sexta-feira, 15 de agosto de 2014

“Esquerda caviar” e o mito da neutralidade do juiz

O tema costuma ser pautado com mais veemência pelos críticos do positivismo, que rebatem o mantra da objetividade da lei e da neutralidade do juiz.

Normalmente é o conservador o porta-voz do vetusto discurso do juiz escravo da lei e da expulsão de dados políticos ou sociológicos do mundo do direito.

Não deixa de ser uma ironia, portanto, que tenha partido da incontinência verbal de uma decisão critica à esquerda, a admissão mais incontida do substrato ideológico da jurisdição.

Black blocs, disse o juiz em sua decisão “são contra o capitalismo, mas usam tênis da Nike, telefone celular….  postam fotos no Facebook e até utilizam de uma denominação grafada em língua Inglesa, bem ao gosto da denominada ‘esquerda caviar’”

A censura ideológica, a citação a um termo inconsistente, mas reproduzido ad nauseam no círculo dos chamados neocons, a reprovação não de uma conduta típica em julgamento, mas de uma postura de ação política.

Várias foram as críticas, mas o certo é que a fundamentação do magistrado, ainda que embutida em uma breve e discutível caricatura, acabou por descortinar algo que setores tradicionalistas do direito teimam em guardar dentro do armário: o conteúdo político e ideológico da decisão judicial.

Distintas visões de mundo se chocam cotidianamente nas lides judiciais; a jurisprudência errática, as escaramuças entre as escolas de pensamento, votos vencidos e tantas outras divergências que ilustram agudos conflitos ideológicos.

A ideia de um direito objetivo e de um juiz boca-da-lei só serve para jogar o conflito debaixo do tapete, assentar versões como se fossem verdades e sufocar posicionamentos diferentes, menos por seus vícios, do que por suas virtudes.

A noção de um direito como pura técnica, uma engrenagem que se despe de valores, já nos legou barbáries; ditaduras e segregações foram construídas com base na objetividade do direito, com a conivência de juízes que se demitiam da competência de pensar.

O pior que se pode fazer ao direito -e ao Judiciário como seu mais importante intérprete- é esconder suas lutas internas, encobrir suas diferenças, mascarar os antagonismos.

Isso não perturba apenas a construção das doutrinas, como permite que o juiz se esconda da responsabilidade de suas próprias decisões, diante das alternativas e dos princípios chamados à sua intervenção.

E nada, nada é mais grave do que um juiz que se exima de seu poder, e assim permite que violências inenarráveis sejam proferidas em seu nome. Os principais desastres políticos da humanidade conviveram com esta perversão.

Os limites da função social da propriedade, o alcance da presunção da inocência, a magnitude da dignidade humana, os sentidos e as consequências da igualdade.

Há muitos e importantes princípios em construção, em um texto constitucional que o próprio Supremo Tribunal Federal tem começado a reler com outros olhos, depois de duas décadas de vigência.

Supor que todos os juízes decidam de forma equânime sobre esses temas é maltratar a jurisdição. Ignorar que as divergências sejam fruto de premissas ideológicas é desconhecer o direito.

É só assumindo o caráter político -mas não partidário da jurisdição (porque a neutralidade pode não existir, mas a imparcialidade é sua premissa), que compreenderemos o inestimável valor da independência judicial.

E assim se pode entender a exata dimensão do poder que cada um dos juízes detêm ao exercer a magistratura, e as consequências que provocam com suas opções.

Entre estas, por exemplo, a própria superlotação carcerária, fundada na proliferação das prisões provisórias, decisões exclusivas do juízo.

Afinal, quando a presunção de culpa assume o encargo de tutelar a ordem pública, na formatação de um estado policial –em que regras e princípios são abandonados em razão de circunstâncias excepcionais- há nítidas digitais gravadas da justiça.

Se a crítica à esquerda caviar serviu para algo foi justamente para advertir a sociedade de que a magistratura é múltipla e, por consequência, seus valores também.

Quem sabe algum dia, um desses filósofos de revista semanal também consiga encontrar motivos para distinguir, no cipoal destas tantas diferenças, entre aqueles que se arrostam pela propriedade como um santo graal, quem possa sem ironia ser chamado de juiz-caviar.

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