Pesquisa mostra que preferimos levar choques a passar 15 minutos com nossos pensamentos. Nada ilustra melhor a secura dos tempos - Matheus Pichonelli - http://www.cartacapital.com.br/cultura/vidas-secas-1-7824.html
Cabeça vazia é a oficina do diabo, dizia a minha vó e a vó de
todos os meus amigos de infância. Ter tempo demais, sem exatamente ter o
que fazer, é a mola propulsora para as crianças pintarem as paredes com
pasta de dente, plantarem ovos no quintal ou roubarem os cigarros do
pai.
Quando adultos, a lei e a ordem nos impedem de tapear o tempo com os
velhos recursos infantis, e por isso preferimos tapeá-lo jurando não
termos tempo para nada – ao menos para começar as tarefas adiadas desde a
adolescência, como começar a ler Em Busca do Tempo Perdido.
Mas a verdade é que temos tempo de sobra. Temos tempo demais. Por
isso estamos sempre conectados e em busca de listas salvadoras sobre as
dez coisas que não podemos morrer sem fazer, conhecer, ouvir, lembrar ou
esquecer.
Tempos atrás, perdíamos o sono e nos deparávamos à noite com nosso
maior inimigo: o silêncio. Nada contra o silêncio, mas é ele, e nada
mais, o maior delator de nosso fantasma mais primitivo: a consciência de
que temos tempo de sombra, temos tempo demais, e não sabemos o que
fazer com ele quando é noite, estão todos dormindo e as ruas, imersas em
silêncio. Diante da noite, não há meio-termo entre matar ou morrer.
Antigamente assaltávamos a geladeira. Ou ligávamos a TV para assistir ao
Corujão. Ou escrevíamos cartas a amantes ou desafetos num impulso de
empolgação que se desmancharia nas primeiras luzes do dia e da razão.
Hoje vamos à internet. Ali, encontramos uma legião de insones armados
com facões e outros objetos pontiagudos para matar, estraçalhar,
estripar o tempo de sobra. O tempo, delatado pelo silêncio, é nosso
maior delator: não temos nada de bom para pensar. Por isso a paz não nos
interessa. Ela nos leva ao silêncio, que nos leva a nós mesmos, e esse
encontro é não só indesejado: é insuportável.
No livro Vidas Secas, Graciliano Ramos descreve uma cena em
que Fabiano, o sertanejo do romance, perde uma aposta para o Soldado
Amarelo. Quando percebe, está só, sentado na sarjeta, falido, bêbado e
sem argumento para explicar em casa que o dinheiro para os mantimentos
fora gasto em finalidades menos nobres. É a chegada ao inferno sem
escaladas: em silêncio, Fabiano busca um resquício de bom pensamento
para se acalmar. Em vão, conclui: a vida seria mais suportável se
houvesse ao menos uma boa lembrança. Ele não tinha. Sua vida era seca.
Infrutífera. Vulnerável. Como ele.
Em tempos de secura do ar, de reservatórios, de ideias ou desculpas
convincentes sobre nossas faltas, eu deveria voltar a Graciliano Ramos,
mas confesso que ando ocupado demais matando o tempo que juro não ter.
Todos meus objetos pontiagudos estão empenhados a matar o tempo na
internet, mais especificamente no Facebook, espécie de redutor do muro
que antes separava o que sentíamos e o que pronunciávamos.
Com ele, não faz o menor sentido ter uma ideia e não dividi-la. Não
compartilhá-la. Não lançá-la para ser curtida. As ideias trancafiadas
nos pesam: elas nos levam ao silêncio e às desconfianças, entre elas a
de que não são originais, não valem ser ditas, não valem a atenção, não
valem uma nota, não valem um post. Tarde demais: quando pensamos em
dizer, já dissemos. Em conjunto, essa produção industrial de bobagens e
reduções explícitas da realidade replicadas na rede nos dão a sensação
de preenchimento. De tempo encurtado. De tempo útil. De vida bem vivida.
Vai ver é por isso que, em um estudo recente publicado na revista Science,
as pessoas diziam preferir causar dor a si mesmas do que passar 15
minutos em um quarto sem nada para fazer além de pensar. No experimento,
os cientistas das Universidades da Virgínia e de Harvard confinaram
cerca de 200 pessoas em um quarto sem celular nem material para ler ou
escrever e concluiu: mais de 57% das pessoas acharam difícil se
concentrar; 80% disseram que seus pensamentos vagaram; metade achou a
experiência desagradável. E, o mais estarrecedor: dois terços, sem ter o
que fazer diante do silêncio, resolveram se entreter dando choques em
si mesmos – um deles estraçalhou o próprio tédio com 190 choques. Nada
poderia ser mais revelador dos nossos dias.
Pois ontem passei uma hora e quarenta minutos parado num ponto de
ônibus a espera de um ônibus que não veio. Passaria uma hora e quarenta
minutos me autoimolando se não fosse meu celular, que tanto relutei em
conectar à internet. Foram quase cem minutos contatando meu mundo que me
desse uma palha de conversa, em aplicativos de mensagem instantânea,
sobre a vida, sobre a seca, sobre o tempo que nos resta e não concede
tempo para nada, nem para ler os livros e as revistas que apodreciam em
conjunto na minha mochila.
Se quer saber a dimensão do tempo, fique um minuto em silêncio,
diziam os sábios, que talvez não suportassem passar 15 minutos sem
conferir as últimas mensagens no celular a apitar nos bolsos das
melhores famílias. Os meus vibram e apitam mesmo quando estão vazios.
Sintomas da abstinência, manifestada toda vez que coloco o celular para
carregar e me lembro de que nossas vidas pedem barulho e transbordamento
o tempo todo. Elas estão secas demais para suportar 15 minutos de
silêncio.
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