Imagine-se que o México, por exemplo, do novo herói de Wall Street,
Enrique Peña Nieto; ou a Espanha, do imperturbável ‘austericida’,
Mariano Rajoy; ou mesmo os EUA, do flácido Barack Obama, reunisse, em
uma única semana, essa que passou, as seguintes conquistas no portfólio
do seu governo:
1. O país fosse declarado pela FAO um território livre da fome, praticamente erradicada nos últimos 11 anos;
2. Tivesse a notícia de que a miséria extrema fora igualmente reduzida em 75%, no mesmo período;
3. Constatasse que após seis anos de uma interminável crise mundial, a
renda média mensal das famílias continuasse a crescer, tendo se elevado
em 3,4% acima da inflação em 2013 (dado da PNAD já corrigida);
4. E que o rendimento médio dos trabalhadores assalariados, no mesmo
período, registrou um aumento de 3,8% acima da inflação e acima do PIB,
de 2,5%;
5. Ainda: que enquanto a renda dos 10% mais ricos cresceu 2,1%, a dos
lares mais pobres, incluindo-se os benefícios das políticas sociais,
avançou 2,9%, o que contribuiu para um pequeno, mas persistente recuo da
desigualdade, em declínio desde 2004;
6. Mais: que o trabalho infantil em 2013 caíra 12,3%; a matrícula na
pré-escola atingira 81% das crianças e o trabalho com carteira assinada
já englobaria 76% dos assalariados;
7. Não só; a consolidação dos indicadores sociais dos últimos 11 anos,
embora não tenha quebrado os alicerces de uma das construções
capitalistas mais desiguais do mundo, mexeu em placas tectônicas. A
renda média da sociedade aumentou 35% acima da inflação entre 2004 a
2013. Mas a dos 10% mais pobres cresceu o dobro disso (cerca de 73%); e
entre os 50% mais pobres, avançou mais de 60%, com repercussões óbvias
no padrão da produção e da demanda, no conforto doméstico e nas
expectativas em relação ao futuro;
8. A mesma semana generosa incluiria ainda a informação de que as novas
reservas de petróleo desse país, responsável por 40% das descobertas
mundiais nos últimos cinco anos, já representam 24% da produção
nacional;
9. E, por fim, que o investimento em infraestrutura, depois de três décadas de declínio sistemático — repita-se, três décadas de recuos sucessivos — registrou uma inflexão e passou a crescer o equivalente a 2,4% do PIB, em média, de 2011 a 2013.
9. E, por fim, que o investimento em infraestrutura, depois de três décadas de declínio sistemático — repita-se, três décadas de recuos sucessivos — registrou uma inflexão e passou a crescer o equivalente a 2,4% do PIB, em média, de 2011 a 2013.
Qual seria a reação do glorioso jornalismo de economia diante desse
leque de vento bom, se a mão que o abanasse fosse a dos titãs dos
mercados?
Não seríamos poupados de manchetes faiscantes, a alardear a eficácia das boas práticas do ramo.
Mas as boas notícias tem como moldura o Brasil.
Presidido pela ‘intervencionista’ Dilma Rousseff, candidata petista à
reeleição e detentora de teimosa liderança nas pesquisas do 1º turno.
Isso muda tudo.
Muda a ponto de um acervo desse calibre ser martelado como evidência de retrocesso social no imaginário brasileiro.
Muda a ponto de Marina valer-se dessa ocultação da realidade para
decretar que Dilma entregará um país ‘pior do que o que recebeu'.
O padrão ‘Willian Bonner’, como se vê, faz escola.
A indigência do debate impede não apenas que o Brasil se enxergue como o
país menos desigual de toda a sua história, mas, sobretudo, interdita a
autoconfiança da sociedade nos seus trunfos para avançar um novo passo
nessa direção.
Não se subestime aqui a persistência de gargalos significativos nessa
trajetória. Juros descabidos, por exemplo. E uma paridade cambial fora
de lugar há duas décadas. Com toda a guarnição de perdas e danos que
esse desajuste de dois preços essenciais pode acarretar.
Embora sejam apresentados como prova do genuíno fracasso petista, a
verdade é que desarranjos macroeconômicos não constituem exceção na
história econômica do país.
Será necessário recordar, à nova cristã do tripé, que sob o comando de
Armínio Fraga, virtual ministro dela ou de Aécio, o BC elevou a taxa de
juro a 45%, em março de 1999?
Que a dívida pública explodiu sob a gestão do festejado herói dos mercados?
E que a defasagem cambial sob FHC exigiu uma maxidesvalorização de 30%
em janeiro de 1999, escalpelando o poder de compra das famílias
assalariadas?
Ou que as perspectivas da inflação então oscilavam entre 20% e 50% ao ano; maiores que as da enxovalhada Argentina hoje?
O banco de dados do glorioso jornalismo de economia dispõe desses dados.
Que ali hibernam a salvo da memória nacional.
O fato é que se alguns desequilíbrios se repetem — em escala muito
menor, caso do juro de 11% e da paridade cambial de R$ 2,25 — os
trunfos, ao contrário, caracterizam uma auspiciosa singularidade.
E não avançam apenas da esfera social para o mercado, mas vice versa.
A economia brasileira dispõe agora de reservas em moeda estrangeira da
ordem de US$ 400 bi, com um fiador estratégico de peso muito superior a
esse.
Uma poupança de petróleo e gás, que pode chegar a 100 bilhões de barris,
avaliada em cerca de R$ 5 trilhões, revestida de domínio tecnológico e
escala para traduzir-se em soberania, autossuficiência e receitas,
pavimenta o futuro do crescimento nacional.
Não só.
Em plena crise mundial, o país alicerçou um dos mercados de massa mais
cobiçados do planeta e um mercado de trabalho que flerta com o pleno
emprego.
A sociedade brasileira é uma das poucas em todo o planeta a desfrutar de
uma combinação vital ao futuro humanidade: autossuficiência alimentar e
fontes abundantes de energia limpa.
Sua dívida pública é estável, proporcionalmente baixa em relação ao PIB (37%) e aos padrões mundiais.
A planta industrial embora esgarçada, carente de competitividade,
preserva escala e encadeamentos que ainda distinguem o país em relação
às demais nações em desenvolvimento. Ainda que setores respirem por
aparelhos, não está morta.
As empresas estão líquidas, são lucrativas, têm caixa suficiente — hoje
alocado no rentismo — para deflagrar um novo ciclo de expansão.
O país conta, ademais, com uma invejável rede de bancos públicos e
possui um dos maiores bancos de desenvolvimento do mundo (o BNDES é
maior que o Banco Mundial); o nível de endividamento das famílias é
proporcionalmente baixo em relação à média internacional e o sistema de
crédito é sólido.
Não é pouco, mesmo considerando-se as novas condições de mobilidade de
capitais que restringem o poder dos governantes para ordenar o
desenvolvimento.
Com muito menos que isso, Getúlio Vargas afrontou o cerco conservador nos anos 50.
Se dependesse das restrições da época, e do imediatismo das elites, ele não teria criado a Petrobras, por exemplo.
Tampouco insistido na industrialização.
Assim como Juscelino não teria feito Brasília.
Ou Celso Furtado — desdenhado pela assessoria ‘moderna’ de Marina —
teimado em erradicar o apartheid nacional, que tinha no Nordeste um quê
de bantustão avant la lettre.
A determinação de viabilizar cada uma dessas agendas extraiu do
engajamento popular e dos fundos públicos a viabilidade sonegada pelas
elites, seus sócios estrangeiros e seu aparato emissor.
A seta do tempo não se quebrou: hoje a Petrobras é a empresa que tem a
maior carteira de investimento do mundo; o Nordeste é a região que
lidera o crescimento do poder de compra popular; o Centro-Oeste é um dos
polos agrícolas mais dinâmicos do país.
Operadores de Marina e Aécio fazem gestos nervosos na lateral de campo da disputa eleitoral.
Apontam o relógio para dizer que o tempo do jogo da soberania com justiça social esgotou.
Exigem que o eleitor encerre a disputa e aceite a derrota definitiva desse capítulo na história nacional.
O jogral tem experiência no ramo dos vereditos incontrastáveis.
O desdém pelo Brasil mais justo que progressivamente emerge das PNADs é uma prova.
O diabo é a Petrobras. E as arrancadas do pré-sal.
A dupla adiciona uma dissonância não negligenciável ao discurso da
insignificância brasileira na coordenação do futuro do seu
desenvolvimento.
Tem peso e medida para representar um indutor de crescimento mais
consistente e duradouro que o ciclo recente de valorização das
commodities, ao qual o discurso conservador atribui toda a extensão dos
avanços sociais registrados nos últimos anos.
Nesse sentido, a simbologia da Petrobras ficou até maior do que foi nos anos 50.
Hoje ela deixou de significar apenas petróleo nacional. Para se tornar o
espelho de uma dissidência poderosa aos interditos dos mercados no
século XXI.
Fortemente imbricada nas encomendas cativas de toda a cadeia da
extração, refino e usos sofisticados da petroquímica, a regulação
soberana do pré-sal facultou ao país um novo berçário industrializante.
Não é o canto do cisne da luta pelo desenvolvimento, como querem alguns.
Pode ser o aggiornamento de um modelo.
A integração entre compras direcionadas à indústria brasileira e o
investimento em cadeias produtivas relevantes, já funciona, de forma
similar, e com sucesso, nas aquisições de medicamentos para o SUS, com
fomento da rede de laboratórios nacionais pelo BNDES.
Se esse modelo entrar em voo de cruzeiro, o discurso da insignificância
brasileira na definição do passo seguinte do seu crescimento entrará em
coma.
O pré-sal é o ponteiro decisivo da corrida contra o ultimato conservador dos operadores de Marina e Aécio.
É coerente que tenha merecido apenas uma única e mísera linha no
programa de 242 páginas de Marina Silva; assim: “Destinar ao orçamento
da educação os royalties do petróleo em áreas do pré-sal já concedidas”.
Ponto.
É mais que isso o que está em jogo.
No ciclo do próximo governo — e por isso é crucial ele seja progressista
— o pré-sal, mantida a regulação soberana do regime de partilha,
avançará exponencialmente para responder por 50% da produção brasileira
em 2018.
O país estará, então, no limiar de dispor de 4,2 milhões de barris/dia, o
dobro da oferta atual, com excedentes exportáveis robustos e
crescentes.
Não são apenas negócios.
Cerca de 75% dos royalties do pré-sal vão para a educação; 25% para a saúde.
Mais de 300 mil jovens brasileiros serão treinados diretamente nos
próximos anos pelo Promimp, o Programa de Mobilização da Indústria
Nacional de Petróleo e Gás Natural.
Um parque tecnológico de ponta em pesquisa de energia, com adesão de
inúmeras multinacionais, está nascendo no Fundão, junto à Universidade
Federal do Rio de Janeiro, colado à agenda do pré-sal.
A indústria naval brasileira que havia desaparecido nos anos 90 agora é a quarta maior do mundo e emprega 100 mil pessoas.
As receitas do refino — filé da indústria do petróleo—ficarão em boa
parte no país, graças a um esforço hercúleo da Petrobrás de investir em
uma rede de refinarias, heresia sepultada pelo PSDB e a turma da
Petrobrax nos anos 90.
Desqualificar a estatal criada por Getúlio — ‘o PT colocou um diretor lá
por 12 anos para assaltar os cofres da empresa’, diz a doce Marina —
significa para o conservadorismo uma vacina de vida ou morte contra um
perigo maior.
Aquele que pode levar o discernimento nacional a enxergar no épico
contrapelo do pré-sal, sob o guarda-chuva de uma estatal poderosa, a
inspiração para um modelo capaz de destravar o arranque de um novo ciclo
de expansão em outras áreas.
Não se trata de uma gincana acadêmica.
Trata-se de ter ou não a soberania sobre o crescimento e a produtividade indispensáveis aos bons indicadores de futuras PNADs.
Que reúnam avanços iguais, ou maiores, que esses que o glorioso
jornalismo de economia se esmerou em desqualificar na semana passada.
Mas para os quais não oferece nenhuma alternativa, exceto o coro mórbido
da insignificância nacional na construção do futuro.
Saul Leblon
No Carta Maior
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