Autor(es): José Graziano da Silva
Em todo o mundo, mas especialmente nas regiões mais pobres do
planeta, as mulheres personificam a força da vida que se renova
diariamente no desmentido da fatalidade.
Vencer a fome para milhões de mulheres que compõe 43% da força de
trabalho agrícola nos países em desenvolvimento, por exemplo, não é uma
meta distante, mas uma incumbência da rotina cotidiana.
As mulheres são como voluntárias anônimas dessa que é a guerra mais
devastadora e, paradoxalmente, a de mais fácil solução em nosso tempo:
superar a privação alimentar que atinge um em cada oito habitantes do
planeta, cerca de 870 milhões de seres humanos.
Todos os anos, adverte a Organização Mundial da Saúde (OMS), a fome
sozinha mata mais que doenças como a Aids, a malária e a tuberculose
juntas.
Nos países em desenvolvimento, 30% da mortalidade infantil nos primeiros cinco anos de vida tem sua origem na desnutrição.
Depende em grande parte das mãos femininas o escrutínio diário entre o
alimento e a mesa nua, em milhões de lares em todo o planeta.
Cabe aos governos e instituições de cooperação internacional dar-lhes
um empoderamento correspondente a esse protagonismo. Municiando-as das
ferramentas, dos direitos, das políticas e dos recursos necessários à
eficácia de uma vigília incansável. Insubstituível.
A compreensão do Estado sobre o papel nuclear da mulher no
desenvolvimento econômico e social e o consenso político para dotá-la de
instrumentos e direitos correspondentes constitui um dos mais
importantes passos da luta contra a fome.
Desde a gestação, a mulher é a grande sentinela na linha de frente da
luta pela justiça social. Os primeiros mil dias na vida de uma criança,
entre a gravidez e os dois anos de idade, marcarão para sempre o seu
desenvolvimento.
Podem significar a diferença para mais ou para menos na contabilidade
sombria que hoje acumula o saldo de 2,5 milhões de crianças mortas
todos os anos, enredadas numa teia de fome e privações.
Nenhum programa sério de combate à pobreza e à desigualdade será bem
sucedido se não incorporar como seu aliado quem figura como o primeiro
abrigo da segurança alimentar em qualquer sociedade: a mulher.
Do ventre ao leite materno, dele à primeira fruta, da primeira porção
de cereal à primeira refeição completa e dela às milhares seguintes, a
nutrição humana conecta-se à oferta da natureza e às restrições da
sociedade mediada pelo longo e generoso cordão umbilical do zelo
feminino.
Revestir a mesa da família de algum alimento, ali onde a oferta é
escassa, cara e muitas vezes improvável, requer frequentemente a
extensão desse instinto materno no manejo da terra, adicionado de uma
intimidade carnal com o ciclo da natureza e do alimento.
No gigantesco continente africano, fronteira onde se trava a
principal batalha contra a fome no século XXI, cerca de 240 milhões de
pessoas formam a maior proporção de famintos do mundo, equivalente a 23%
da população regional.
É no espaço rural, onde vivem 60% dos africanos, que a luta contra a
tragédia assume contornos decisivos. As mulheres chefiam uma em cada
quatro lares rurais na África. Na porção sul do continente, essa
participação sobe a 45%.
Guerras e conflitos éticos, migrações e colapsos ambientais
exacerbaram a sua presença e o seu peso na força de trabalho agrícola
nos últimos anos. No Norte da África ela saltou de 30% para 43%, desde
1980. Tornou-se majoritária em alguns países, caso do Lesoto, onde
corresponde a mais de 65% dos que trabalham a terra.
O aumento das responsabilidades das mulheres significa uma dupla, às
vezes uma tripla jornada - no campo, na família e na comunidade. Esses
compromissos adicionais nem sempre são reconhecidos, valorizados e
compartilhados com os homens e frequentemente torna-se uma trava no
empoderamento da mulher nas sociedades.
No chão africano, como em outras terras distantes do globo, o dia feminino nasce junto ao fogo e amanhece com os pés na roça.
A mão que semeia é a mesma que rastreia a coleta da primeira refeição
e se desdobra no amparo matinal à infância, no cuidado com os animais.
Muitas vezes, é essa mesma mão que traz a novidade para dentro de
casa. A produção de um queijo, um artesanato, a introdução de uma nova
semente, a reprodução de um caprino, a coleta do mel - reforços
preciosos de um orçamento magro e uma dieta premida pela única certeza
que reveste esse universo esquecido: a inconstância do alimento.
É imperioso resguardar esse lastro da vida, sobretudo nas regiões
mais pobres, onde a infância e a adolescência femininas estão sendo
capturadas precocemente pelo redemoinho da sobrevivência.
Mais de 61 milhões de meninas com idade entre cinco e 14 anos trabalham na agricultura atualmente, lembra a OIT.
Paradoxalmente, em todas as latitudes, são as mulheres que amargam um
acesso mais restrito à propriedade jurídica da terra, que por extensão
afeta seu direito ao crédito e aos insumos necessários à maximização de
um esforço superlativo na cadeia comunitária.
A equiparação desses direitos e acessos, de modo a fechar o hiato de
gênero na agricultura das nações mais vulneráveis, figura como uma das
mais importantes políticas de segurança alimentar a serem implementadas
por governos e instituições voltadas à cooperação internacional.
Não só contra a fome.
Sobretudo nas condições difíceis da luta pela sobrevivência em países
pobres e em desenvolvimento, as mulheres frequentemente são quem
impelem sociedades à busca da paz, cooperação, da segurança e da
solidariedade.
Valor Econômico - 08/03/2013
José Graziano da Silva é diretor-geral da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO)
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