
– Que houve? – sempre falo pausadamente com desconhecidos.
– Para onde vamos?
– Não tenho a menor ideia. Pretendo ir ao cinema.
– Não se pode mais chamar negro de macaco em estádio de futebol, não
se pode mais defender maus tratos a presos em emissoras de rádio, não se
pode mais fazer piada de fresco – a Cobra é antiga –, não se pode mais
chamar negrão de crioulo, não se pode fazer mais nenhuma brincadeira
inocente e saudável. Onde vamos parar desse jeito?
– Dizem que é culpa do politicamente correto – provoquei.
– Claro que é – a Cobra soltou a língua –, tudo culpa do tal de
politicamente correto, essa idiotice importada dos Estados Unidos, que
está tornando a vida insuportável, insípida, chata, aborrecida,
totalmente sem graça, com tudo controlado, vigiado e censurado.
– De fato – digo cinicamente –, não dá mais para humilhar ninguém sem
que a pessoa tenha o atrevimento de reclamar, de denunciar, de fazer um
escândalo, de encontrar apoio nas redes sociais e de conseguir punição
para o inocente que apenas queria se divertir praticando o inocente
direito ao preconceito, ao bullying e ao linchamento.
– É o que eu sempre digo – a Cobra não escuta –, o politicamente
correto não deixa nem tirar sarro de anão. Onde já se viu achar que tem
racismo em chamar negro de macaco? Isso é até preconceito com os
macacos. Eu não sou preconceituoso. Tenho até amigos negros. Também não
sou contra frescos. Já até apertei a mão de um veado. É tanto
preconceito desse politicamente correto que já tem gente com vergonha de
ser heterossexual. Onde vamos parar? A liberdade acabou. Foi-se.
– Que coisa! A situação é grave – observo. – Parece que a sociedade
resolveu acabar com a lei do mais forte. Como vão se virar aqueles que
viviam de defender tortura, de achar que bandido bom é bandido morto, de
esculachar os diferentes e de pisotear os mais frágeis?
– Mais fraco é para apanhar mesmo – indigna-se a Cobra. – Ou que se
torne mais forte. Eu, quando era criança, apanhei muito, pegavam no meu
pé, no sentido figurado, claro, e, graças a isso, sou o que sou. Só me
fez bem. Minoria é para andar no ritmo da maioria. Assim é que eu penso,
eu que sou uma cobra de bem, que paga seus impostos e quer dormir à
noite sem ser incomodada por arruaceiros e esquerdistas.
– A punição ao Grêmio te incomodou? – perguntou timidamente.
– Um horror. Um despautério. Um absurdo. Os torcedores não podem mais
nem se divertir sacaneando um goleiro adversário! Não tinha racismo
naquilo. Era até carinhoso. Onde vamos parar assim? É o fim da
civilização. Ou acabamos com o politicamente corretou ou…
– Ou o politicamente correto acaba com o preconceito – emendo.
A Cobra Vadia desmaia. Bato em retirada. Até amanhã.
por Juremir Machado
http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/?p=6366
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