quinta-feira, 8 de agosto de 2019

Redes sociais espalham 'epidemia de mal-estar

Redes sociais espalham 'epidemia de mal-estar' pela humanidade.
bbc.com

Exposição da intimidade, amores descartáveis, depressão, silenciamento, loucura, suicídio. As relações humanas e seus conflitos dão o tom de como a saúde mental é percebida hoje em dia: muito mais por sua ausência ou pelo adoecimento do que pelo cuidado com ela.

Por mais que a preocupação com o bem-estar psíquico esteja em voga, o sofrimento subjetivo, que é inerente à vida de cada pessoa, não tem o espaço necessário. As conexões de nossa época não estimulam a intimidade, e as consequências disso apontam para uma sociedade cada vez mais insegura e voltada a soluções superficiais.

BBC News Brasil - Qual a visão de nossa sociedade sobre saúde mental?

Marcelo Veras - De um certo modo, acredito que as pessoas estejam cada vez mais preocupadas com o bem-estar e a saúde mental, mas isso ocorre precisamente por uma percepção de sua perda. Houve um profundo remanejamento de conceitos clássicos como narcisismo e intimidade.

A hiperexposição das redes (sociais) nos distancia muito da realidade do que somos: mostramos apenas o melhor de nós mesmos, em uma exigência de felicidade permanente que deixa muito pouco espaço para o sofrimento subjetivo. No século 21, estamos permanentemente sob os olhares de câmeras que implodiram o conceito de intimidade. Isso gera uma sociedade mais insegura narcisicamente e também com a falsa ilusão de que o olhar do outro é necessário para garantir sua existência.

Surgem então uma série de terapias e práticas para adequar o sujeito moderno ao seu ideal de aparência, e cala-se profundamente as raízes, sempre complexas, do sofrimento individual que não fica bem na foto.

BBC News Brasil - Os modos de consumo e de relacionamento contemporâneos têm alguma associação com o adoecimento psíquico da população, uma vez que as taxas de depressão e ansiedade são crescentes?

Veras - Sem dúvida. Consumimos objetos assim como consumimos relações.

Nunca estamos satisfeitos e precisamos de um iPhone mais moderno, de um novo carro. Um fator que observo nas relações feitas através das redes sociais, e que era novo para mim, é a expressão "vácuo".

As pessoas começam a se relacionar pelos aplicativos, começam a se entregar afetiva e também sexualmente, já que muitas vezes trocam nudes, e, de repente, um dos dois desaparece na rede e deixa o outro no vácuo. Não há término, desculpa, nada: um dos dois apenas deleta o outro e desaparece.

Isso gera uma insegurança narcísica muito grande. Em mídias como Instagram e Facebook, igualmente nos tornamos reféns de "likes" de pessoas que nos são totalmente desconhecidas, diferente de buscar apoio e mesmo de se mostrar amável apenas para um grupo de amigos.

Tudo isso leva a um modo de ser que vai além do que (Zygmunt) Bauman definiu como modernidade líquida. Nela, tínhamos a ideia de que a libido fluía por diversos objetos; vejo muito mais uma modernidade descartável, onde é possível "deletar" o outro sem restos.

BBC News Brasil - No seu livro Selfie, Logo Existo, você identifica este "deletar" e também o "vácuo" como alguns dos novos significantes que têm aparecido. Poderia apontar o que a clínica tem trazido, por meio dos pacientes, a respeito das mudanças que estamos vivendo na contemporaneidade?

Veras - O sujeito não mais encontra sua representação nos grandes discursos, como o religioso, por exemplo.

Se, por um lado, esse fenômeno abriu espaços para uma paleta muito maior de modos de se representar na sociedade - a discussão sobre os gêneros é um ótimo exemplo - por outro lado, muitos não mais encontram representação de si em mundo possível algum, ficando à deriva, sem modelos, sem guias, perdidos e capturados apenas pelos instrumentos que o transformam em um grande gozador ou masturbador.
(...)

BBC News Brasil - Temos observado manipulações e distorções de palavras e narrativas por figuras de poder e lideranças. Qual é a relação entre a palavra e o sofrimento?

Veras - Somos seres que nos distinguimos dos outros animais na natureza precisamente por sermos seres falantes.

A palavra é nossa casa, pois ela determina nosso ser, nosso corpo e o modo como vivemos. Mas a palavra exige interpretação, exige saber falar e escutar, é um movimento dialético.

Quando a conversação fracassa, quando, por exemplo, o debate democrático, que implica em ouvir e respeitar o pensamento contrário, não tem espaço, a palavra que resta é a do poder autoritário, que não admite a alteridade.

O maior sofrimento para uma comunidade ou população específica é precisamente quando ela é silenciada, quando caçamos a palavra, quando lhe censuramos a expressão.

BBC News Brasil - Qual é o lugar do ressentimento na sociedade brasileira atual?

Veras - Saímos de um processo eleitoral no ano passado que escancarou uma divisão profunda na população brasileira.

O espaço público ficou polarizado, impedindo a escuta do outro. Porém não é possível avançar alguma solução política se não houver algum perdão possível. Nas décadas passadas, os filósofos (Jacques) Derrida e Vladimir Jankelevitch colocaram no centro de seus debates o perdão e o ressentimento. (...) Mais uma vez o que observamos é que caminhamos por um momento político em que o silêncio autoritário vai se sobrepor ao debate sério sobre os acontecimentos mais cruéis de nossa história recente.

BBC News Brasil - Especialistas em tecnologia têm apontado para a coleta de dados privados dos usuários por meio de aplicativos e outros programas para celulares e computadores. Há também situações de exposição criminosa de nudes e de conteúdos que até então eram privados. Como a sociedade tem lidado com a própria intimidade, com a privacidade e com a exibição de si?

Temos ainda a grande questão do declínio da intimidade. Ele começou quando passamos a nos interessar mais pelos nossos artistas na banheira ou na ilha de Caras do que no cinema e televisão. Em seguida, a intimidade passou a ser o espetáculo em si, com a explosão de reality shows do tipo BBB e demais. Por fim, com a chegada dos smartphones, cada um passou a ser protagonista do seu próprio show da intimidade. Ocorreu uma ruptura entre o sujeito que olha e o olhar.

Hoje, se você precisar de um olhar para alimentar o seu narcisismo, você o encontrará no final de seus braços. Essa falsa exposição da intimidade, em que nunca nos mostramos realmente, nos torna adictos da imagem de si. Na contracorrente, uma psicanálise é uma experiência de total intimidade, duas pessoas presencialmente, sob confidencialidade. Isso é o avesso do mundo atual.

Entrevista sobre nosso mal-estar atual,
com Marcelo Veras, psicanalista e psiquiatra, autor do livro Selfie, Logo Existo (Corrupio) e membro da Associação Mundial de Psicanálise e da Escola Brasileira de Psicanálise, para a BBC News Brasil.

Matéria completa:

https://www.bbc.com/portuguese/geral-49160276

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