sábado, 22 de junho de 2019

A tentação dos absolutos

Por Rubem Alves.

De tudo o que Dostoiévski escreveu em Os irmãos Karamazov; o que mais me impressionou foi o relato sobre o “Grande Inquisidor”. Jesus havia voltado à terra e andava incógnito entre as pessoas. Todos o conheciam e sentiam o seu poder, mas ninguém se atrevia a dizer o seu nome. Não era necessário.

O Grande Inquisidor o observava de longe, no meio da multidão, e ordena que ele seja preso e trazido à sua presença. Então, diante do prisioneiro silencioso ele profere a sua acusação.

Por que deveria qualquer pessoa, inflexivelmente convencida da verdade exclusiva dos seu conceitos relativos a qualquer e a todas as questões, estar pronta para tolerar idéias opostas? Que bem ela pode esperar de uma situação em que cada um é livre para expressar opiniões que, segundo o seu julgamento, são patentemente falsas e, portanto, prejudiciais à sociedade?

Por que direito deveria ela abster-se de usar quaisquer meios para atingir o alvo que julga correto? Em outras palavras: consistência total equivale, na prática, ao fanatismo, enquanto a inconsistência é a fonte da tolerância.

[…] Temos de notar que a humanidade tem sobrevivido somente graças à inconsistência […] a raça das pessoas inconsistentes continua a ser uma das maiores fontes de esperança de que a espécie humana conseguirá, de alguma forma, sobreviver.

Leszek Kolakowski, “Em louvor à inconsistência”.

A tentação dos absolutos é uma característica universal do espírito humano. Todos queremos possuir a verdade. E para possuir a verdade é preciso que se a engaiole. E para engaiolar a verdade é necessário engaiolar a liberdade e o pensamento….

Todos aqueles que se julgam possuidores da verdade são inquisidores. Leszek Kolakowski, filósofo polonês que viveu sob o comunismo, experimentou isso na sua própria vida. São dele as palavras que transcrevo a seguir:

Não há nada mais sedutor aos olhos dos homens do que a liberdade de consciência, mas também não há nada mais terrível. E em lugar de pacificar a consciência humana de uma vez por todas, mediante sólidos princípios, tu lhes ofereceste o que há de mais estranho, de mais enigmático, de mais indeterminado, tudo o que ultrapassava as forças humanas, a liberdade.

Agiste, pois, como se não amasses os homens. […] Em vez de te apoderares da liberdade humana, tu a multiplicaste e, assim fazendo, envenenaste com tormentos a vida do homem, para toda a eternidade…

O Grande Inquisidor estava certo. Ele conhecia o coração dos homens. Os homens dizem amar a liberdade, mas de posse dela são tomados por um grande medo e fogem para abrigos seguros. A liberdade é amedrontadora.

Os homens são pássaros que amam o vôo, mas têm medo de voar. Por isso abandonam o vôo e se protegem em gaiolas.

Somos assim. Sonhamos o vôo, mas tememos as alturas. Para voar é preciso amar o vazio. Porque o vôo só acontece se houver o vazio. O vazio é o espaço da liberdade, a ausência de certezas. Os homens querem voar, mas temem o vazio. Não podem viver sem certezas. Por isso trocam o vôo por gaiolas. As gaiolas são o lugar onde as certezas moram.

É um engano pensar que os homens seriam livres se pudessem, que eles não são livres porque um estranho os engaiolou, que se as portas das gaiolas estivessem abertas eles voariam. A verdade é o oposto. Os homens preferem as gaiolas ao vôo. São eles mesmos que constroem as gaiolas onde passarão as suas vidas.

“Prisioneiro”, dize-me, quem foi que fez essa inquebrável corrente que te prende?”, perguntava Tegore. “Fui eu”, disse o prisioneiro, “fui eu que forjei com cuidado esta corrente”.

Vivi, durante muitos anos, numa gaiola de palavras. Eu gostava dela. Não me sentia engaiolado. Sentia-me protegido. Minha gaiola era minha armadura. Quando as gaiolas são feitas de ferro é fácil perceber a prisão. Os prisioneiros sonham o tempo todo com fugas.

Mas há gaiolas que não são feitas com ferro. São feitas com palavras. As gaiolas de ferro nos prendem por fora. As gaiolas de palavras nos prendem por dentro. 

[…]

A obsessão com a verdade que caracteriza isso a que dei o nome de Protestantismo da Reta Doutrina não é coisa típica do protestantismo. Ela se manifesta nas mais variadas formas de associação humana.

A invocação da “verdade” é o instrumento de que se valem os inquisidores, nas suas múltiplas versões, para matar – ou silenciar – aqueles que têm idéias diferentes das suas. 

Rubem Alves
Introdução do livro “Religião e Repressão”

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