sábado, 14 de maio de 2011

A miséria já teve uma "função social"

Arnaldo Jabor
                               
Falar da miséria nos alivia porque para nós, os bacanas, a miséria é apenas um problema existencial. Muitos artistas e intelectuais que falam na miséria, como tema de livro ou filme, ou políticos que usam a miséria como curral eleitoral ganham dinheiro ou votos com a miséria dos outros.  

Na verdade, para entendermos o horror que nos envolve, temos de analisar os que pensam que "não" são miseráveis: a burguesia, as classes médias, a estrutura do País, a formação torta do Estado. Quem quiser fazer uma tese ou ficção sobre o atraso nacional tem de estudar os "formadores" da miséria os séculos de oligarquias e patrimonialismo. Nós fazemos parte da miséria. Em nós, e não nos morros e periferias, está o segredo, ou melhor, a explicação para a ignorância e o desabrigo de nosso povo.

A miséria de nossa formação atingiu os escravos libertos, os subempregados, os analfabetos. A miséria atingiu a todos nós. Não na blindagem de nossos carros apavorados, mas na blindagem de nossos corações contra o lado de fora da vida. Não basta sofrermos com o "absurdo" da miséria. Ela é uma construção minuciosa feita por um sistema complexo. A miséria não é absurda; ela é uma produção. 

Há alguns anos, a miséria era vista com vagos sentimentos caridosos. Ela era até idílica, nas "favelas dos meus amores". Tolerávamos tristemente a miséria, desde que ela ficasse longe, quieta, sem interferir na santa paz de nosso escândalo. A miséria tinha quase uma... "função social".

Contra nossa vontade, hoje sabemos que a miséria se entranha em nosso egoísmo, na busca maníaca de felicidade e prazer, esquecendo a existência do "outro", este ser longínquo e desagradável. Pouquíssimos de nós pensam como o imperador-filosofo Marco Aurélio: "O que é bom para a abelha tem de ser bom para a colméia."

Mas o tempo passou e a miséria cresceu na espuma suja no “champanhe” do progresso. Com o avanço da indústria de armas, das drogas, da internet, a miséria foi tocada pela evolução do capitalismo e começou a se modernizar. A violência é de certa sinistra forma, um "upgrading" na miséria, antes tão dócil. A violência nos pegou de surpresa, com velhas armas. Ninguém sabe o que fazer. Antes, os governantes oscilavam entre a repressão sangrenta, entre a queima de favelas ou a construção de guetos. Mas, hoje, a miséria é grande demais para ser erradicada. Somos miseráveis porque poderíamos ter um país muito melhor e não soubemos fazê-lo. A miséria habita nosso egoísmo, nossa cegueira proposital em não ver o mal e a dor dos desvalidos. 

É miserável nossa fome de consumo supérfluo. É miserável nossa angústia por pequenos problemas.   É miserável o que pagamos a empregados frágeis. É miserável nossa idéia de posse no amor e no sexo. Somos miseráveis na alma, em nossa amarga alegria, em nossa ignorância política, em terrores noturnos, em síndromes de pânico, em noites vazias nos bares ameaçados, nos perigos das esquinas, em amores despedaçados. A miséria está no esforço para esquecê-la, no narcisismo deslavado que aumenta entre as celebridades, na ridícula euforia das sacanagens e nas liberdades irrelevantes. Só que antes, só falava de miséria quem não era miserável; só falava em "fome" quem comia bem. Agora, os miseráveis nos olham e nos criticam.

Hoje, a miséria desfila nas ruas ameaçadoramente, de sandália, bermudas e corpo nu. Não se esconde pelos cantos mendigos. Nossas elites desatentas estão mais ligadas e percebem aos poucos que nós é que temos de nos reformar. Não tem mais jeito; a miséria tem de ser integrada a nossas vidas. Temos de conviver com ela, pois também somos miseráveis. 

E mais: os miseráveis não esperam nada de nós ou dos governos. Estão indo à luta. Não resolveremos nada. Eles é que vão fazer isso. A miséria está nos modernizando.

2 comentários:

  1. Poucos tem muito e muitos tem pouco... e existe mais ainda "abelhas" procurando ficar com todo o mel, e pra piorar a custas de outras abelhas que trabalham duro e nem sentem o cheiro do mel.

    ResponderExcluir
  2. Se não mudar por bem, muda no pau.
    É só ver o que está acontecendo nos paises do oriente.

    ResponderExcluir