O que está nascendo nas ruas? Em quatro atos
Por Hânder Leal, no blog Brasil de Fato
Cinco e meia da manhã, Brasil acorda e tem mais um dia de trabalho
pela frente. O mesmo quotidiano que enfrenta desde que se conhece por
gente. Mas nas últimas semanas, não está mais acordando sozinho. Uma
juventude nova acordou e foi às ruas pela primeira vez para exercer a
democracia – ou teria sido para buscar algo mais do que a democracia?
Neste texto e nos seguintes, mostrarei que a oportunidade de
fortalecimento pela qual a esquerda brasileira espera há pelo menos duas
décadas depende de uma resposta adequada a essa pergunta.
Aparte todas as repercussões que as manifestações recentes geraram,
duas constatações me saltam aos olhos. Em primeiro lugar, já que a
ascensão econômica continua restrita e dominada por poucos, a democracia
mantém-se como a única carta do baralho disponível e desejável quando o
assunto é mobilização social. Em segundo lugar, os políticos são os
únicos alvos das acusações populares e, mais uma vez, considerados
responsáveis por todos os problemas do Brasil. Se bem que as
manifestações são um nítido sintoma da carência de propostas políticas
concretas em um cenário de baixíssima diferenciação ideológica entre os
maiores partidos políticos brasileiros, em verdade, o motivo das
manifestações, bem como a solução das demandas populares, transcende em
muito a esfera política.
A democracia é um mito que, até onde a historiografia consegue
reportar, surgiu na Atenas antiga: que há de se falar em democracia em
uma sociedade sustentada por um batalhão de escravos? Passados dois
milênios, o que são os trabalhadores mal remunerados e coisificados de
hoje senão os escravos da Atenas antiga? A democracia representativa tal
qual ainda a concebemos é fruto de um projeto social concebido há mais
de trezentos anos no seio das revoluções iluministas, reformistas e
liberais que tiveram curso a partir do século XVII em uma Europa que
acordava da sombria Idade Média. Então, não estaria mais do que na hora
de atualizar o nosso sistema de governo?
No começo do século XX, ao incorporar um grande contingente
populacional que migrava do campo para as cidades que abrigavam os polos
industriais dos Estados Unidos e da Europa, a democracia ganhou dois
novos suportes para se constituir como o elemento crucial na organização
social moderna: a propaganda e o consumo de bens de massa. Com a
aplicação da teoria psicanalítica à propaganda comercial, o preço a ser
pago pela manutenção da ordem em sociedade seria a canalização de
qualquer impulso humano naturalmente irrefreável para o consumo e a
alienação populares através de meios de comunicação cada vez mais
complexos. Emergem os impérios da cultura e do consumo de massa. Deles,
nada escapa: nem as emblemáticas máscaras anônimas de Hollywood que você
leva para as ruas para papagaiar por menos corrupção, nem o seu grito
dominical de gooool.
O consumo irrefreável de bens, mecanismo de diferenciação social e
criação de um status meramente simbólico, substitui a consciência
política como viga de sustentação dos desejos do indivíduo organizado em
sociedade. A democracia, uma vez dependente do fetichismo de consumo
para se manter, só é concebível dentro de um sistema capitalista de
reprodução social; tudo o mais é tachado de ditadura. Para a Freedom
House, instituto de pesquisa considerado o principal termômetro da
liberdade política do mundo, pouco importa se estamos falando da Arábia
Saudita, país cujas mulheres sequer têm o direito de dirigir, ou da
China, líder mundial na redução anual da pobreza. Ambos são igualmente
considerados países não livres.
Na democracia ocidental do século XX – e, em termos de instituições
políticas e sociais, o Ocidente, ainda em 2013, não conseguiu entrar no
século XXI – a propaganda política assumiu a forma da propaganda de
consumo de massa. Assim como o Iphone 4 e 5 são a mesma coisa por
dentro, os grandes partidos políticos também se dão ao direito de ser.
Eleitores cujos impulsos e anseios foram paulatinamente domesticados
pela propaganda e pelo consumo de massa – e às vezes nem é necessário
que se atinja o estágio do consumo, bastando que se mantenha aceso o
desejo de consumir – são péssimos tomadores de decisão e alvo fácil para
as grandes corporações econômicas e financeiras, os verdadeiros
detentores das rédeas que controlam grande parte dos partidos políticos
em um sistema democrático de governo. A disposição de uma boa parte dos
manifestantes em levar para as ruas as demandas estrategicamente
arquitetadas pelos grupos de poder apenas explicita isso. É esse o
upgrade democrático que queremos?
No mito democrático contemporâneo, a imensa maioria da população
continua alijada do processo decisório. É não há de culpar-se por isso o
político A ou o político B; mas sim, há de se pressionar por uma
reforma nas anacrônicas instituições políticas supostamente concebidas
para representar o povo. As manifestações recentes mostram a necessidade
de uma reforma institucional na política brasileira. Não é exagero
dizer que a mobilização social que testemunhamos reflete uma crise de
legitimidade da própria democracia representativa.
Talvez seja essa a clara resposta para a pergunta a qual a grande
mídia, porta-voz fiel dos grupos de poder, sabiamente, prefere deixar
sem respostas: o que, afinal, motiva as manifestações? Grande mídia essa
que, em mais uma tentativa de fomentar no povo o velho complexo do
cachorro vira-lata, fardo histórico do qual o brasileiro pobre tem
conseguido se livrar de maneira louvável devido em parte às políticas
públicas de universalização do ensino superior, reforçou o discurso
anticorrupção, incorporando as demandas da classe média e dos mercados,
como se a corrupção fosse atributo exclusivo do Estado brasileiro. Na
época da democracia liberal, digital e alienóide, uma mentira
compartilhada mil vez torna-se uma verdade.
Se pensarmos a política interna brasileira como um resultado do
processo de inserção internacional subordinada do país – se é que existe
forma diferente de pensar no assunto –, perceberemos que a democracia
trôpega, simulacro de instituições anacrônicas importadas de nações
europeias protagonistas de um longo histórico de imperialismo na
periferia do mundo, por simples incompatibilidade de estágios de
evolução econômica entre tais nações e o Brasil, não poderá jamais
atender às demandas populares de um país periférico como o nosso. É
necessário ir além da democracia.
A onda de manifestações que o Brasil testemunha e vive é a face de um
fenômeno mundial que nos últimos anos tem posto em cheque instituições
políticas anacrônicas em vários países do mundo periférico. Por um lado,
é o maio de 1968 dos países em vias de libertar-se das amarras do
sistema hegemônico de dependências construído primeiro pelas potências
europeias e depois pelos Estados Unidos desde o século XV; por outro,
como a inserção internacional do Brasil é ainda resultado histórico de
escolhas políticas da própria elite econômica brasileira, trata-se
também de um repúdio popular à nossa condição de nação historicamente
expropriada de dentro e de fora em seu próprio território. A democracia
liberal não é nada mais do que o despojo político desse sistema
ocidental de dominação, malogradamente reproduzido pelo Estado
brasileiro desde os inglórios tempos de domínio português nos trópicos.
http://www.brasildefato.com.br/node/13406
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