Há um fator fundamental a ser analisado na formação política e cultural de nossa época. Trata-se da “consciência dissociada”. O termo consciência é complicado, mas significa basicamente o modo como as pessoas pensam. Consciência tem a ver com mentalidade. A mentalidade, por sua vez, é construída no âmbito social e coletivo.
Ninguém pensa sozinho, mas pensa a partir de influências diversas. Filosofia, nesse contexto, é um modo de buscar um pensamento próprio, o que só acontece como busca que precisa ser levada a sério de um modo honesto. Se perdemos de vista os elementos “inconscientes” que regem nossas ações, corremos o risco de cair na dissociação da consciência que precisamos analisar com cuidado.
A consciência dissociada é aquela em que o que se pensa e o que se faz andam em desacordo. Ela diz respeito à contradições: um político que age contra o povo quando deveria agir a seu favor, um pastor que planta o ódio quando deveria promover o amor, um padre que prega o preconceito quando deveria pregar respeito. Podemos citar aquele cidadão, muitas vezes médico ou juiz, que esteve nas melhores escolas e recebeu a melhor formação científica ou jurídica e que começa a agir contra a ética médica ou a constituição (esta a medida da ética jurídica). Mas podemos falar também daquelas pessoas que amam a arte, o teatro, o cinema e que, de repente, perdem o senso de humanidade e começam a falar contra a dignidade humana. Parecem estar esquecendo alguma coisa que deveriam ter aprendido com os meios de produção da sensibilidade concernentes a tais atividades.
Estou mencionando as experiências políticas, religiosas, jurídicas, mas também científicas e artísticas porque elas definem o lugar das mais altas aspirações humanas. Sempre soa estranho que alguém bem formado, educado nas melhores instituições, com as mais dignas titulações, alguém que tenha viajado, que tenha aprendido outras línguas, que tenha entrado em contato com outras culturas e visões de mundo possa ser social e politicamente obtuso, o que se demonstra pela negação do princípio da dignidade humana que sempre deve ser confirmada na defesa de direitos humanos e fundamentais, da ética e da democracia.
Sob a consciência dissociada é como se a pessoa vivesse rachada ao meio, sendo duas ao mesmo tempo. A consciência dissociada é um problema social dos cidadãos, mas é também uma solução para quem quer manipular de algum modo a população. Para muitos a consciência dissociada serve como um discurso pronto. Há muitos líderes que pregam com base na dissociação da consciência.
(...). A dissociação da consciência é o que permite enganar os outros sem culpa.
(...)
No cenário da miséria espiritual, cultural, política e ética em que vivemos, o melhor é respeitar o lugar de cada um no processo histórico sem cair em julgamentos que, muitas vezes, escondem falta de autocrítica. Ao mesmo tempo, se quisermos revitalizar politicamente a esfera cotidiana, precisamos de diálogo. E diálogo implica perder o medo do outro, mas também implica um outro capaz de jogar um jogo limpo, atualmente em desuso. O jogo democrático é o que se perdeu, recriá-lo seria possível a partir do diálogo que desse base à uma democracia radical.
O diálogo não existe sem honestidade e sinceridade. Tudo o que os “duas caras” da consciência dissociada não tem para colar a sua face rachada.
Só o diálogo é capaz de resgatar a face partida em duas no processo de dissociação da consciência.
Sabemos que é impossível, mas é a utopia que nos move e que pode mover cidadãos para além das rachaduras ideológicas que escondem o cadáver da democracia atual no Brasil.
Resumo do artigo: "Duas caras na política, no cotidiano, na vida", por Marcia Tiburi
Do site Pensar Contemporâneo.
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