Por Christian Ingo Lenz Dunker
O livro Cultura do narcisismo escrito por Christopher Lash em 1979 é um
clássico. O autor descreve o modo de vida americano nos anos 70,
retratando uma sociedade na qual a participação na esfera pública
entrava em declínio e as pessoas enfrentavam dificuldades para
reconhecer sua própria história. O livro é premonitório em vários
sentidos: apresenta o horror à velhice, à feminilização da cultura, à
autoridade burocrático-permissiva, à educação como mercadoria, à
autopromoção por meio de “imagens de vitória” e ao paternalismo sem pai.
O
texto de Lash mostra como o que era diagnosticado como patologia
narcísica ou limítrofe nos anos 50 torna-se uma espécie de “normalidade
compulsória” depois de duas décadas. Para que alguém seja considerado
“bem-sucedido” é trivialmente esperado que manipule sua própria imagem
como se fosse um personagem, com a consequente perda do sentimento de
autenticidade, dramatizando a vida em forma de espetáculo, com o
correlativo complexo de impostura ou olhar para o trabalho como se ele
fosse uma maratona olímpica e, a pessoa, um herói predestinado.
Mas
havia um capítulo subtraído da descrição de Lash ao qual o psicanalista
Jurandir Freire Costa se refere, tendo em vista o caso brasileiro: a
violência. Ao contrário do narcisismo americano que produzia sentimentos
de vazio, isolamento e solidão, o narcisismo à brasileira é capaz de
inverter inadvertidamente a docilidade em violência. Seria preciso
voltar a três hipóteses sobre a brasilidade para entender este fenômeno.
Para
Sérgio Buarque de Holanda nossa contribuição aos costumes universais
está na cordialidade com a qual combinamos vícios públicos e benefícios
privados. Nosso “manejo” da lei explica a dificuldade de reconhecer
problemas comuns e de engendrar verdadeiras transformações. Daí a
formação de uma docilidade que nada mais é do que resignação,
ressentimento e conformidade. Para os modernistas como Oswald e Mário de
Andrade, nossa violência é um caso exagerado de complexo canibal de
devoração do Outro. Nosso consumo do estrangeiro é ao mesmo tempo
violência e submissão, impotência e desmesura, caráter e autoironia.
Finalmente, para Gilberto Freire violência e docilidade convivem bem em
razão das inversões propiciadas pela sexualidade, na qual o mais fraco
pode dominar o mais forte para em seguida ser submetido vingativamente
por este.
Se o narcisismo nada mais é que a patologia normal do
amor, percebe-se que as três hipóteses sobre a gênese de nossa violência
narcísica respondem por três maneiras distintas de negar o amor como
paradigma da relação de reconhecimento: invertendo-o em ódio invejoso
dirigido ao dominador, como mostra Freire em Casa grande e senzala,
projetando-o no Outro plenipotente a ser expoliado, conforme o Manifesto
antropofágico, de Osvald de Andrade, ou mimetizando desamparo diante
daquele que é o dono da lei, como em Raízes do Brasil, de Buarque de
Holanda. Freud dizia que o amor é uma pulsão especial porque ela admite
três e não apenas uma negação, como a maior parte das pulsões. Amar
opõe-se a ser amado, como no canibalismo-cordial, mas também a odiar
como na dominação-cordial.
Contudo, a oposição real se dá entre
amor e indiferença. O amor não acaba quando odiamos o outro ou quando
queremos lhe fazer o mesmo que nos fez, mas quando nos tornamos
indiferentes. Este é o narcisismo de alta periculosidade, pois passa da
docilidade à violência baseado apenas na experiência de admitir ou negar
a existência do outro. Na cordialidade, na antropofagia ou na dominação
sexual a existência do outro está prevista, bem como as alternativas de
reconhecimento. Algo diferente se passa quando nossa cultura da
indiferença é forçada a reconhecer aqueles que, até então, não existiam.
E isso sempre será percebido como violência. Mas de quem?
http://www2.uol.com.br/vivermente/artigos/a_cultura_da_indiferenca.html
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