A cultura de raiz não só na Bahia, como em qualquer outra parte do
planeta, vem sofrendo um bombardeio constante desde o início da chamada “Guerra Fria” (1) e que piorou com a concepção da idéia da “globalização” (2).
(1) A Guerra Fria foi uma disputa ideológica entre Estados
Unidos e União Soviética, que transcorreu a partir do fim da Segunda
Guerra Mundial (1945) e findou em 1991, com o fim da União Soviética.
Esse conflito pode ser definido como uma guerra econômica, cultural,
diplomática e tecnológica que tinha como objetivo a expansão das áreas
de influências do capitalismo e do socialismo. A principal preocupação
de ambos estava relacionada à questão da hegemonia perante aos demais
países.
(2) Globalização é um tentáculo do capitalismo desenvolvido para
que seus braços alcancem, tal como os de um polvo, e envolva, domine e
estrangule a sua presa. Esse processo consiste, na prática, na
dominação de caráter econômico, cultural e político dos mais fortes
sobre os mais fracos.
Dessa forma, os dominadores procuraram, para criar a sua hegemonia no
mundo, criar a forma do pensamento único com base na sua cultura e nos
seus princípios. Assim, descrevem essa “lavagem cerebral”:
O escritor Luiz Carlos Maciel, em seu livro “Geração em Transe”:
“Hoje, as manifestações juvenis de nosso passado recente, depois de
domadas, assimiladas e distorcidas pelo sistema, foram substituídas por
um fetiche abstrato e bastante ridículo que é o jovem tal como é
definido pelas agências de publicidade, delineado pelas pesquisas de
opinião, incensado pela mídia, tomado por paradigma de eficiência
empresarial (o tal do Yuppie) e, o que é pior de tudo, imposto como
modelo aos ainda mais jovens, ou seja, nossas crianças. Esse “jovem” é o
que, no meu tempo, chamávamos de alienado e, depois, de careta. Trata –
se de uma domesticação dos instintos naturais da juventude em função
dos interesses do sistema.”
O professor e sociólogo, Ph.D. da Universidade da Califórnia em Berkeley, James Petras:
“O imperialismo cultural americano tem dois grandes objetivos, um
econômico e o outro político: capturar mercados para as suas mercadorias
culturais e estabelecer hegemonia pela modelação da consciência
popular. A exportação do entretenimento é uma das mais importantes
fontes de acumulação de capital e de lucros globais.
O alvo principal do imperialismo cultural é a exploração política e
econômica da juventude. O entretenimento imperial e a publicidade
alvejam pessoas jovens, que são mais vulneráveis à propaganda comercial
americana. A mensagem é simples e direta: “modernidade”' é associada
com o consumir de produtos da propaganda americana. A juventude
representa um grande mercado para a exportação cultural americana e são
eles os mais susceptíveis à propaganda consumista-individualista.”
É exatamente esta alienação que provoca a aculturação na sua forma mais
cruel, ou seja, a assimilação, que é o fenômeno onde um grupo cultural
“absorve” outro grupo cultural.
Com o apoio da mídia de massa passamos a consumir vorazmente produtos
culturais de origem americana. Assim, nas TVs, nos cinemas e nos gibis,
passamos a consumir os heróis americanos alguns com seus trajes azul,
vermelho e branco, muitos com as estrelinhas, copiando as cores e a
bandeira americana, tais como Capitão América, Mulher Maravilha,
Superman. Os filmes de ficção científica obrigatoriamente passavam pela
NASA. Outros exemplos deste domínio são os novos ídolos como Justin
Bieber, Selena Gomez, Miley Cyrus, Zac Efron . Outros exemplos são o
excesso de palavras de origem inglesa do nosso vocabulário e o
Halloween, comemoração obrigatória em nossas escolas. As viagens para a
Disney é o maior sonho das nossas crianças. Por aí vai a lavagem
cerebral que o modelo impõe.
Na Bahia
Mas a Bahia é diferente. Sua cultura de raiz resiste a essas imposições
bravamente, talvez pela própria velocidade do seu povo, do jeito
gostoso de vadiar, da sua riqueza ímpar, tão característico do baiano.
Ela foi formada a partir dos nativos, africanos e portugueses. E
durante séculos se manteve sem outras influências, consolidando de
forma tenaz esta mistura que deu origem a sua riqueza. A própria
televisão, veículo de grande influência, só chegou à Bahia na década de
60 e com programação local. Só na década de 70 é que passou a
retransmitir programação de outros estados.
Algumas características que ajudam a manter a coesão da cultura baiana:
1) O linguajar cotidiano típico do seu povo, praticado por todas as classes sociais:
“Painho”, “mainha”, “vixe Maria”, “oxente”, “porreta”, “ó pai ó”, “meu irmão”.
São diálogos que mantém uma grande proximidade e cumplicidade:
• “Êta! Ôce tá retado mesmo”: É uma expressão muito
usada para dizer que você está com a bola toda. Ou pode ser usado para
indicar que alguém está aborrecido.
• “E aí, mer mão! Você é meu peixe, minha corrente”: E aí, meu camarada! Você é meu amigo, te considero muito!
• “Rapaz, você fala mais que a nêga do leite”: Você é um tagarela, não consegue parar de falar.
• “É nenhuma”: Tudo ok!
• “Tá vendo? Fica aí dando mole”: Você está perdendo oportunidades, está “vacilando”.
Baiano não fala “Não sei”, diz “Sei lá!”. Chama de “Rapaz” e “Velho” qualquer pessoa, seja homem ou mulher. No lugar de “vamos embora”, falamos “vumbora” ou “'bora”e também pode ser dito em forma repetitiva-poética como “borimbora” que quer dizer “vumbora embora”. Bora Bahêa porra.
O linguajar é tão típico que foi criado um Dicionário de Baianês e sobre ele falam:
Antonio Houaiss. “Para o início ou composição de um dicionário
da língua brasileira, este livrinho é um primeiro documentário precioso
que muito contribuirá para o registro da palavra de uso baiano”.
Márcia Gomes - Jornal do Brasil “A vida não me chegava pelos
jornais nem pelos livros,vinha da boca do povo na língua errada do
povo, língua certa do povo, porque ele é que fala gostoso o português
do Brasil”.
2) Os seus bairros, ruas, praias têm nomes indígenas, africanos que
mantêm acesso no dia a dia a sua miscigenação e riqueza cultural.
Itapuã, Piatã, Arembepe, Aquidabã, Amaralina, Itapagipe,
Pituaçú, Pituba, Tororó, Itaparica, Jauá, Itapagipe, Itaigara.
3) Na culinária, seus pratos típicos são de origem indígena e africana.
É tradicional às sextas-feiras se comer o “Carurú”. O lanche no final da tarde é o “acarajé”
que ainda não foi substituído pelo “McDonald’s”, nem pelo “Subway”.
Praticamente toda esquina tem uma baiana de acarajé vendendo os seus
quitutes: “Acarajé”, “Vatapá”, “Caruru”, “Abará”, “Mugunzá”, “Canjica”, “Pamonha”, “punheta”.
4) Festas populares.
Toda a fé do baiano se manifesta no ciclo de festas populares, desde as
comemorações dos orixás do candomblé, quando todos os terreiros da
cidade batem seus tambores para seus filhos-de-santo dançarem, até as
festas da religião católica, que ganham um cunho profano com muito
samba-de-roda e barracas padronizadas que servem bebidas e comidas
variadas. Esse clima de festa impregna toda a cidade, desde a manhã até a
noite. Também é comum se ver nas ruas e nas praias o som dos atabaques, berimbáus, a dança da capoeira, do maculelê e o “Samba-de-Roda”.
As “Festas de Largo” em Salvador reúnem milhares de pessoas que
vão às ruas celebrar os orixás e os santos padroeiros. Além de popular,
essas festas se caracterizam pelo sincretismo religioso e pela mistura
de elementos sagrados e profanos. As mais famosas são a “Festa do Bonfim” dedicada ao santo da igreja católica e a “Festa de Yemanjá” dedicada à deusa do Candomblé.
O São João é a maior festa no interior do estado. Milhões de
pessoas se deslocam de cidade para cidade para festejar este santo
católico. É caracterizado por suas comidas e música típicas, sendo o
ritmo principal o “forró”, hoje, misturado ao “aché”. Ainda é possível
ver as quadrilhas se apresentando com suas roupas e danças
características. Outras festas, danças e ritmos no interior do estado: “Afoxé”, “Congada”, “Reisado”, “Burrinha”, “Festa de Reis”, “Chula”, “Lundu”, "Festa da Divino".
Estas festas juntam pobres e ricos, pretos e brancos, lindos e feios,
altos e baixos, alegres e tristes; católicos, protestantes,
umbandistas, candomblezeiros, espíritas, ateus; torcedores do Bahia e
do Vitoria, turistas e baianos, em uma mistura bem característica das
manifestações populares.
5) Música
Ritmos e as letras de músicas relatam feitos e trejeitos do cotidiano da Bahia.
Vinicius: “um velho calção de banho, um dia prá vadiar, um
mar que não tem tamanho,... depois na Praça Caymmi beber uma água de
coco,.. é bom, passar uma tarde em Itapuã, ouvindo o mar de Itapuã,
falar de amor em Itapuã,...”.
Caymmi: “Dia dois de fevereiro, dia de festa
no mar, eu quero ser o primeiro, a saudar
Iemanjá,...”
Gilberto Gil: “Ai, Xangô, Xangô menino, da fogueira de São João, quero ser sempre o menino, Xangô, da fogueira de São João...”;
O mineiro Ary Barroso e o paulista Denis Brean encantados com o segredo da Bahia compõem:
“Dá licença, dá licença, meu sinhô
Dá licença, dá licença, pra yôyô.
Eu sou amante da gostosa Bahia, porém
Pra saber seu segredo serei baiano também.
Dá licença, de gostar um pouquinho só
A Bahia eu não vou roubar, tem dó!
Ah! Já disse um poeta que terra mais linda não há
Isso é velho e do tempo que a gente escrevia Bahia com H!
Deixa ver
Com meus olhos de amante saudoso A Bahia do meu coração
Deixa ver
Baixa do Sapateiro Charriou, Barroquinha, Calçada, Tabuão!
Sou um amigo que volta feliz pra teus braços abertos, Bahia!
Sou poeta e não quero ficar assim longe da tua magia!
Deixa ver
Teus sobrados, igrejas, teus santos, ladeiras e montes tal qual um postal.
Dá licença de rezar pro Senhor do Bonfim
Salve! A Santa Bahia imortal, Bahia dos sonhos mil!
Eu fico contente da vida em saber que Bahia é Brasil!”
A música “axé”, mesmo criticada por alguns, reporta a lembrança da Bahia e seus costumes.
“Ah! imagina só que loucura essa mistura
Alegria, alegria é o estado que chamamos Bahia
De Todos os Santos, encantos e Axé, sagrado e profano,
o Baiano é carnaval
No corredor da história, Vitória, Lapinha, Caminhos de
Areia
Pelas vias, pelas veias, escorre o sangue e o vinho,
pelo mangue,Pelourinho
A pé ou de caminhão não pode faltar a fé, o carnaval
vai passar
Na Sé ou no Campo Grande somos os Filhos de Gandhi, de
Dodô e Osmar
Por isso chame, chame, chame, chame gente
Que a gente se completa enchendo de alegria a praça e
o poeta
É um verdadeiro enxame, chame chame gente
Que a gente se completa enchendo de alegria a praça e
o poeta.”
6) Arquitetura.
A cidade de Salvador é cercada por várias casas, fortes, sobrados e
igrejas em estilo colonial. Passar pelo Pelourinho é uma viagem no tempo
e reflete o que é viver nesta cercania, o que faz o transeunte
imaginar o estilo de vida dos seus antepassados.]
7)Aspectos Geográficos
Ruas estreitas, ladeiras, vielas e becos sedutores. De um lado, a baía
de Todos os Santos (católicos e os do Candomblé), do outro lado, o mar
do oceano atlântico, criando uma moldura de águas cristalinas que
embelezam a cidade. São condições que induzem os seus visitantes e
habitantes a uma viagem poética e malemolente. Daí o jeito
despreocupado, boêmio e malandro do baiano.
8) O Candomblé
O Candomblé, mesmo tendo sido outrora perseguido pela hierarquia da
igreja católica e mais recentemente pelos evangélicos se mantém forte e
respeitado. Na Bahia, tradicionalmente às sextas-feiras se usa o branco
que é a cor do orixá do dia, Oxalá. Os “Terreiros” estão presentes em
cada canto e muitos deles são tombados pelo patrimônio histórico. A
própria comida típica como o caruru e o acarajé estão associados a esta
religião. Muitas igrejas católicas têm em seu culto o atabaque, o
berimbáu e outros instrumentos associados ao candomblé. Já tivemos,
inclusive, um padre rezando missa com a vestimenta da deusa Oxum. Mães
de Santo já realizam o chamado casamento religioso com efeito civil,
celebração devidamente reconhecida.
9) As Manifestações Cívicas
Outro ponto interessante que mantém a baianidade viva e coesa são as
manifestações cívicas que impressionam por suas características
marcantes de pura cidadania, talvez porque elas se reportem a movimentos
libertários, como as várias lutas pela independência e que eram feitas
pelos chamados “filhos da terra”: escravos, índios, pardos e mestiços e
brancos pobres, enquanto sua elite formada pelos ricos comerciantes
portugueses fugia para os engenhos do Recôncavo.
Tanto é verdade que os nomes de Joana Angélica, da soldado Maria
Quitéria, da capoeirista Maria Felipa, e o “caboclo” que representa
todas as misturas daqueles que lutaram pela independência da Bahia e do
Brasil do julgo português, são ate hoje reverenciados.
Assim é, que a data de “Dois de Julho” é festejada com muito mais
afinco do que o “Sete de Setembro”. “Dois de julho” é a grande festa,
onde uma multidão acompanha o desfile do “caboclo” e da “cabocla”, que
ao final tem suas imagens colocadas em praça pública para que a
população possa cultuá-los por um período de alguns dias. Os “caboclos”
são grandes ídolos em Salvador.
10) A Bahia adora receber seus visitantes.
Não são poucas as músicas que assim expressam:
“Ahh...que bom você chegou
Bem-vindo a Salvador
Coração do Brasil, do Brasil
E vem, você vai conhecer
A cidade de luz e prazer
Correndo atrás de um trio.
Vai compreender que o baiano
É um povo a mais de mil
Que ele tem Deus no seu coração
E o diabo no quadril
We are carnaval, we are, we are folia
We are, we are the world of carnaval
We are Bahia”
Conclusão.
Essa miscigenação desperta um olhar diferenciado do baiano e dos
visitantes acerca do comportamento do seu povo. A reunião de sagrados e
profanos dá um caráter único ao modo de vida dos baianos.
As festividades, o linguajar, a comida, a arquitetura, a geografia da
cidade, os ritmos, as danças, essa mistura de tudo está presente no
cotidiano da cidade e influi positivamente para a permanência daquilo
que se chama “baianidade”. Eles são uma oportunidade de o tradicional
ser repetido de maneira lúdica e, assim, possibilitar que suas vivências
e modos de vida perpetuem-se. Cabe à nossa sociedade não deixar de
atribuir valores de identidade e resgatar a importância do significado
da cultura popular para as novas gerações.
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