Desejo um feliz 2013, com as reflexões do belo artigo de Juremir Machado da Silva:
O anarquismo epistemológico como voto de feliz ano novo
“O anarquismo epistemológico difere tanto do ceticismo quanto do
anarquismo político (religioso).
Enquanto o cético vê tudo como
igualmente bom ou igualmente mau ou desiste completamente de formular
juízos dessa espécie, o anarquista epistemológico não sente escrúpulo em
defender o mais banal ou o mais afrontoso enunciado. Enquanto o
anarquista político ou religioso pretende afastar certa forma de vida, o
anarquista epistemológico desejará, talvez, defendê-la, pois não tem
lealdade permanente para com qualquer instituição, nem permanente
aversão contra ela.
Como o dadaísta, a quem se assemelha muito mais do
que se assemelha ao anarquista político, o anarquista epistemológico
‘não apenas não tem programa [como é] contra todos os programas’,
embora, por vezes, se mostre o mais exaltado defensor do status quo ou
de seus opositores: ‘Para ser um verdadeiro dadaísta há que ser também
um antidadaísta’. Seus objetivos mantêm-se os mesmos ou se alteram na
dependência do argumento, do tédio, de uma experiência de conversão, do
desejo de impressionar a amante ou de outros fatores dessa ordem.
Dado
um objetivo qualquer, o anarquista epistemológico talvez tente atingi-lo
com o auxílio de grupos organizados, talvez sozinho. Talvez recorra à
razão, à emoção, ao ridículo, a uma ‘atitude de séria preocupação’ ou a
quaisquer outros meios inventados pelos humanos para obter o que há de
melhor em seus semelhantes.
Seu passatempo favorito é o de perturbar os
racionalistas descobrindo razões fortes para fundamentar doutrinas
desarrazoadas. Não há concepção ‘absurda’ ou ‘imoral’ que ele se recuse a
examinar ou acompanhar e método algum é visto como indispensável.
Aquilo a que se opõe de maneira decidida e absoluta são os padrões
universais, as leis universais, as ideias universais, como ‘Verdade’,
‘Razão’, ‘Justiça’, ‘Amor’, e o comportamento que essas ideias
acarretam, conquanto não deixe de admitir que, frequentes vezes, é de
boa política agir como se tais leis (tais padrões, tais ideias)
existissem e como se lhes desse crédito.
Talvez que o anarquista
epistemológico se ligue ao anarquista religioso na oposição à ciência e
ao mundo material e talvez que supere qualquer vencedor de Prêmio Nobel
na defesa vigorosa da pureza científica, Não tem ele objeção a ver, na
textura do mundo, tal como descrito pela ciência e revelado por seus
próprios sentidos, uma quimera, por detrás da qual se oculta uma
realidade mais profunda, e, talvez, espiritual, ou simples teia de
sonhos, que nada revela e nada esconde.
Devota grande interesse a
procedimentos, fenômenos e experiências do tipo relatados por Carlos
Casteñeda, indicadores de que as percepções podem ser dispostas de
maneira fora do comum e que a escolha de uma particular disposição
‘correspondente à realidade’, embora não sendo arbitrária (depende,
quase sempre, de tradição), certamente não é mais ‘racional’ ou mais
‘objetiva’ do que a escolha de outra disposição qualquer.”
(…)
“Dessa forma, a ciência aproxima-se do mito, muito mais do que uma
filosofia científica se inclinaria a admitir. A ciência é uma das muitas
formas de pensamento desenvolvidas pelo homem e não necessariamente a
melhor. Chama a atenção, é ruidosa e impudente, mas só inerentemente
superior aos olhos daqueles que já se hajam decidido favoravelmente a
certa ideologia ou que já tenham aceito, sem sequer examinar suas
conveniências e limitações. Como a aceitação e a rejeição de ideologias
devem caber ao indivíduo, segue-se que a separação entre o Estado e a
Igreja há de ser complementada por uma separação entre o Estado a
ciência, a mais recente, mais agressiva e mais dogmática instituição
religiosa. Tal separação será, talvez, a única forma de alcançarmos a
humanidade de que somos capazes, mais que jamais concretizamos.”
Fragmentos de “Contra o método”, clássico do físico e filósofo da
ciência austríaco, naturalizado norte-americano, Paul Feyerabend, que
foi professor em Berkeley, Auckland, Sussex, Yale e Londres.
*
O anarquista epistemológico não é anticientífico.
É hiper.
Pergunta sempre, ecoando o ceticismo de Agripa: o que prova que a tua prova é uma boa prova?
Vive como uma artista da desconstrução.
Não entrega nada do que é social ao olhar exclusivo de especialistas.
Só acredita na força do argumento.
Não se nega, porém, a citar especialistas, como efeito de credencial,
para combater e impressionar os ingênuos ou os espertos que acreditam
ou defendem isso como argumento de autoridade, ou seja, argumento
autoritário.
Tem o maior interesse pela opinião dos outros.
Tem a maior dúvida sobre suas próprias opiniões.
Mas sabe separar o chute e a teoria.
Conhece os limites dos adjetivos, mas não se recusa a adjetivar os
que adjetivam como respiram e depois se queixam das adjetivações
sofridas.
Contra o excesso de racionalismo, defende o não-racional.
Contra a perversidade e a violência simbólica ou concreta do
irracionalismo dogmático, valoriza a razão, a ciência, a argumentação e a
clareza.
Contra o ideologismo disfarçado de fim das ideologias por ignorância
ou má fé, não se cansa de mostrar a força ideológica no mundo e nas
mentes.
Contra a ideologia como negação do demonstrável e encobrimento do
provável, ataca a ideologização como falsificação consciente ou não do
vivido.
Contra o bullying, pratica a autodefesa visceral.
O anarquista epistemológico diverte-se pensando por conta própria, derrubando mitos e não temendo pensar contra o rebanho.
Tampouco se recusa a seguir o rebanho quando se sente confortável e aquecido pelo calor e pela sabedoria cotidiana da massa.
Por ser assim, fiel à sua missão civilizadora e infiel a qualquer
partido ou ideologia, garante a sua cota diária de insultos e elogios.
Feliz 2013!
http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/?p=3686
Nenhum comentário:
Postar um comentário