sábado, 6 de setembro de 2014

A turba e o indivíduo

do Inquietas Leituras

A Desmassificação Massificada de Patrícia Moreira

por Reinaldo Melo

Uma das características do ser humano é o medo de ser tocado pelo desconhecido. 
Consequentemente, há o desejo de isolamento social, em que estabelece estratégias comportamentais para não haver qualquer relação com o outro, ou físico, se fechando dentro de um espaço onde o contato com o mundo não ocorra, sentindo-se amplamente protegido. A aversão a qualquer contato é inerente à natureza humana. Essa essência contrasta com a necessidade de socialização de nossa espécie.

Freud dizia que o indivíduo na sociedade moderna estaria condenado à infelicidade. O ser humano não é essencialmente gentil, é agressivo. E a culpa de manter interiorizada tal agressividade o condiciona a plena insatisfação. Para a civilização moderna, esse impulso agressivo é o que ameaça a sua existência; a condição civilizada da sociedade sempre está à beira do precipício da barbárie. Para que não ocorra a queda o impulso individual muitas vezes deve ser sacrificado pelo impulso social.

O indivíduo na sociedade esta condenado à infelicidade

Tal medo e conflito são amenizados no processo de massificação do indivíduo. A massa é uma integração de indivíduos de diferentes estratificações sociais, profissionais, sexuais, etc, em torno de algo comum que os iguale por completo. Por exemplo, uma torcida de um time de futebol. Na massa, além do indivíduo perder o medo do contato com o outro e com o mundo externo, há o sentimento de proteção e integração. Tudo é o oposto da individualização. O medo se torna coragem, o que era reprimido passa a ser liberado.

Patrícia Moreira era apenas uma indivídua comum de nossa sociedade. Jovem, círculo social natural para a sua idade, funcionária na área de odontologia de um departamento militar, foi a um estádio para apreciar seu time do coração. E diante da derrota, fez coro à turba furiosa inconformada com a apresentação do seu time, destilando seu impulso individual agressivo a uma das figuras do time adversário, o goleiro Aranha, chamando-o de macaco.

Até aí, nada “incomum” do que já foi visto em diversos estádios do mundo, mas a moça não contava que a proteção que a massa poderia lhe dar, para que seus impulsos reprimidos se liberassem, fosse tão frágil diante de outra ferramenta de massificação: a TV.

Flagrada pelas câmeras, Patrícia Moreira massificadamente se desmassificou, ou seja, a partir dali a mídia iniciou uma construção falsa de sua individualidade alçando-a como a mulher mais nefasta do país.

Patrícia Moreira, desmassficada pela mídia massificadora

Na era do espetáculo, a mídia trata todos os fenômenos pelo viés sensacionalista. Ao mesmo tempo, faz o papel de Estado com a cumplicidade de seu público: ela testemunha o crime, abre o inquérito, estabelece o processo, opera o julgamento e condena ao seu bel prazer. É a substituição bárbara do estado democrático de direito.

Meses atrás, Raquel Sherazade defendeu o linchamento de um menor de idade suspeito de roubo, incitando a população, cansada de impunidade e da ausência do Estado (que ironicamente é implacável contra pobres, especialmente os negros), a tomar as rédeas do que se entende por justiça. Depois de tal declaração houve uma epidemia de linchamento no país.

E o linchamento não é nada mais nada menos do que um fenômeno de massificação. A turba reunida diante de um suposto criminoso, inocente ou não, libera seus impulsos agressivos e massacram o indivíduo sem chance de recorrer ao direito de defesa que a civilização teoricamente lhe garante.

Rachel Sherazade, apologia ao linchamento

Patrícia Moreira, que em seu contexto de indivídua massificada, fazia coro com a massa que massacrava verbalmente o goleiro adversário, ironicamente foi desmassificada, mas não para ser tratada como um indivíduo único e especial, mas como um ser merecedor de um massacre, de um linchamento midiático e social, a ponto de perder o trabalho, o direito de poder sair à rua e ao mesmo tempo assistir à derrocada de sua família, que não possuía relação alguma com o crime que ela cometeu dentro do estádio.

Todo um roteiro ideológico programado pela mídia hipócrita, que coloca negros como empregados em suas novelas, que estampa o negro nas suas manchetes policiais, que trata o negro apenas como pagodeiro, mulata carnavalesca, jogador de futebol ou protagonista de comercial de café, e que sempre se coloca contra as cotas raciais em universidades e concursos, desprezando que somos uma sociedade de maioria negra, mas que esta é marginalizada dos direitos constitucionais mais básicos.

Tudo se discutiu nessa história menos o racismo e suas fontes. Quando se dá mais ênfase à racista do que o processo que formula e mantém o racismo em nossa sociedade, a mídia mata dois coelhos com uma cajadada só: promove o justiçamento, se colocando como protagonista dos valores que a turba furiosa necessita e mantém intacta a estrutura ideológica do racismo que ela mesma reproduz diariamente, se isentando do crime racial que ajuda a propagar.

A mídia que condena Patrícia Moreira 
é protagonista do Racismo em sua programação

Patricia Moreira, assim como os outros torcedores, merece ser processada e julgada, mas dentro do que lhe garante o estado democrático de direito.

Quando tratamos um criminoso sem a humanização que lhe cobramos, em nada diferimos dele. Dentro de um processo civilizatório, a pena para um criminoso é muito mais do que lhe negar o convívio em sociedade ou lhe imputar ações (como trabalhos comunitários) contra a sua vontade. Deve se focar também a sua reeducação para se conscientizar de que fez algo errado e não reincidir em tal prática.

Assim como se destrói um indivíduo por meio de qualquer ato de discriminação, não se humaniza alguém o destruindo, como estão fazendo com Patrícia Moreira. De nada vale defender a civilização, sendo tão bárbaros quanto os que a ameaçam. 

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