O tema costuma ser pautado com mais veemência pelos críticos do
positivismo, que rebatem o mantra da objetividade da lei e da
neutralidade do juiz.
Normalmente é o conservador o porta-voz do vetusto discurso do juiz
escravo da lei e da expulsão de dados políticos ou sociológicos do mundo
do direito.
Não deixa de ser uma ironia, portanto, que tenha partido da
incontinência verbal de uma decisão critica à esquerda, a admissão mais
incontida do substrato ideológico da jurisdição.
Black blocs, disse o juiz em sua decisão “são contra o
capitalismo, mas usam tênis da Nike, telefone celular…. postam fotos no
Facebook e até utilizam de uma denominação grafada em língua Inglesa,
bem ao gosto da denominada ‘esquerda caviar’”
A censura ideológica, a citação a um termo inconsistente, mas reproduzido ad nauseam no círculo dos chamados neocons, a reprovação não de uma conduta típica em julgamento, mas de uma postura de ação política.
Várias foram as críticas, mas o certo é que a fundamentação do
magistrado, ainda que embutida em uma breve e discutível caricatura,
acabou por descortinar algo que setores tradicionalistas do direito
teimam em guardar dentro do armário: o conteúdo político e ideológico da
decisão judicial.
Distintas visões de mundo se chocam cotidianamente nas lides
judiciais; a jurisprudência errática, as escaramuças entre as escolas de
pensamento, votos vencidos e tantas outras divergências que ilustram
agudos conflitos ideológicos.
A ideia de um direito objetivo e de um juiz boca-da-lei só serve para
jogar o conflito debaixo do tapete, assentar versões como se fossem
verdades e sufocar posicionamentos diferentes, menos por seus vícios, do
que por suas virtudes.
A noção de um direito como pura técnica, uma engrenagem que se despe
de valores, já nos legou barbáries; ditaduras e segregações foram
construídas com base na objetividade do direito, com a conivência de
juízes que se demitiam da competência de pensar.
O pior que se pode fazer ao direito -e ao Judiciário como seu mais
importante intérprete- é esconder suas lutas internas, encobrir suas
diferenças, mascarar os antagonismos.
Isso não perturba apenas a construção das doutrinas, como permite que
o juiz se esconda da responsabilidade de suas próprias decisões, diante
das alternativas e dos princípios chamados à sua intervenção.
E nada, nada é mais grave do que um juiz que se exima de seu poder, e
assim permite que violências inenarráveis sejam proferidas em seu nome.
Os principais desastres políticos da humanidade conviveram com esta
perversão.
Os limites da função social da propriedade, o alcance da presunção da
inocência, a magnitude da dignidade humana, os sentidos e as
consequências da igualdade.
Há muitos e importantes princípios em construção, em um texto
constitucional que o próprio Supremo Tribunal Federal tem começado a
reler com outros olhos, depois de duas décadas de vigência.
Supor que todos os juízes decidam de forma equânime sobre esses temas
é maltratar a jurisdição. Ignorar que as divergências sejam fruto de
premissas ideológicas é desconhecer o direito.
É só assumindo o caráter político -mas não partidário da jurisdição
(porque a neutralidade pode não existir, mas a imparcialidade é sua
premissa), que compreenderemos o inestimável valor da independência
judicial.
E assim se pode entender a exata dimensão do poder que cada um dos
juízes detêm ao exercer a magistratura, e as consequências que provocam
com suas opções.
Entre estas, por exemplo, a própria superlotação carcerária, fundada
na proliferação das prisões provisórias, decisões exclusivas do juízo.
Afinal, quando a presunção de culpa assume o encargo de tutelar a
ordem pública, na formatação de um estado policial –em que regras e
princípios são abandonados em razão de circunstâncias excepcionais- há nítidas digitais gravadas da justiça.
Se a crítica à esquerda caviar serviu para algo foi
justamente para advertir a sociedade de que a magistratura é múltipla e,
por consequência, seus valores também.
Quem sabe algum dia, um desses filósofos de revista semanal também
consiga encontrar motivos para distinguir, no cipoal destas tantas
diferenças, entre aqueles que se arrostam pela propriedade como um santo graal, quem possa sem ironia ser chamado de juiz-caviar.
http://terramagazine.terra.com.br/blogdomarcelosemer/blog/2014/08/13/esq...
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