terça-feira, 17 de julho de 2018

Para entender o porquê de Bolsonaro

Para entender o porquê de Bolsonaro,
De Eliana Brum para o jornal El País:

Uma pesquisa de junho do Datafolha mostrou, mais uma vez, que a maioria das pessoas que declaram voto em Jair Bolsonaro (PSL) são jovens: seu eleitorado se concentra principalmente na faixa dos 16 aos 34 anos. O capitão do exército também lidera as intenções de voto entre os mais ricos e os mais escolarizados do país.

Em pesquisa recém divulgada, a professora Esther Solano entrevistou pessoas na cidade de São Paulo para compreender o crescimento das novas direitas e especialmente da extrema-direita mais antidemocrática, representada por Jair Bolsonaro.

“No começo da roda de conversa com os alunos de São Miguel Paulista, assistimos a um vídeo com as frases mais polêmicas de Bolsonaro. No final do vídeo, muitos alunos estavam rindo e aplaudindo. Por quê? "Porque ele é legal, porque ele é um mito, porque ele é engraçado, porque ele fala o que pensa e não está nem aí." Com mais de cinco milhões de seguidores no Facebook, o fato é que Bolsonaro representa uma direita que se comunica com os jovens, uma direita que alguns jovens identificam como rebelde, como contraponto ao sistema, como uma proposta diferente e que tem "coragem de peitar os caras de Brasília e dizer o que tem de ser dito. Ele é foda."

O uso das redes sociais, a utilização de vídeos curtos e apelativos, o meme como ferramenta de comunicação, a figura heroica e juvenil do ‘mito ’Bolsonaro, falas irreverentes e até ridículas, falas fortes, destrutivas, contra todos, são aspectos que atraem os jovens. Se, nos anos 70, ser rebelde era ser de esquerda, agora, para muitos destes jovens, é votar nesta nova direita que se apresenta de uma forma cool, disfarçando seu discurso de ódio em formas de memes e de vídeos divertidos.

“Ele é honesto porque ele diz o que pensa” ou “Ele não tem medo de dizer a verdade”. Quando questiono o conteúdo do que Bolsonaro pensa, a “verdade” de Bolsonaro, em geral aparece um sorriso divertido, meio carinhoso, meio cúmplice: “Ele é meio exagerado, mas porque é um sincerão”.

Assim, Bolsonaro não seria homofóbico ou misógino ou mesmo racista para aqueles que aderem a ele, mas um “homem de bem” exercendo a “liberdade de expressão”. Estes são os adjetivos que aparecem com frequência colados ao candidato de extrema-direita por seus eleitores: “sincero”, “verdadeiro”, “autêntico”, “honesto” e “politicamente incorreto” (este último também como um elogio).

Embora o conteúdo do que Bolsonaro diz obviamente influencia no apoio do seu eleitorado, me parece que ele é mais beneficiado pelo fenômeno que aqui estou chamando de autoverdade. O ato de dizer “tudo” e o como diz o que diz parece ser mais importante do que o conteúdo. A estética é decodificada como ética. Ou colocada no mesmo lugar. E este não é um dado qualquer.

Por isso também é possível se desconectar do conteúdo real de suas falas, como fazem tantos de seus eleitores. E por isso é tão difícil que a sua desconstrução, por meio do conteúdo, tenha efeito sobre os seus eleitores. Quando a imprensa mostra que Bolsonaro se revelou um deputado medíocre, que ganhou seu salário e benefícios fazendo quase nada no Congresso, quando mostra que ele nada tem de novo, mas sim é um político tão tradicional como outros ou até mais tradicional do que muitos, quando mostra que falta consistência no seu discurso, assim como projeto que justifique seu pleito à presidência, há pouco ou nenhum efeito sobre os seus eleitores.

Simples assim. Complexo demais. A lógica em que a imprensa opera, quando faz jornalismo sério, que é a do conteúdo, não atinge Bolsonaro porque seu eleitorado opera em lógica diversa. Esse é um dado bastante trágico, na medida em que os instrumentos disponíveis para expor verdades que mereçam esse nome, para iluminar fatos que de fato existem, passam a girar em falso.

Se Bolsonaro participar dos debates ao vivo durante a campanha eleitoral, para uma parcela significativa do eleitorado brasileiro o que vai prevalecer é a estética marcada pelo “dizer tudo” e dizer tudo lacrando. Também por isso Ciro Gomes (PDT), por sua própria personalidade mais agressiva e sua falta de freio na língua, é visto por uma parcela preocupada com a ascensão de Bolsonaro como o mais capaz de enfrentá-lo.

Se esse quadro permanecer, a disputa entre testosteronas infláveis – e inflamáveis – será mais importante do que o conteúdo na eleição brasileira, porque mesmo quem tem conteúdo terá que deixá-lo em segundo plano para ganhar a disputa da dramaturgia. Mais um degrau escada abaixo na apoteótica descida do país rumo à irrelevância.

Se este não é um fenômeno exclusivamente brasileiro, no Brasil há uma particularidade que parece impactar de forma decisiva a autoverdade. Essa particularidade é o crescimento das igrejas evangélicas fundamentalistas e sua narrativa do mundo a partir de uma leitura propositalmente tosca da Bíblia. A retórica do bem contra o mal atravessa fenômenos como a “bolsonarização do país”.

Formados nessa narrativa, uma geração de brasileiros é capaz de ler ou assistir a uma reportagem da imprensa mostrando verdades que Bolsonaro gostaria que não subissem à superfície não pelo seu conteúdo, mas pela ótica da perseguição. O conteúdo não importa quando quem questiona o inquestionável é automaticamente um inimigo, capaz de usar qualquer “mentira” para atacar um “homem de bem”. Afinal, as imagens de malas de dinheiro (de dízimo, no caso) foram inauguradas por alguns pastores neopentecostais, muito antes do que pela investigação da Lava Jato, e mesmo assim suas igrejas não pararam de crescer. Bolsonaro torna-se o “perseguido” na luta do bem contra o mal, o que faz todo o sentido para quem é bombardeado por uma visão maniqueísta do mundo.

Este é o mecanismo que tem se alastrado no Brasil. E que é imensamente beneficiado pela tragédia educacional brasileira. Não é por acaso que a escola pública, já tão desvalorizada e desprestigiada, esteja sofrendo o brutal ataque representado pelo movimento político e ideológico nomeado como “Escola Sem Partido”. O pensamento múltiplo e o debate das ideias são os principais instrumentos para devolver importância aos fatos e ao conteúdo, assim como recolocar a questão da verdade.

Não é um risco que os protagonistas das novas direitas queiram correr. No jogo das aparências, seu truque é sempre o mesmo: fazer um movimento ideológico afirmando que é para combater a ideologia, agir politicamente mas afirmar-se antipolítico, apoiar partidos de direita dizendo-se apartidários. Esse mascaramento só funciona se aquele a quem a mensagem se destina abdicar do pensamento em favor da fé.

Resumo de um artigo de Eliane Brum, escritora, repórter e documentarista, para o jornal El País.

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