sábado, 21 de maio de 2011

Cidades Brasileiras


Por Kazuo Nakano.

Em 2011, a aprovação do Estatuto da Cidade (Lei Federal 10.257/2001) completa dez anos. Contudo, a sua implementação nos municípios brasileiros ainda deixa muito a desejar.

E como a implementação do Estatuto da Cidade deve ocorrer?
 
Por meio dos planos diretores instituídos por lei municipal. Por diversas razões técnicas e políticas, muitos desses planos diretores permanecem no papel e não tornam realidade o cumprimento da função social das cidades e propriedades urbanas. Ainda não temos processos permanentes e consistentes de planejamento e regulação territorial que promovam formas justas, democráticas e sustentáveis de uso e ocupação do solo. 

Boa parte dos espaços das cidades, nos quais vive mais de 80% da população nacional, ainda se coloca como meio ambiente construído com níveis variáveis de contaminação das águas e do ar, com moradias populares insalubres, com várias áreas de risco e altos déficits de espaços públicos e equipamentos comunitários com boa qualidade. Se todos esses espaços contassem com os benefícios requeridos pela vida urbana, constituiriam dispositivos potenciais capazes de promover uma mais justa distribuição de riquezas coletivas para todos e não beneficiariam somente os mais ricos.

Um país rico deve, sim, ser um país sem miséria, mas deve também ser um país com cidades seguras, saudáveis, equitativas, democráticas e que propiciem o desenvolvimento das melhores capacidades humanas.

UM PROCESSO DE OMISSÕES HISTÓRICAS

O processo de produção desses espaços urbanos irregulares é fruto de omissões históricas do poder público tanto em relação às ações regulatórias e fiscalizatórias quanto em relação à provisão de solos urbanizados adequadamente. Em suma, os grupos sociais e agentes econômicos que podem pagar acessam às melhores terras urbanas. Aqueles que não têm recursos pagam o pouco que têm para viver nas periferias distantes, em terras urbanizadas inadequadamente, na vulnerabilidade, sob risco. Sim, em nossas cidades paga-se para morar em áreas de risco por falta de alternativas.

Além dessas desigualdades e segregações socioterritoriais, um dos piores efeitos da preponderância da lógica do capitalismo periférico na urbanização brasileira, com baixo nível de regulação pública sobre a atuação dos agentes mercadológicos, é a expansão periférica das grandes e médias cidades do país. Expansão periférica que pode levar à desintegração entre os bairros das cidades, permeados por glebas e terrenos ociosos.

PREDOMÍNIO DO TRANSPORTE INDIVIDUAL

Os efeitos negativos das grandes distâncias entre locais de moradia, trabalho, consumo, estudo, entre outras atividades urbanas, se agravam com o predomínio do automóvel individual na matriz de mobilidade urbana. Tais efeitos são mais nocivos pela falta de integração das diferentes modalidades de transporte público de massa com ciclovias e bons caminhos para pedestres.

O predomínio dos automóveis nos deslocamentos intra e interurbanos sobrecarrega o sistema viário principal com congestionamentos quilométricos causando acidentes graves, gerando desgaste físico e psicológico, e produzindo deseconomia. Ademais, eleva o consumo de combustíveis fósseis, não renováveis, responsáveis pela emissão de boa parte dos gases tóxicos que contaminam o ar das cidades, provocando sérios problemas respiratórios. Tais gases podem estar contribuindo para as mudanças climáticas e o aquecimento global cujos efeitos apontam para novas formas de vulnerabilidade socioterritorial.

A expansão urbana horizontal sobre áreas periurbanas pode avançar, de modo precário, sobre solos agricultáveis, nascentes de rios e córregos, áreas de interesse ambiental e de proteção aos mananciais. Em algumas cidades essa expansão contribui para o desmonte de cinturões verdes formados por pequenos produtores de frutas, verduras, legumes e por criadores de aves e pequenos animais. Isso afeta o abastecimento alimentar dos moradores dessas cidades, obrigados a “importar” produtos de lugares distantes, muitas vezes com desperdício e sem a riqueza nutricional das variedades naturais. 

É importante começar a pensar na criação de circuitos curtos entre produção, distribuição e consumo de alimentos em áreas urbanas e rurais. Tais circuitos podem envolver agricultores familiares, produtores de alimentos sem agrotóxicos, cujas atividades já articulam novas relações entre as cidades e o campo. Esses alimentos podem muito bem ser comprados pelos poderes públicos locais para abastecer as merendas escolares e restaurantes populares, entre outros equipamentos de distribuição.

Diante desse quadro das cidades brasileiras, como analisar o atual momento da política urbana do país?
É preciso dizer que, apesar dos avanços jurídicos e institucionais ocorridos nas duas últimas décadas, estamos em um momento crítico. Grandes investimentos públicos estão sendo feitos nos espaços urbanos do país, tanto na instalação de infraestrutura quanto na produção habitacional. As grandes e médias cidades vivem um boom imobiliário produtor de excrescências como loteamentos fechados e condomínios verticais constituídos por torres de apartamentos.

Nessas cidades vigoram práticas de formulação de planos diretores sem previsão de obras estruturais. A realização de obras ocorre desassociada de processos de regulação e planejamento urbano. A implementação do Estatuto da Cidade está praticamente paralisada; a construção do Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social caminha a passos de tartaruga; o marco legal do saneamento ambiental ainda está para ser colocado em prática; e a Política Nacional de Mobilidade não saiu do papel.

Nesse contexto, a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano, iniciada pelo Ministério das Cidades em 2003 e interrompida em 2005, simplesmente inexiste. É urgente reorientar esse Ministério para a concretização da reforma urbana no país. É urgente arrancar o controle dos processos de produção dos espaços urbanos das coalizões políticas conservadoras, clientelistas e patrimonialistas, que privilegiam somente o valor de troca do solo das cidades em detrimento dos espaços para o exercício dos direitos e vida social. Diante de tudo isso, é mais que urgente articular redes e coalizões em defesa do Direito à Cidade.

Kazuo Nakano é arquiteto urbanista, técnico do Instituto Pólis, doutorando do Núcleo de Pesquisas Populacionais (NEPO) da Universidade de Campinas (Unicamp).

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