terça-feira, 23 de setembro de 2014

A Violência Difusa na "Modernidade Tardia"

Os fenômenos da violência difusa adquirem novos contornos, passando a disseminar-se por toda a sociedade. Essa multiplicidade das formas de violência presentes nas sociedades contemporâneas — violência ecológica, exclusão social, violência entre os gêneros, racismos, violência na escola — configuram-se como um processo de dilaceramento da cidadania. A compreensão da fenomenologia da violência pode ser realizada a partir da noção de uma microfísica do poder, de Foucault, ou seja, de uma rede de poderes que permeia todas as relações sociais, marcando as interações entre os grupos e as classes (Foucault, 1994:38-39). Deparamo-nos com as dimensões subjetivas e objetivas das variadas formas de violências: violência na escola, violência social, ecológica, exclusão, gênero, racismos. Configura-se uma "microfísica da violência" na vida cotidiana da sociedade contemporânea (Tavares dos Santos, 2002b).

Efetiva-se uma pluralidade de diferentes tipos de normas sociais, algo mais do que o próprio pluralismo jurídico, levando-nos a ver a simultaneidade de padrões de orientação da conduta muitas vezes divergentes e incompatíveis, como, por exemplo, a violência configurando-se como linguagem e como norma social para algumas categorias sociais, em contraponto àquelas denominadas de normas civilizadas, marcadas pelo autocontrole e pelo controle social institucionalizado (Elias, 1990; 1993). Fortalece-se a prática de fazer justiça pelas próprias mãos, um traço de uma cultura orientada pelo hiperindividualismo (Díaz, 1898, 107). Nas palavras de Bauman (1998:26): "A busca da pureza moderna expressou-se diariamente com a ação punitiva contra as classes perigosas; a busca da pureza pós-moderna expressa-se diariamente com a ação punitiva contra os moradores das ruas pobres e das áreas urbanas proibidas, os vagabundos e os indolentes". Adquirindo a cultura uma centralidade na "modernidade tardia", a disseminação de uma cultura de "ganhadores ou perdedores" (Taylor, 1999: 34-37) acentua os valores do individualismo competitivo e a criação de uma cultura popular unidimensional, hedonista e imediatista (Young, 1999:10; Taylor, 1999:90), induz as populações a viverem em novos grupos sociais eletivos e auto-referidos (Garland, 2001:89).

O período atual pode ser denominado de Processo de Mundialização, marcado pela pós-modernidade como forma cultural, pela expansão da produção industrial em nova distribuição do trabalho planetária, com o avanço do capital especulativo e pelas conflitualidades sociais mundiais.

A herança do Estado de Bem-Estar Social e do Modernismo Penal (1946-1978) começou a ser abalada durante a crise global do final do século XX (1978-1991), como comprova Hobsbawm (1994; 2000): assistimos ao final do "Estado de Bem-Estar" (1946-1973), no qual as instituições sociais tinham um funcionamento regular, ao menos nos países desenvolvidos. O controle social formal (as polícias, o judiciário, o sistema da justiça criminal, as prisões) era orientado para a reabilitação dos delinqüentes, com uma intenção "correcional" e ressocializadora. Porém, também nessa época as instituições de controle social informal funcionavam regularmente: a família, a escola, os grupos sociais, as associações, os movimentos sociais definiam normas de conduta, reproduziam valores e disseminavam orientações para a ação social. Estávamos vivendo o modelo de controle social "correcional", pois todos os controles sociais, informais e formais, estavam em funcionamento, conforme a interpretação de Garland (2001:44): "O bem-estar penal retirava suporte de uma particular forma de Estado e de uma particular estrutura de relações de classes. Funcionava em um ambiente específico de políticas sociais e econômicas e interagia com uma série de instituições contíguas, as mais importantes das quais eram o mercado de trabalho e as instituições do Estado de Bem-estar Social". Por outro lado, o controle social distribuía-se pelas instituições societárias: "Os controles sociais informais exercidos pelas famílias, vizinhanças e comunidades, junto com as disciplinas impostas pelas escolas, locais de trabalho e outras instituições criavam um cotidiano de normas e sanções que embasavam as demandas legais e garantiam suporte às intervenções do bem-estar penal" (Garland, 2001:44). Uma das novas questões sociais mundiais tem sido a violência no espaço escolar, marcada pela violência simbólica e pela territorialização do crime organizado (Tavares dos Santos, 1999), também um sintoma da crise da juventude masculina (Taylor, 1999:65-85; Zaluar, 1994).

O crime seria um epifenômeno da sociedade capitalista, diziam em 1973 os autores da New Criminology, denominados, ao longo dos anos 90, de "realistas de esquerda" na Inglaterra (Taylor; Walton; Young; 1990). Entretanto, acompanhando as mudanças sociais no final do século XX, três décadas depois os "realistas de esquerda" chegariam a perceber os dilemas da "modernidade tardia": as crescentes taxas de criminalidade; a revelação das invisíveis vítimas; a problematização do fenômeno criminal; a universalidade do crime; e a seletividade da justiça; os problemas da punição e da culpabilidade (Young, 1999: 35-43).

As características da "modernidade tardia" seriam a repetição da exclusão social, a disseminação das violências, a ruptura de laços sociais e a "desfiliação" de algumas categorias sociais, como a juventude, uma das grandes vítimas da civilização, analisa Pais: "Nas décadas imediatas ao pós-guerra, as transições dos jovens assemelhavam-se a viagens de comboios nas quais os jovens, dependendo da sua classe social, gênero e qualificações acadêmicas, embarcavam em diferentes comboios com destinos pré-determinados". 

Atualmente, "o terreno onde as transições têm lugar é de natureza cada vez mais labiríntica. No labirinto da vida, como num labirinto rodoviário, surgem frequentemente sentidos obrigatórios e proibidos, alterações de trânsito, caminhos que parecem já ter sido cruzados, várias vezes passados: essa retomada de caminhos que parecem que provoca uma sensação de perda, de confusão" (Pais, 2001:10).

Houve profundas alterações no espaço urbano, modificando a visão da ecologia urbana da Escola de Chicago, pois a hegemonia "da sociedade de mercado" envolve um crítico processo de retirada da autoridade pública da supervisão e manutenção dos espaços públicos na cidade" (Taylor, 1999:61). Completa Garland: "Os projetos de renovação urbana dos anos de 1960 continuaram o processo demolindo muitas vizinhanças das áreas urbanas centrais, o que resultou em novos sistemas de tráfico e auto-estradas, com a realocação dos moradores em projetos habitacionais concentrados. O efeito freqüentemente foi concentrar as famílias pobres e de minorias em áreas muito afastadas da cidade nas quais faltavam os serviços básicos tais como lojas, empregos e bom transporte público" (Garland, 2001:84-85).

Produziu-se uma urbanização sociopática, com espaços urbanos fragmentados e segmentados, seguindo um mesmo padrão geral: centros deteriorados e bairros periféricos carentes, habitados por populações vulneráveis; bairros de populações de altas rendas, com forte presença de segurança privada assim como a implementação de condomínios fechados (Caldeira, 2000); territórios controlados pelo "crime organizado"; espaços privados de comércio, com controle social por segurança privada; desigualdade social e espacial; violência cotidiana nas ruas; e violência no espaço escolar (Taylor, 1999:110). Em suma, a falência do poder público regulatório.

Vivemos em um contexto societário no qual as concepções do crime passam por grandes metamorfoses (Young, 1999:46-47): a definição do crime passa a ser problemática, seja pelas novas modalidades de crime — criminalidade violenta; crime organizado, tráfico de armas e de drogas; crimes de "colarinho branco", crimes informacionais, seja por fenômenos sociais de violência contra a pessoa ainda não consideradas, por exemplo, as violências contra as crianças, sob a ideologia da educação pelo castigo físico; os infratores da lei não são mais uma minoria mas podem ser extensos continentes sociais; a probabilidade de alguém ser vítima, de excepcional, passa a ser prevalecente e contingente; as causas do crime são difusas, eminentes ou por "escolha racional", nos casos de delitos contra o patrimônio ou de extorsão por seqüestro; há uma continuidade entre o fato social normal e o crime, transformado em fenômenos societários; o assaltante deixa de ser profissionalizado para tornar-se um ofensor sem especialização, realizando a ação delituosa quase ao acaso (Pegoraro, 1999); a relação entre agressores e vítimas passa a ser uma relação complexa, pois o agressor não é mais somente o estranho, mas alguém conhecido ou do próprio grupo da vítima, estranhos e íntimos, habitantes locais e de outras regiões; as causas do crime passam a ser multidimensionais; o crime passa a ser societal, em um continuum na vida social, sendo o lugar da ocorrência ser tanto privado quanto público; e o controle social formal não mais é monopólio do sistema de justiça criminal mas passa a ser compartilhado por outras agências sociais.

Por conseguinte, os "impactos da modernidade tardia sobre as taxas de crime foram multidimensionais: aumento das oportunidades para o crime; redução dos controles situacionais; aumento da população em risco; redução da eficácia dos auto-controles sociais como conseqüência das mudanças na ecologia social e nas normas culturais" (Garland, 2001:90).

Estaríamos diante de uma crise da modernidade tardia, na qual a privação relativa combina-se com o individualismo, transformando-se em "uma comparação no interior da divisão do trabalho e entre aqueles que estão no mercado e os excluídos, conformando uma grande vulnerabilidade social, pobreza e miséria. Assiste-se, nesse quadro, a uma ruptura dos controles sociais tradicionais (Young, 1999:46-48), substituídos por uma invasão dos meios de comunicação na esfera da socialização. Cabe falar, então, de um tempo histórico não linear, pontual, repetitivo, de uma sociedade de risco (Young, 1999:68-72), na qual a falência do controle social formal se expressa na crise mundial das polícias (Reiner, 2000; Bayley, 1996; Soares, 2000).

Violências e dilemas do controle social nas sociedades da "modernidade tardia"        José Vicente Tavares dos Santos
Extrato de :
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-88392004000100002

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