Do site "Outras Palavras"
Clotilde Leguil em entrevista a Amador Fernández-Savater, no CTXT | Tradução: Rôney Rodrigues
“Todos estamos em perigo”, disse Pasolini em sua última entrevista, poucas horas antes de ser assassinado. Esta frase me vem à mente ao ler o último livro da psicanalista Clotilde Leguil, A Era do Tóxico – Ensaio sobre o novo mal-estar na civilização [sem tradução para no Brasil]. Todos estamos em perigo não apenas pela ameaça externa de poderes destrutivos para a vida, mas também pela possibilidade de que o veneno da destrutividade atue e se espalhe a partir do nosso próprio interior. Nós somos parte do perigo.
É isso que Leguil se propõe a pensar, escutando o que diz uma palavra-sintoma que circula hoje por toda parte: o “tóxico”. Com o auxílio da literatura, do cinema e da psicanálise, Leguil interpreta o tóxico como um novo imperativo de gozo, a compulsão por uma satisfação bruta e imediata, uma voracidade que não pode ser saciada de forma alguma. O mal do ilimitado. O regime do hiper (hiperatividade, hiperestimulação, hipersexualização).
O filósofo Félix Guattari propôs, há vinte e cinco anos, pensar interligados três “ecossistemas”: o íntimo, o relacional e o planetário. O ensaio de Leguil reflete sobre o “veneno” que hoje ameaça desertificar os três, esgotando o corpo individual, social e terrestre. E propõe uma ética do desejo, da responsabilidade perante o nosso desejo, como resistência e limite.
Apesar de Heidegger, que afirmava que a fala corrente é uma fala “inautêntica”, repleta de clichês, a senhora decide escutar o mal-estar na linguagem ordinária e fixa-se numa palavra de uso corrente hoje: o tóxico. Um exercício de escuta analítico, poderíamos dizer, de um sintoma de época. Quais possibilidades e riscos tem este exercício de escuta? A senhora teme ter contribuído para legitimar uma palavra que provém do âmbito da autoajuda, do coaching, da educação sentimental das redes sociais?
Interessei-me por este significante do “tóxico” a partir do seu novo uso, que me fez levantar questões. Apostei em levar a sério esta extensão do termo, própria da nossa época. Hoje em dia, o tóxico já não designa apenas as substâncias em si, mas uma modalidade de relação com o outro, que se assemelharia a um veneno. Partindo desta constatação, tentei interpretar esta nova metáfora do nosso mal-estar, uma nova metáfora que capturei primeiro através da linguagem, do discurso concreto, da forma como os sujeitos falam do seu mal-estar. Não se trata apenas de usar esta palavra para legitimá-la, mas de interpretá-la e tentar ver o que ela abrange, de que é sintoma.
O tóxico, diz a senhora, fala-nos de um novo mal-estar, do mal-estar específico da nossa época. Já não estamos na época em que o mal-estar tinha a ver com a proibição e a lei, com um esmagamento do desejo através da repressão, mas houve uma mudança. Do que se trata?
Efetivamente, interpretei esta influência do tóxico nas relações humanas a partir da psicanálise. Na minha opinião, ela testemunha uma nova figura do Super-eu, aquela que Lacan definiu em seu escrito Kant com Sade em 1963. Estaríamos nos encontrando perante uma inversão do Super-eu da proibição, do Super-eu freudiano. E esta inversão revelaria também a verdadeira função do Super-eu, que é sempre da ordem da forçatura, do forçamento. Este novo Super-eu é aquele que força a gozar cada vez mais. Produz o que Lacan chamou a busca de um plus de gozo, que se impõe a cada um. O termo “tóxico” poderia dar testemunho dos efeitos deste “excesso” de gozo, não no sentido de “excesso” de prazer, mas no sentido de “excesso” de forçamento do prazer, de exigências pulsionais que aniquilam o desejo.
O tóxico, no uso corrente do termo, faz-nos pensar sempre que é um problema do outro. O outro é a pessoa tóxica da qual convém afastar-se, o tóxico vem de fora, etc. No entanto, a senhora complexifica o termo para nos dar a entender que o tóxico está em nós mesmos. O “fora”, o que vem de fora, articula-se ou ativa algo “dentro”, no nosso próprio interior. Como é essa dialética dentro-fora?
Sim, a experiência tóxica, tal como a interpreto, é da ordem de uma nova dialética entre o exterior e o interior. Algo do outro vem tocar o nosso corpo, como uma flecha envenenada que nos fere, mas, antes disso, também nos embriaga. É o lado anfibológico do tóxico: por um lado, a experiência tóxica faz experimentar uma forma de prazer estranho e novo; por outro lado, conduz a derivar para um gozo mau e destrutivo.
A marca do excesso no nosso interior, diz a senhora, é a “pulsão”. O mandato de época impele à satisfação pulsional total. Mas, o que é a pulsão? É biológica, é cultural? É ontológica, é histórica? Um cruzamento de ambas?
A pulsão, tal como a define Freud, é uma força libidinal que se situa entre o somático e o psíquico. Direi com Lacan que a pulsão é também o que responde no corpo a uma angústia perante o desejo do outro. É a forma como o vínculo com o outro pode suscitar uma espécie de exigência pulsional, à qual o sujeito não consegue dizer “não”. A dimensão da hýbris, do excesso, poderia ser a que evoca o termo “tóxico”. Há algo que é “demasiado” e que provoca angústia.
No gozo, no tóxico, o outro, o diferente, desaparecem. Desaparece o vínculo, desaparece o tempo como duração, desaparece o mundo compartilhado. Evaporam-se como simples instrumentos ou ocasiões de gozo. Isso tem efeitos terríveis sobre o que Félix Guattari chamava de “as três ecologias”: o ecossistema pessoal, o ecossistema social e o ecossistema terrestre. Em todos os três casos, um tipo de forçamento ameaça chegar até o colapso e o esgotamento (da energia, da atenção, dos vínculos).
Sim, no meu ensaio interessei-me por estes três campos: o campo íntimo, o campo ecológico e o campo político. Porque o interesse deste termo “tóxico” é que se situa na encruzilhada dos três. Em cada um deles, o que se denomina “tóxico” é o que põe em perigo a vida, o que obriga os seres vivos a suportar uma estimulação que vai além do suportável.
O tóxico articula-se com a linguagem. Há uma palavra que envenena. Como entender isto?
Situo a experiência tóxica no nível de uma modalidade do discurso que exige uma forma de forçamento pulsional que coloca o sujeito em perigo: uma frase tóxica seria uma frase que envenena o sujeito, injetando em seu corpo uma forma de crença, mas também transgredindo uma fronteira. Penso nos discursos tóxicos como aqueles que te fazem abandonar toda ética
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Texto completo:
https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/era-das-relacoes-toxicas/
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