sexta-feira, 19 de abril de 2013

O papel da educação é subverter as regras

O professor da Universidade de Barcelona e doutor em Filosofia da Educação, Jorge Larrosa Bondía, acredita que a educação é um lugar de recomeço do mundo e de refúgio da infância, um momento de acolher as crianças e iniciá-las na relação com o mundo. “A educação tem a ver com amor e responsabilidade. É o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumir a responsabilidade por ele e o renovamos com a chegada dos mais novos.”

Com diversos livros publicados, Larrosa realizou estudos de pós-doutorado no Instituto da Educação na Universidade de Londres e no Centro Michel Foucault, da Sorbonne, em Paris. Ele defende que as instituições e procedimentos educativos sejam menos padronizados e lidem melhor com o imprevisível, já que a infância traz consigo a possibilidade do recomeço, mais do que um compromisso com a continuidade.

“O nascimento é capturado por essa ideia de futuro e as crianças são colocadas na disposição de continuar um tempo. O futuro é, talvez, a imagem fundamental do Ogro. Digo, a figura do Ogro consiste em educar as crianças do ponto de vista do futuro de outra coisa que não as crianças. Elas têm que ser o futuro da economia, do Brasil, da democracia, da igualdade. Transformamos as crianças na gênese de um futuro que não é o delas, mas de outra coisa que passa por elas.”

 
A figura do Ogro, que transforma as crianças no futuro da sociedade, é sempre ruim?

Jorge Larrosa – O Ogro é um sequestrador de crianças. Essa figura é ambivalente, assim como o amor. Todos nós sabemos bem que há amores que matam. O amor é ambíguo e o gesto de sequestrar crianças também é ambíguo. O pedagogo é, etimologicamente, o escravo que conduzia as crianças à escola. Não era o professor, era o sujeito que arrancava as crianças de casa. Mas é um transportador benigno, porque encaminha as crianças.

Os Ogros não são todos bons, mas os amores tampouco são bons. É a ambivalência que constitui a vida. As mesmas palavras, as mesmas instruções, os mesmos objetivos podem funcionar em uma direção maligna ou em uma direção benigna. A vida é um pouco complicada.

Como é possível vencer as dificuldades personificadas no Ogro?

Larrosa - Essa pergunta pressupõe que o Ogro está fora e por isso é necessário guardar a porta, quando a instituição educativa já foi constituída por um Ogro. Ele está dentro, não fora. O papel da educação é subverter as regras, os procedimentos e as maneiras de fazer. Pensar em como é possível inventar novas formas de fazer no interior de um jogo que está cada vez mais prescrito.

Não sei aqui, mas na Espanha a tarefa dos professores é cada vez menos autônoma, cada vez há mais maneiras de ensinar, avaliar e aprender que eles não desenharam. O que eles fazem é aplicar políticas alheias. Há uma enorme desqualificação profissional. Ensinam a eles como implementar maneiras de fazer, não maneiras de participar. Os modos estão cada vez mais pautados.

Acho que há cada vez menos espaço para propor jogos que vão um pouco contra o previsto. Mas se não fazemos isso não há educação, há outra coisa. Há Mickey Mouse, corporações, futuro do Brasil, da economia, pleno emprego e outras coisas. Mas educação é estabelecer uma relação entre as crianças e o mundo.

No Brasil, Estado, igrejas e empresas estão envolvidas na educação. Como distinguir Ogros de acolhedores da infância?

Larrosa – Essa distinção é muito difícil. Os rituais mudam, as formas mudam, mas a lógica, no fundo, é a mesma. O Ogro é muito sedutor. Vivemos em um mundo de palavras e elas são muito enganosas. Todos nós jogamos, vendemos e usamos palavras bonitas: “crítica”, “autonomia”, “futuro”, “inovação” e não sei o que mais. Mas as palavras mentem muito.

O Ogro é aquela figura ambígua, é impossível saber se é bom ou mau. Sobretudo, é impossível saber se prestamos demasiada atenção ao que ele diz. Temos que ver o que ele faz, depende do contexto. Essa sensibilidade para as aparências é uma capacidade muito importante. Igrejas, pessoas públicas, privadas, todos trabalham para a infância, mas temos que ver o que fazem, a materialidade concreta das atuações, prestar atenção aos discursos que colocam uma boa intenção atrás da outra. 

Estabelecemos uma espécie de concorrência para demonstrar quem tem mais boas intenções.
Então, a educação tem que ser crítica. Sim. E sustentável. Sim. E também sensível à perspectiva de gênero. E inclusiva. E vamos colocando várias coisas até que alguém diz “etc.”, mas poderia prosseguir indefinidamente. É uma espécie de combate estranho. Creio que as boas intenções não devem ser declaradas, porque acabam virando mercadorias.

"O Ogro é aquela figura ambígua, é impossível saber se é bom ou mau."

Como é possível gerar autonomia e consciência crítica no processo de ensino?

Larrosa – Falar, como pensar, é escolher palavras. E escolher palavras é também eliminar palavras. A palavra “crítica” é uma que eu praticamente não utilizo, porque está muito vinculada a algum tipo de juízo. Tem a ver com avaliação, “gosto ou não gosto”, “me agrada ou não agrada”. Não sou muito capaz de fazer a oposição. A negação nunca me interessou muito, porque ela te faz prisioneiro daquilo que critica, de alguma maneira.

Portanto, creio mais na interação e na afirmação do que na negação e na crítica, mas essa é uma coisa minha. E com a palavra “autonomia”, o que acontece é que, em nossa época, as palavras que são da onda da liberdade, “emancipação”, “autonomia”, todas têm um pouco a ver com a constituição dos sujeitos como clientes. É uma lógica um pouco clientelar que está começando a dominar nosso mundo. Eu sou professor e vejo que a universidade está cada vez mais privatizada. Não porque seja pública ou privada, mas porque cada vez mais considera os alunos como clientes. Essas são palavras que me incomodam um pouco.

No entanto, ao mesmo tempo, continuo firmemente convencido de que a educação tem a ver com construir sujeitos que sejam capazes de falar por si mesmos, pensar e atuar por si mesmos. Não diria tanto em ser os donos de suas próprias palavras, porque as palavras não têm dono, mas sujeitos que sejam capazes de se colocar em relação com o que dizem, com o que fazem e com o que pensam. Eu não estou certo de que isso seria autonomia. Mas sei que continuo firmemente convencido de que a educação, se é emancipadora em algum sentido, tem a ver com dar as pessoas a capacidade de pensar por si mesmas.

O que deveríamos fazer com nossas preocupações com o futuro?

Larrosa - O discurso pedagógico moderno está todo constituído sobre essa noção de futuro. A educação seria um instrumento para construir um mundo mais democrático, mais tolerante, justo, igualitário, melhor. Essa é uma forma discursiva quase automática. Mas não foi sempre assim. A educação foi entendida, durante séculos, como a transformação de cada um, uma espécie de ascese pessoal, um trabalho sobre si mesmo que teria mais a ver com abandonar o mundo do que pertencer a ele. E há um momento em que a transformação de si vira a transformação do mundo e a educação vira o instrumento. Isso tem uma data de começo e seguramente tem uma data para terminar.

Mas o que me parece interessante é observar a concepção de infância. As crianças eram entendidas como sujeitos naturais que precisam ser introduzidos à cultura e à língua. A infância era uma espécie de figura do natural que tem de ser domesticada. Mas a figura moderna da infância é outra, onde ela é a matéria prima para construir um mundo distinto. A infância vira o ponto zero de um processo de desenvolvimento ou de aprendizagem. E a infância não é nem a matéria prima para a realização de nossos ideais nem esse ponto zero de um processo de desenvolvimento psicológico. A infância tem a ver com a possibilidade de começar. Por isso falamos tanto dos “novos”. As crianças são “os mais novos”.

E aí pode ocorrer algo interessante, que é o acontecimento, o imprevisível. A educação trabalha com a projeção, mas ao mesmo tempo deve ser sensível ao imprevisível, porque senão não aceita o acontecimento, não aceita a novidade, o que escapa ao projeto. O mundo nunca será como nós gostaríamos que fosse. Graças a Deus. Porque justamente nessa tensão entre o previsível e a introdução de um outro é que está o trabalho educativo. É fundamental fazer planos, mas ao mesmo tempo é fundamental saber que os planos nunca se realizam.

Como lidar com a infância quando ela ocorre fora das condições de garantia de direitos e desenvolvimento?


Larrosa  - Outro automatismo no discurso contemporâneo é que a escola tem que dar conta das condições particulares de cada criança, trabalhar com tudo aquilo que as condiciona e as determina. A lista de especialidades é interminável: condições sociais, culturais, intelectuais, cognitivas, psicológicas. No entanto, a minha ideia é a educação como refúgio incondicional, receber as crianças não em função daquilo que as determina, mas lidar com o indeterminado e que cada um possa se separar de suas próprias condições.

Eu creio que esse funcionamento, da educação como um contra destino, só pode acontecer se as crianças não são determinadas pelo que as condiciona, mas por suas possibilidades. Não pelo que as determina, mas pelo que as indetermina. A educação trabalha com as potências, não com as condições. Claro que há crianças ricas, pobres, grandes, negros, deficientes, com a família desestruturada etc. Mas eu acredito que devemos ser um pouco indiferentes, não prestar muita atenção a isso. Temos que dar atenção às potências, não às impotências. E o educador às vezes está muito preso fazendo a lista das condições, das impossibilidades.

Quais caminhos os profissionais da educação devem percorrer para estarem aptos a responder às novas demandas?

Larrosa – Não sei muito bem, porque isso muda muito depressa. Estou na academia há anos, já vi muitos paradigmas entrarem e caírem muitas vezes. Hoje em dia os termos “inclusão” e “exclusão” tem uma grande força. Nos anos 70 e 80 se falava em “inadaptação”. Na faculdade era “análise da inadaptação social”. Os paradigmas teóricos e as soluções são substituídos rapidamente. Acho que isso obedece a lógica de mercado. Para vender, temos que inventar formas de trabalhar que transformem em obsoletas as que já existem. Por isso não sei bem. Mas posso dizer que os educadores estão perdendo capacidade profissional, ou seja, perdendo a capacidade de serem responsáveis por suas próprias decisões.

Creio que temos que defender a responsabilidade do educador, a possibilidade de inventar coisas e também de fracassar, de se equivocar, de aprender de novo. Não sei se isso acontece aqui, mas na Espanha os professores estão cada vez mais clonados e substituíveis. Se vestem igual, falam igual, se comportam igual, o mesmo sorriso, parece que vão ao mesmo dentista, aprenderam os mesmos métodos. São cada vez mais prescindíveis.

Deveríamos reclamar um pouco pelo direito à diferença, à invenção, a não jogar o que todo mundo joga, não sorrir como todo mundo sorri, não falar como todo mundo fala, não formular projetos como todo mundo formula projetos. Vou a debates em São Paulo, Lisboa, Bogotá e é uma sensação muito estranha: as pessoas falam das mesmas coisas, quase com as mesmas palavras. Há uma homogeneização tremenda. Porque não deixamos que as pessoas façam um pouco o que lhes parece melhor? Que pensem e que proponham. Caso se equivoquem, tudo bem, porque as políticas públicas, que têm tanto dinheiro, boas intenções e assessores, também fracassam. Portanto, nós corremos os mesmos riscos que ministros, secretários e grandes instituições.

Por  Camila Caringe

http://portal.aprendiz.uol.com.br/2013/04/09/o-papel-da-educacao-e-subverter-as-regras/

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