Oposição nos traz a ideia de resistência, de buscar travar um
processo que consideramos errado ou nocivo. Os seringueiros se opuseram
ao desmatamento, buscavam bloquear as máquinas. É uma guerra dura contra
interesses dominantes, mas pelo menos as coisas são claras. Bastante
mais complicado é se posicionar quando se trata não de reverter
tendências, mas de acelerar e aprofundar o processo. De certa maneira,
trata-se de empurrar esse imenso paquiderme chamado governo, carcomido
por interesses de grandes grupos agarrados por todas as partes, para que
avance mais e melhor. A grande realidade, o elefante na sala, para
ficarmos nos paquidermes, é que as políticas adotadas nos últimos anos
no Brasil estão dando certo. Mas poderiam dar muito mais.
Isso gera sem dúvida problemas grandes para a direita, a que quer
reverter os processos, pois não pode dizer a que vem: os programas
sociais, o avanço da repartição do produto, os programas para os
segmentos mais pobre da sociedade e semelhantes só são atacáveis por
quem queira fazer um suicídio eleitoral. Sobra a improbidade
administrativa, esse eterno cavalo de batalha que é a corrupção (que
soberba lição de ética nos deram Jânio Quadros com a “vassourinha”, os
militares no poder ou o caçador de marajás de Alagoas), ou a frágil
proclamação de maior eficiência para fazer o mesmo. A direita, para
travar os avanços, apela para elevados sentimentos de ética, o que pode
gerar confusão, mas não constrói alternativas.
Mas, para os que apoiam os avanços do país, é também bastante
complicado. Não dá para negar os imensos avanços, mas não dá para negar a
imensa paralisia política que gera a tal da governabilidade, o
travamento da reforma agrária, os imensos atrasos do saneamento, a
continuidade do financiamento dos grandes grupos de comunicação pela
publicidade oficial, o escandaloso nível dos juros dos bancos
comerciais, a fortuna transferida anualmente para os bancos pela taxa
Selic, a imensa injustiça do sistema tributário, e assim por diante.
Muitos simplesmente baixam os braços e se tornam espectadores, quando
não se juntam a alguma alternativa que esperam ser mais promissora.
O resultado é uma situação no mínimo esdrúxula, em que legítimas
manifestações por mais realizações, ajudando de certa maneira a empurrar
as coisas, se veem confundidas com movimentos de direita, com amplo
apoio na mídia, que quer reverter o que se conseguiu. Essa política da
direita, pegando carona em reivindicações legítimas, faz parte da
confusão gerada. Do lado da oposição positiva, da oposição “para a
frente”, por assim dizer, vale a pena deixar as coisas mais claras.
Interiorização do desenvolvimento
Já era tempo de termos boas cifras sobre como anda o Brasil em sua
base territorial. O Atlas de Desenvolvimento Humano no Brasil 2013
apresenta a evolução dos indicadores nos 5.565 municípios do país. A
confiabilidade é aqui muito importante. No caso, trata-se de um trabalho
conjunto do Pnud, que tem anos de experiência internacional e nacional
de elaboração de indicadores de desenvolvimento humano, do Ipea e da
Fundação João Pinheiro de Minas Gerais, além de numerosos consultores
externos. Os dados são do IBGE. Não há como manipular cifras ou dar-lhes
interpretação desequilibrada com esse leque de instituições de
pesquisa.1
Outro fator importante: o estudo cobre os anos 1991-2010, o que
permite olhar um período suficientemente longo para ter uma imagem de
conjunto. Para os leigos, lembremos que o índice de desenvolvimento
humano (IDH) apresenta a evolução combinada da renda per capita, da
educação e da saúde. Isso permite desde já ultrapassar em parte a
deformação ligada às estatísticas centradas apenas no PIB, que mede a
intensidade de uso dos recursos, e não os resultados. Um desastre
ambiental como o vazamento de petróleo no Golfo do México, só para dar
um exemplo, elevou o PIB dos Estados Unidos ao gerar gastos
suplementares com a descontaminação, “aquecendo” a economia. O fato de
prejudicar o meio ambiente e a população não entra na conta. A
Inglaterra acaba de melhorar seu PIB ao incluir estimativas de tráfico
de drogas e prostituição, no valor equivalente a R$ 37 bilhões.
O dado mais global mostra que nessas duas décadas o IDH municipal
(IDHM) passou de 0,493, ou seja, “muito baixo”, para 0,727, “alto”. Isso
representa um salto de 48% no período. Em 1991, o Brasil contava 85,8%
de municípios no grupo “muito baixo”, portanto, abaixo de 0,5, e em
2010, apenas 0,6%, ou seja, 32 municípios. É um resultado absolutamente
impressionante e retrata um avanço sustentado na base da sociedade. A
tendência já foi sentida nos anos 1990: claramente, a Constituição de
1988, com a democratização, e a quebra da hiperinflação em 1994
permitiram os primeiros passos.
O número de municípios com IDHM “alto” ou “muito alto” passou de 0
em 1991 para 134 no ano 2000, e em 2010 atingiu 1.993 municípios. O que
os dados gerais representam para este país tão desigual é imenso: a
interiorização do desenvolvimento.
A esperança de vida ao nascer passou de 64,7 anos em 1991 para 73,9
anos em 2010, o que significa que na média o brasileiro ganhou nove
anos extras de vida. Em 2012, segundo o IBGE, atingimos 74,5 anos. Não
há como mascarar esse imenso avanço. Os saudosos da ditadura têm hoje em
média dez anos de vida a mais para protestar contra a democracia.
No plano da educação, a porcentagem de adultos com mais de 18 anos
que tinham concluído o ensino fundamental passou de 30,1% para 54,9%. Em
termos de fluxo escolar da população jovem, segundo indicador do item
educação, passamos do indicador 0,268 em 1991 para 0,686 em 2010, o que
representa um avanço de 128%. A área de educação é a que mais avançou,
mas também continua a mais atrasada, pelo patamar de partida
particularmente baixo que tínhamos. E em termos de renda mensal per
capita, passamos de 0,647 para 0,739 no período, o que representou um
aumento de R$ 346. Isso é pouco para quem tem muito, mas, para uma
família pobre de quatro pessoas, aumentar em mais de R$ 1.000 a renda
muda a vida.
São avanços extremamente significativos. Pela primeira vez o Brasil
está começando a resgatar sua imensa dívida social. Aqui não há voo de
galinha, e sim um progresso consistente. Por outro lado, os mesmos dados
mostram quanto temos de avançar ainda. É característico o dado de
população de 18 a 20 anos de idade com o ensino médio completo: 13% em
1991, 41% em 2010. Grande avanço, triplicou o nível, mas também revela o
imenso campo pela frente, e copo meio vazio permite gritos e denúncias,
em particular quando se aproximam as eleições. O Nordeste ainda
apresenta 1.099 municípios, 61,3% do total, com índice “baixo”, na faixa
dos 0,5 e 0,6 no IDHM. Não se trata de questionar o processo, e sim de
reforçá-lo e aprofundá-lo. Guiar-se pelos dados, e não pelos ódios
ideológicos, é fundamental.
Além do PIB
Resumir os resultados do desenvolvimento de uma nação em uma cifra
apenas beira o surrealismo. Uma metodologia interessante apresentada em
2014 mede o desempenho de 132 países, focando os resultados efetivos em
termos de qualidade de vida das pessoas. São 54 indicadores agrupados em
três questões:3
1) O país assegura as necessidades mais essenciais de sua população?
2) Os fundamentos básicos que permitem aos indivíduos e às comunidades alcançar e sustentar seu bem-estar estão assegurados?
3) Há oportunidades para todos os indivíduos alcançarem seus plenos potenciais?
Com o apadrinhamento de Michael Porter e o peso da Universidade
Harvard, os resultados dificilmente poderão ser tingidos de viés
progressista. Fazendo coro com os já numerosos aportes metodológicos que
se multiplicam pelo mundo, o estudo desloca com clareza o foco das
medidas. “Tornou-se cada vez mais evidente que um modelo de
desenvolvimento baseado apenas no desenvolvimento econômico é
incompleto. Uma sociedade que deixa de assegurar as necessidades
básicas, de equipar os cidadãos para que possam melhorar sua qualidade
de vida, que gera a erosão do meio ambiente e limita as oportunidades de
seus cidadãos não é um caso de sucesso. O crescimento econômico sem
progresso social resulta em falta de inclusão, descontentamento e
instabilidade social” (p.11).
Na análise dos autores, “entre os países dos Brics, o Brasil
apresenta o perfil de progresso social mais forte e ‘equilibrado’” (the
strongest and most “balanced”). Exibe uma fraqueza em Necessidades
Humanas Básicas (puxada pelo score muito baixo de 37,5 para Segurança
Pessoal), mas tem uma performance consistentemente boa em todos os
componentes tanto dos Fundamentos de Bem-Estar como de Oportunidades,
com exceção de Educação Superior (38,09, 76o) (p.50).
O Brasil ocupa o 46o lugar entre 132 países, com um índice médio
geral de 69,957. A Colômbia ocupa o 52o lugar; México, o 54o. O PIB per
capita brasileiro utilizado na pesquisa é de US$ 10.264 em valores de
2012. Os dados sintéticos para o Brasil podem ser observados na Tabela
2.
Para termos uma referência, os Estados Unidos ocupam o 16o lugar,
com um PIB per capita de US$ 45.336 e um índice médio geral de 82,77. No
caso do item Fundamentos do Bem-Estar, que envolvem “Acesso ao
conhecimento”, “Acesso à informação e comunicação”, “Saúde e bem-estar” e
“Sustentabilidade”, há uma dinâmica inversa interessante: os Estados
Unidos estão recuando para uma maior desigualdade nos últimos anos e
gerando danos ambientais muito elevados, enquanto o Brasil progride, o
que explica os números muito semelhantes da tabela: 75,96 para os
Estados Unidos e 75,78 para o Brasil.
Produtividade dos recursos
Um segundo eixo de análise que essa pesquisa permite é em termos da
repartição dos recursos. Constata-se uma forte correlação entre o
aumento do PIB e a melhoria na área das necessidades básicas (no caso,
“Nutrição”, “Água e saneamento”, “Habitação” e “Segurança”), mas apenas
para os mais pobres: “As necessidades humanas básicas melhoram
rapidamente quando o PIB per capita aumenta, nos níveis baixos de renda,
mas depois [a tendência] se torna mais horizontal [flattens out] à
medida que a renda continua a aumentar” (p.54).
Para nós, isso é muito importante, pois mostra que o aumento de
renda nos estratos mais pobres melhora radicalmente o progresso social
em geral. Em outras palavras, o dinheiro que vai para a base da
sociedade é muito mais produtivo em relação aos resultados para a
sociedade, o que bate plenamente com as pesquisas do Ipea sobre a
produtividade dos recursos. Estamos aqui no centro do problema da baixa
produtividade econômica gerada pela concentração de renda, confirmando
os efeitos multiplicadores que geram a redistribuição, inclusive para o
próprio PIB.
Isso nos leva de volta ao principal desafio: avançar na redução da
desigualdade. Esta continua crescendo no mundo e está atingindo limites
insustentáveis. É a razão do imenso sucesso do livro de Thomas Piketty, O
capital no século XXI.A desigualdade foi tema central do último Fórum
Econômico Mundial. Grande impacto gerou também o relatório da Oxfam,
Working for the few,4 que com cifras insuspeitas do Crédit Suisse, que
gerencia fortunas e sabe do que fala, constata que 85 pessoas acumularam
mais riqueza do que a metade mais pobre da população mundial.
A dimensão brasileira aparece no relatório da Forbes, com os
principais bilionários brasileiros.5 A origem das fortunas, no nosso
caso, é particularmente interessante: trata-se essencialmente dos
banqueiros (concessão pública, com carta patente, para trabalhar com
dinheiro do público); de donos de meios de comunicação (concessão
pública de banda de espectro eletromagnético para prestar serviço de
comunicação à população); de construtoras (as grandes, que trabalham com
contratos públicos, nas condições que conhecemos); e de exploração de
recursos naturais (solo, água, minérios), que são do país e os quais
mais se extraem do que se produzem. É o divórcio crescente entre quem
enriquece e quem contribui para o país. Piketty é claro: “A experiência
histórica indica que desigualdades de fortuna tão desmesuradas não têm
grande coisa a ver com o espírito empreendedor e não têm nenhuma
utilidade para o crescimento”.6
Moral da história? O avanço social, a redução das desigualdades e a sustentabilidade ambiental não constituem entraves, e sim condição do desenvolvimento em geral. No nosso caso, ao mesmo tempo que se constatam avanços impressionantes, temos um imenso caminho pela frente. Dizer que a dinamização do desenvolvimento pela inclusão se esgotou é bobagem. Estamos no caminho certo, mas o processo precisa de um sólido impulso.
http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1684
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