terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

SOBRE A FESTA

texto de ANTONIO RISÉRIO*
A festa é um fenômeno universal. Está presente em todas as épocas, sociedades, povos e culturas. É por isso mesmo que qualquer manual de antropologia sempre traz verbetes sobre cerimônias e rituais. Sobre a relação entre sacrifícios, oferendas e festas. Sobre a festa como parte do rito. Sobre os aspectos não-rituais e não-religiosos da festa. Sobre música e dança.
A festa é um hiato. É uma saída para fora da história. É uma quebra no encadeamento cotidiano das coisas do mundo. É uma suspensão delirante da rotina. É uma abertura, fenda ou brecha na sequência, na linearidade, no fio lógico da vida individual ou coletiva. São muitas, enfim, as definições, as interpretações que os estudiosos nos oferecem do fenômeno trans-histórico e transcultural da festa. Não raro, fazendo-a derivar do sagrado: a origem da festa estaria na religião, em tempos onde não havia uma separação entre festas sagradas e festas profanas.
Mas não vamos enveredar pelo mundo labiríntico das interpretações da festa. Fiquemos em plano mais simples, mais pedestre. O fato é que não há humanidade sem festa. Sem música, dança e canto. O amor da humanidade pelos floreios da voz e os meneios do corpo data de milênios. Sempre esteve presente em todos os cantos e recantos do mundo. Em todas as partes do planeta. Desse amor, nenhum povo ou comunidade escapou, escapa ou deseja escapar.
Bom exemplo disso são os índios que habitavam os trópicos atualmente brasileiros. Quando os europeus começaram a desembarcar aqui, às primeiras luzes do século 16, ficaram impressionados. Os tupis que circulavam pelos litorais brasílicos tinham, basicamente, duas preocupações: a guerra e a festa. Cabia às cunhas produzir o beiju de cada dia da aldeia. Porque os homens, quando não estavam trocando flechas e tacapadas, promoviam bailes. Com uma diferença fundamental. A guerra era empresa exclusivamente masculina. A festa, não. A festa era de todos.
Pero Vaz de Caminha, aliás, conta um episódio maravilhoso, ocorrido num domingo de abril de 1500, ao sol de Porto Seguro. Um grupo de índios dançava perto do rio, “sem se tomarem pelas mãos”. Diogo Dias meteu-se no meio deles e começou a tocar e dançar, fazendo com que todos se dessem as mãos. E assim se foi formando uma roda de dança, uma festa de mãos dadas, ao som da gaita medieval que ele tocava. Foi a dança do encontro. Neste bom sentido, podemos dizer que sim: o Brasil nasceu dançando.
Os africanos dançavam – e muito – na África Negra. E continuaram dançando do lado de cá do Atlântico Sul. De seus ritmos e coreografias nasceu o samba de roda do Recôncavo, que, por sucessivas estilizações, daria no samba raiado do Rio de Janeiro, uma das forças fundamentais da festa brasileira. Com os nagôs, vieram os orixás, descendo do orum para a Terra. Em dia de festa. É para isso que brilham os terreiros. Não há religião sem festa. Sem festa, os deuses não dançam entre os mortais. E os negros contribuíram ainda, aqui, para a articulação entre festa sagrada e profana. Como na festa do Senhor do Bonfim. No reinado de Iemanjá, na festa do Ano Novo, que se irradiou do Rio para todo o litoral do país. No Círio de Nazaré, o “carnaval devoto”, em torno da Virgem, em Belém do Pará.
Nossas grandes festas públicas, rituais coletivos de teatralização da sociedade, nasceram com essa mescla de sagrado e profano. Eram as festas barrocas dos séculos 17 e 18, que conheceram seu esplendor nas cidades do ouro, em Minas Gerais. Procissões de som e brilho, com carros alegóricos, alas disso e daquilo, ruas decoradas, que forneceram o modelo da grande festa pública brasileira. Especialmente, o modelo do carnaval, esplendorosa procissão neobarroca, como no desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro.
Mas nem só de grandes ritos coletivos vive a humanidade. Vive, também, de festas corriqueiras, de bailes “funks” a quermesses de cidades do interior. De um extremo a outro, estende-se a festa brasileira. Porque a festa é universal, mas tem seu modo de se manifestar em cada coletividade. E o nosso modo tem a ver com a nossa configuração cultural e formação genética. Com o nosso ambiente. Com o retrato que gostaríamos de fazer de nós mesmos. Com o nosso gregarismo. Com nosso corpo – e nossa alma.

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