sábado, 3 de março de 2012

SAÚDE MENTAL

Por Luciana Ribeiro

De Rubem Alves
Fui convidado a fazer uma preleção sobre saúde mental. Os que me
convidaram supuseram que eu, na qualidade de psicanalista, deveria ser um
especialista no assunto. E eu também pensei. Tanto que aceitei. Mas foi
só parar para pensar para me arrepender. Percebi que nada sabia. Eu me
explico.

Comecei o meu pensamento fazendo uma lista das pessoas que, do meu ponto
de vista, tiveram uma vida mental rica e excitante, pessoas cujos livros e
obras são alimentos para a minha alma. Nietzsche, Fernando Pessoa, Van
Gogh, Wittgenstein, Cecília Meireles, Maiakovski. E logo me assustei.
Nietzsche ficou louco. Fernando Pessoa era dado à bebida. Van Gogh
matou-se. Wittgenstein alegrou-se ao saber que iria morrer breve: não
suportava mais viver com tanta angústia. Cecília Meireles sofria de uma
suave depressão crônica. Maiakovski suicidou-se. Essas eram pessoas
lúcidas e profundas que continuarão a ser pão para os vivos muito depois
de nós termos sido completamente esquecidos.

Mas será que tinham saúde mental? Saúde mental, essa condição em que as
idéias comportam-se bem, sempre iguais, previsíveis, sem surpresas,
obedientes ao comando do dever, todas as coisas nos seus lugares, como
soldados em ordem-unida, jamais permitindo que o corpo falte ao trabalho,
ou que faça algo inesperado; nem é preciso dar uma volta ao mundo num
barco à vela, basta fazer o que fez a Shirley Valentine (se ainda não
viu, veja o filme!) ou ter um amor proibido ou, mais perigoso que tudo
isso, a coragem de pensar o que nunca pensou. Pensar é coisa muito
perigosa...

Não, saúde mental elas não tinham. Eram lúcidas demais para isso. Elas
sabiam que o mundo é controlado pelos loucos e idosos de gravata. Sendo
donos do poder, os loucos passam a ser os protótipos da saúde mental.
Claro que nenhum dos nomes que citei sobreviveria aos testes psicológicos a
que teria de se submeter se fosse pedir emprego numa empresa. Por outro
lado, nunca ouvi falar de político que tivesse estresse ou depressão.
Andam sempre fortes em passarelas pelas ruas da cidade, distribuindo
sorrisos e certezas.

Sinto que meus pensamentos podem parecer pensamentos de louco e por isso
apresso-me aos devidos esclarecimentos.

Nós somos muito parecidos com computadores. O funcionamento dos
computadores, como todo mundo sabe, requer a interação de duas partes.
Uma delas chama-se hardware, literalmente "equipamento duro", e a outra
denomina-se software, "equipamento macio". O hardware é constituído por
todas as coisas sólidas com que o aparelho é feito. O software é
constituído por entidades "espirituais" - símbolos que formam os
programas e são gravados nos disquetes.

Nós também temos um hardware e um software. O hardware são os nervos do
cérebro, os neurônios, tudo aquilo que compõe o sistema nervoso. O
software é constituído por uma série de programas que ficam gravados na
memória. Do mesmo jeito como nos computadores, o que fica na memória são
símbolos, entidades levíssimas, dir-se-ia mesmo "espirituais", sendo que o
programa mais importante é a linguagem.

Um computador pode enlouquecer por defeitos no hardware ou por defeitos
no software. Nós também. Quando o nosso hardware fica louco há que se
chamar psiquiatras e neurologistas, que virão com suas poções químicas e
bisturis consertar o que se estragou. Quando o problema está no software,
entretanto, poções e bisturis não funcionam. Não se conserta um programa
com chave de fenda. Porque o software é feito de símbolos, somente
símbolos podem entrar dentro dele. Assim, para se lidar com o software há
que se fazer uso de símbolos. Por isso, quem trata das perturbações do
software humano nunca se vale de recursos físicos para tal. Suas
ferramentas são palavras, e eles podem ser poetas, humoristas, palhaços,
escritores, gurus, amigos, e até mesmo psicanalistas.

Acontece, entretanto, que esse computador que é o corpo humano tem uma
peculiaridade que o diferencia dos outros: o seu hardware, o corpo é
sensível às coisas que o seu software produz. Pois não é isso que
acontece conosco? Ouvimos uma música e choramos.
Lemos os poemas eróticos do Drummond e o corpo fica excitado.

Imagine um aparelho de som. Imagine que o toca-discos e os acessórios, o
hardware, tenham a capacidade de ouvir a música que ele toca e se
comover. Imagine mais, que a beleza é tão grande que o hardware não a
comporta e se arrebenta de emoção! Pois foi isso que aconteceu com
aquelas pessoas que citei no princípio: a música que saía do seu software
era tão bonita que o seu hardware não suportou.
Dados esses pressupostos teóricos, estamos agora em condições de oferecer
uma receita que garantirá, àqueles que a seguirem à risca, saúde mental
até o fim de seus dias.

Opte por um soft modesto. Evite as coisas belas e comoventes. A beleza é
perigosa para o hardware. Cuidado com a música. Brahms e Mahler são
especialmente contra-indicados. Já o roque pode ser tomado à vontade.
Quanto às leituras, evite aquelas que fazem pensar. Há uma vasta
literatura especializada em impedir o pensamento. Se há livros do doutor
Lair Ribeiro, por que se arriscar a ler Saramago? Os jornais têm o mesmo
efeito. Devem ser lidos diariamente. Como eles publicam diariamente
sempre a mesma ciosa com nomes e caras diferentes, fica garantido que o
nosso software pensará sempre coisas iguais. E, aos domingos, não se
esqueça do Sílvio Santos e do Gugu Liberato.

Seguindo essa receita você terá uma vida tranqüila, embora banal. Mas
como você cultivou a insensibilidade, você não perceberá o quão banal ela
é. E, em vez de ter o fim que tiveram as pessoas que mencionei, você se
aposentará para, então, realizar os seus sonhos. Infelizmente,
entretanto, quando chegar tal momento, você já terá se esquecido de como
eles eram.

(Rubem Alves, "Sobre o tempo e a eternidade", Ed. Papirus )

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