quarta-feira, 3 de julho de 2013

Primeiro Ato: Democracia, um embuste

O que está nascendo nas ruas? Em quatro atos
Por  Hânder Leal, no blog Brasil de Fato

Cinco e meia da manhã, Brasil acorda e tem mais um dia de trabalho pela frente. O mesmo quotidiano que enfrenta desde que se conhece por gente. Mas nas últimas semanas, não está mais acordando sozinho. Uma juventude nova acordou e foi às ruas pela primeira vez para exercer a democracia – ou teria sido para buscar algo mais do que a democracia? Neste texto e nos seguintes, mostrarei que a oportunidade de fortalecimento pela qual a esquerda brasileira espera há pelo menos duas décadas depende de uma resposta adequada a essa pergunta.

Aparte todas as repercussões que as manifestações recentes geraram, duas constatações me saltam aos olhos. Em primeiro lugar, já que a ascensão econômica continua restrita e dominada por poucos, a democracia mantém-se como a única carta do baralho disponível e desejável quando o assunto é mobilização social. Em segundo lugar, os políticos são os únicos alvos das acusações populares e, mais uma vez, considerados responsáveis por todos os problemas do Brasil. Se bem que as manifestações são um nítido sintoma da carência de propostas políticas concretas em um cenário de baixíssima diferenciação ideológica entre os maiores partidos políticos brasileiros, em verdade, o motivo das manifestações, bem como a solução das demandas populares, transcende em muito a esfera política.

A democracia é um mito que, até onde a historiografia consegue reportar, surgiu na Atenas antiga: que há de se falar em democracia em uma sociedade sustentada por um batalhão de escravos? Passados dois milênios, o que são os trabalhadores mal remunerados e coisificados de hoje senão os escravos da Atenas antiga? A democracia representativa tal qual ainda a concebemos é fruto de um projeto social concebido há mais de trezentos anos no seio das revoluções iluministas, reformistas e liberais que tiveram curso a partir do século XVII em uma Europa que acordava da sombria Idade Média. Então, não estaria mais do que na hora de atualizar o nosso sistema de governo?

No começo do século XX, ao incorporar um grande contingente populacional que migrava do campo para as cidades que abrigavam os polos industriais dos Estados Unidos e da Europa, a democracia ganhou dois novos suportes para se constituir como o elemento crucial na organização social moderna: a propaganda e o consumo de bens de massa. Com a aplicação da teoria psicanalítica à propaganda comercial, o preço a ser pago pela manutenção da ordem em sociedade seria a canalização de qualquer impulso humano naturalmente irrefreável para o consumo e a alienação populares através de meios de comunicação cada vez mais complexos. Emergem os impérios da cultura e do consumo de massa. Deles, nada escapa: nem as emblemáticas máscaras anônimas de Hollywood que você leva para as ruas para papagaiar por menos corrupção, nem o seu grito dominical de gooool.

O consumo irrefreável de bens, mecanismo de diferenciação social e criação de um status meramente simbólico, substitui a consciência política como viga de sustentação dos desejos do indivíduo organizado em sociedade. A democracia, uma vez dependente do fetichismo de consumo para se manter, só é concebível dentro de um sistema capitalista de reprodução social; tudo o mais é tachado de ditadura. Para a Freedom House, instituto de pesquisa considerado o principal termômetro da liberdade política do mundo, pouco importa se estamos falando da Arábia Saudita, país cujas mulheres sequer têm o direito de dirigir, ou da China, líder mundial na redução anual da pobreza. Ambos são igualmente considerados países não livres.

Na democracia ocidental do século XX – e, em termos de instituições políticas e sociais, o Ocidente, ainda em 2013, não conseguiu entrar no século XXI – a propaganda política assumiu a forma da propaganda de consumo de massa. Assim como o Iphone 4 e 5 são a mesma coisa por dentro, os grandes partidos políticos também se dão ao direito de ser. Eleitores cujos impulsos e anseios foram paulatinamente domesticados pela propaganda e pelo consumo de massa – e às vezes nem é necessário que se atinja o estágio do consumo, bastando que se mantenha aceso o desejo de consumir – são péssimos tomadores de decisão e alvo fácil para as grandes corporações econômicas e financeiras, os verdadeiros detentores das rédeas que controlam grande parte dos partidos políticos em um sistema democrático de governo. A disposição de uma boa parte dos manifestantes em levar para as ruas as demandas estrategicamente arquitetadas pelos grupos de poder apenas explicita isso. É esse o upgrade democrático que queremos?

No mito democrático contemporâneo, a imensa maioria da população continua alijada do processo decisório. É não há de culpar-se por isso o político A ou o político B; mas sim, há de se pressionar por uma reforma nas anacrônicas instituições políticas supostamente concebidas para representar o povo. As manifestações recentes mostram a necessidade de uma reforma institucional na política brasileira. Não é exagero dizer que a mobilização social que testemunhamos reflete uma crise de legitimidade da própria democracia representativa.

Talvez seja essa a clara resposta para a pergunta a qual a grande mídia, porta-voz fiel dos grupos de poder, sabiamente, prefere deixar sem respostas: o que, afinal, motiva as manifestações? Grande mídia essa que, em mais uma tentativa de fomentar no povo o velho complexo do cachorro vira-lata, fardo histórico do qual o brasileiro pobre tem conseguido se livrar de maneira louvável devido em parte às políticas públicas de universalização do ensino superior, reforçou o discurso anticorrupção, incorporando as demandas da classe média e dos mercados, como se a corrupção fosse atributo exclusivo do Estado brasileiro. Na época da democracia liberal, digital e alienóide, uma mentira compartilhada mil vez torna-se uma verdade.

Se pensarmos a política interna brasileira como um resultado do processo de inserção internacional subordinada do país – se é que existe forma diferente de pensar no assunto –, perceberemos que a democracia trôpega, simulacro de instituições anacrônicas importadas de nações europeias protagonistas de um longo histórico de imperialismo na periferia do mundo, por simples incompatibilidade de estágios de evolução econômica entre tais nações e o Brasil, não poderá jamais atender às demandas populares de um país periférico como o nosso. É necessário ir além da democracia.

A onda de manifestações que o Brasil testemunha e vive é a face de um fenômeno mundial que nos últimos anos tem posto em cheque instituições políticas anacrônicas em vários países do mundo periférico. Por um lado, é o maio de 1968 dos países em vias de libertar-se das amarras do sistema hegemônico de dependências construído primeiro pelas potências europeias e depois pelos Estados Unidos desde o século XV; por outro, como a inserção internacional do Brasil é ainda resultado histórico de escolhas políticas da própria elite econômica brasileira, trata-se também de um repúdio popular à nossa condição de nação historicamente expropriada de dentro e de fora em seu próprio território. A democracia liberal não é nada mais do que o despojo político desse sistema ocidental de dominação, malogradamente reproduzido pelo Estado brasileiro desde os inglórios tempos de domínio português nos trópicos.

http://www.brasildefato.com.br/node/13406

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