terça-feira, 27 de novembro de 2018

Ameaça comunista, como farsa

Depois dizem, repetindo mantras, que a história não se repete. Leia até o final a excelente matéria do The Intercept para ver que nem se preocuparam em variar os detalhes.

O GOLPE DE 64 NÃO SALVOU O PAÍS DA AMEAÇA COMUNISTA PORQUE NUNCA HOUVE AMEAÇA NENHUMA
Alexandre Andrade, no The Intercept

HÁ UMA FARSA historiográfica que ronda a praça de maneira persistente: a tese de que que a “revolução de 64” teria salvo o Brasil da ameaça comunista.

Conversa para boi dormir.

A renúncia de Jânio Quadros em 1961, e a ascensão do seu vice João Goulart, odiado pelo partido mais conservador da época, a UDN, de Carlos Lacerda, e por parte dos militares, foi o ápice de uma cisão ideológica que perdurava havia quase 20 anos. De agosto de 1961 a março de 1964, Jango foi alvo de uma guerra discursiva que o pintou como corrupto e conspirador de uma ofensiva comunista. Era tudo fantasia.

O rolo começou em 1946 com uma briga política que se estendeu por duas décadas entre os três partidos dominantes da chamada Terceira República (1946-1964), incendiada pela UDN de Lacerda. Os udenistas, derrotados nas urnas por Vargas (1950) e depois por Juscelino Kubistchek (1955), faziam uma guerrilha com notícias e editoriais falando sobre o risco iminente de o país virar comunista sem base nenhuma na realidade.
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Ao longo da Terceira República, eram três os partidos dominantes. O PTB, partido de Vargas e Jango, que ocupava a porção à esquerda do espectro político; o PSD, partido centrista, que abrigava Dutra e JK, e a UDN, partido de viés mais liberal, cujo ponto central era o ódio a Vargas.

A UDN era o partido favorito da grande imprensa, de setores da classe média e da intelectualidade nacional. Só não era o partido favorito dos eleitores. O fracasso nas urnas foi transformando a UDN em uma organização golpista. Se hoje é o “bolivarianismo” que assusta o “cidadão de bem” brasileiro, nos anos 1950 o fantasma regional era o “peronismo”.

Às vésperas das eleições vencidas por Vargas, o jornal do udenista Carlos Lacerda, uma das grandes figuras do partido, publicava declarações de um general, afirmando: “o governo tem conhecimento de um vasto plano subversivo organizado pelos comunistas, cuja eclosão se daria ao mesmo tempo, em todo o território nacional. O governo brasileiro está de posse de dados concretos comprovando que o sr. Getúlio Vargas mantém relações com o general Perón, presidente da Argentina”. Dizia-se que Perón financiaria o movimento “para restaurar a Ditadura” no Brasil.

Apelava-se para o medo, plantava-se a semente da paranoia. Mas Vargas saiu-se vitorioso, com 48,5% dos votos.

Quando a derrota ficou evidente, a UDN optou por não reconhecer o resultado. O jornal de Lacerda trazia em letras garrafais: “Getúlio não foi eleito legalmente”. (...) Tentam na Justiça barrar a posse de Vargas. Ficou famosa a frase de Lacerda, repetida à exaustão naqueles tempos: “Vargas não deveria ser eleito. Se eleito, não deveria tomar posse. Se tomasse posse, não poderia governar”.

Ainda que tenha feito um governo algo conservador, segundo percepção de renomados historiadores do país, Vargas não pôde governar. Em 1954, em meio às denúncias de orquestrar um plano secreto junto com Perón e de corrupção no Banco do Brasil, a UDN pede seu impeachment, que é rejeitado no Congresso.

Após o episódio da rua Toneleros – quando morreu o oficial da Aeronáutica Rubens Vaz, e Lacerda é alvejado –, Vargas é instado pela cúpula militar a renunciar à presidência. Naquela noite, mata-se com um tiro no peito. Aos se aproximarem as eleições de 1955, temendo a derrota, a UDN volta a pregar o golpe. Primeiro são denúncias contra Juscelino Kubistchek, acusando-o de corrupto. Adiante, a defesa desavergonhada da não realização das eleições naquele ano.
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Nas eleições de 1960, a UDN decide apoiar Jânio Quadros, fenômeno político e então governador de São Paulo, mas que não fazia parte do partido.

Jânio, porém, renuncia à Presidência em agosto de 1961, jogando o país no caos. É nesse cenário que João Goulart (PTB), seu vice, torna-se presidente. Iria se tornar, na verdade. É declarado persona non grata para a segurança nacional por parte do Congresso, que se articula para impedir que o herdeiro de Vargas tome posse. Setores civis e militares quiseram impedir o cumprimento do texto constitucional. Havia o que se chamava de “veto militar” ao nome de Goulart.
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O jornal Correio da Manhã se manifestou em editorial intitulado “Ditadura”, no qual dizia: “o manifesto dos ministros militares, coagindo o Congresso… é o golpe abolindo o regime republicano no Brasil. É a ditadura militar.”

O meio-termo encontrado foi deixar Jango assumir, mas castrado dos poderes presidenciais, graças a um parlamentarismo de ocasião. Era o golpe envergonhado. Voltavam-se a utilizar as velhas armas contra Jango: uma suposta conspiração internacional de caráter peronista, as supostas tendências comunistas do latifundiário e as alegações de corrupção.

O golpe ocorreu quase sem resistência, pois resistência não havia.

Em 1964, o deputado udenista Bilac Pinto afirmava, sem qualquer prova concreta, que Goulart preparava uma revolução, que o presidente organizava uma guerrilha armada no país. Aproveitando-se do ambiente caótico de 1964, em que se somavam a crise econômica e alta polarização política, fez-se o golpe civil-militar de 31 de março.
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O golpe ocorreu quase sem resistência, pois resistência não havia. Deu-se um golpe, pois um golpe se queria dar desde 1951, pelo menos. A luta armada comunista, que jamais colocou em risco o governo brasileiro, só emergiu após a implementação da ditadura, não antes. Enfim.

Houve um tempo no Brasil no qual políticos civis não reconheciam o resultado das eleições, que não se conformavam com uma democracia na qual os eleitores elegem seus adversários.

Houve um tempo no Brasil no qual militares de alta patente se arvoravam o direito de falar de política. Tempo em que generais ameaçavam não reconhecer o resultado das urnas, caso o eleito não fosse do seu agrado.

Às vésperas das eleições de 2018, o cenário se repete.

https://theintercept.com/2018/09/21/farsa-historia-ditadura-militar-comunista/

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