domingo, 14 de agosto de 2016

A esquerda vai, a direita vem – por quê?

Por Reginaldo Moraes, no GGN

Estas notas partem do livro de Thomas Frank - Pity the Billionaire: The Hard-Times Swindle and the Unlikely Comeback of the Right. Mas intrometem algumas reflexões próprias, à revelia do texto do Frank.

T. Frank observa uma situação paradoxal, que vê como única (e inesperada) na historia americana: tempos difíceis, de crise, e uma conversão massiva a uma ideologia de livre-mercado. É o que se observa nos EUA hoje.

O argumento da austeridade já fora enunciado pelo governo Hoover, na Depressão anterior (a de 1929). Mas naquela ocasião a resposta politica dominante foi outra, não a glorificação do free-market. Foi o New Deal, a versão de socialdemocracia que parecia caber dentro do liberalismo americano. A partir dai, “liberal”, nos Estados Unidos, teve um significado próximo de “socialdemocrata” na Europa.

Lá nos anos 1920, ainda, o Secretário do Tesouro, Andrew Mellon, aconselhou o presidente Hoover a promover uma “queima total”:  "liquidar o trabalho, liquidar ações, liquidar os agricultores, liquidar imóveis." Essa politica,  de acordo com o Mellon, "irá limpar a podridão do sistema. Alto custo de vida e altos estilos de vida iriam descer. As pessoas vão trabalhar mais, viver uma vida mais moral. Valores serão ajustados e pessoas empreendedoras pegarão os destroços das pessoas menos competentes". Os conselhos de Mellon refletiam a ortodoxia do dia: Deixe a crise seguir seu curso, deixe falir aquele que falha, deixe o fraco ser purgado, e temos a confiança que os fortes vão surgir mais fortes do que nunca”.

Mas isso não vingou. Hoover dançou, Roosevelt assumiu o comando com outra orientação.

Num certo ponto do livro, Frank também retoma uma frase de Margareth Thatcher. A chamada dama de ferro (nos outros) morreu, mas o website continua ali, até que se lhe enfie uma estaca. Recolhi a frase e o paragrafo onde está. Indica algo que pelo menos ajuda a explicar o paradoxo acima descrito (adesão a free-market em ambiente de depressão). Thatcher sabia o que queria. Leia:

“O que tem me irritado sobre os caminhos da política nos últimos 30 anos é que eles foram sempre direcionados para a sociedade coletivista. As pessoas esqueceram-se da sociedade  pessoal. E elas dizem: Eu conto? Eu importo? A resposta direta é: sim. E, portanto, o que eu impulsionei não foram políticas económicas; é que me propus realmente a mudar a abordagem, e mudar a economia é a forma de mudar esse ponto de vista. Se você alterar a abordagem você está, em seguida, no coração e na alma da nação. Economia é o método; o objetivo é mudar o coração e a alma.http://www.margaretthatcher.org/document/104475]

Por que a esquerda perdeu terreno?

Frank não explora isso, outros o fazem: qual é a base material da decadência da socialdemocracia, dos trabalhistas e socialistas, dos grupos políticos “coletivistas”, enfim?

As transformações macroeconômicas e a reengenharia do mundo corporativo foram decisivas na criação do ambiente em que free-market deixa de ser alucinação e fanfarronice, para se tornar ‘senso-comum’. São transformações macroeconômcias (leis relativas a privatização e quebra de regulações estatais] com correspondentes no mundo microeconômico (reengenharia de empresas).

Aqui vai uma reflexão que devemos fazer, com calma, mas sem complacência.

A esquerda sempre teve uma base sociológica: a classe trabalhadora. É o eixo em torno do qual gira deve girar a política da esquerda. Podem chover discursos sobre “a nova economia”, a “sociedade do conhecimento” e outras milongas. Mas ainda temos que comer, vestir... e tudo aquilo que diz respeito à reprodução do corpo humano.

Essa base sociológica da esquerda (sindicatos, partidos) é desmantelada com a fragmentação adotada como política pelas empresas e estimulada/subsidiada pela legislação, com a terceirização, lei de responsabilidade fiscal, etc.

Essa base sociológica é também muito dependente de um universo de serviços que determinam sua vida cotidiana, suas relações com a sociedade: serviços públicos de saúde, educação, assistência social, etc. Esses serviços públicos são a base material de uma cultura social-democrata, de valores coletivos, não-individualistas. Quanto esses serviços deixam de ser direitos e viram mercadorias ou são submetidos a lógicas de mercado, isso tem impacto brutal sobre as ideias, valores, sentimentos, identidades politicas. É banal e brutal, mas o modo como as pessoas vivem determina muito do que as pessoas pensam.

Esse desmantelamento foi sendo implantado ou tolerado nos últimos 25 ou 30 anos, inclusive nos governos de esquerda. É por ai que devemos entender o alinhamento da "nova classe média" ou, melhor, da nova classe trabalhadora, remodelada pelas reformas liberais e pela fragmentação. Alinhamento com os valores da direita, do individualismo, da pseudo-meritocracia, do evangelismo do sucesso. É uma mistura explosiva: terceirização e fragmentação da classe trabalhadora mais privatização de serviços públicos. Um coquetel para fermentar idéias da nova direita.

Se assim é, a contra-ofensiva da esquerda não pode se dar apenas no terreno da propaganda, da difusão de idéias.; Ela muito importante, mas depende de uma base material. A luta principal tem que se dar na reconquista da base material da social-democracia. A recuperação de direitos da classe trabalhadora, a criação de canais políticos e organizativos para reunificar seus diversos segmentos, a substituição de "mercadorias" de educação e saúde por serviços públicos de educação e saúde. Sem isso, as idéias ficam penduradas no vazio. E não criam raízes.

As reformas macroeconômicas neoliberais, para além deste ou aquele detalhe ou modulação, ampliaram a privatização e a financeirização da vida. O Plano Real, por exemplo, foi um planinho de estabilização monetária, ok, Mas foi também, e principalmente, um plano-choque maior, de privatização e desregulamentação. No plano da vida cotidiana, foi um “plano latinha”. Voce passa nas ruas de antigas regiões industriais e depois de alguns minutos está resmungando: lá tinha uma fábrica disto, lá tinha uma fábrica daquilo.

Alguns efeitos dessa praga são vistos no terreno microeconômico (na forma de organização das empresas), com desdobramentos sociais e políticos fortes. Empregos se desmanchando e bases sindicais de desintegrando.

As empresas terceirizam, ‘exportam’ serviços e operações antes internalizadas. Tudo vira subcontratado, “empreendedor”, flexível. A empresa guarda-chuva, por exemplo, transforma ex-empregados em ‘colaboradores-associados’ via gatas e terceirizadas. Algumas fizeram isso até com setores produtivos delicados. Metalúrgicas e montadoras estão ‘expelindo’ para gatas e ‘cooperativas’ até sua ferramentaria e estamparia. Cogita-se fazer o mesmo com manutenção elétrica e mecânica, antes vistas quase como parte da ‘segurança patrimonial’, pelo risco. Isto coloca pressão sobre esses ex-trabalhadores hoje ‘empreendedores’. Amanhâ, eles podem ser vozes clamando por redução de impostos e encargos, direitos, etc. E falando a linguagem do ‘mercado’. O neoliberalismo não se enraíza só na base da propaganda de TV. Tem que ter base na vida material.

Base material? Não é só o emprego. Privatização da educação, da saúde. Mesmo os serviços públicos passam a ser gerenciados através de procedimentos “mercado-alike”, regras de mercado que, dizem os babacas, aumentam a eficiência porque instauram a competição. Daí se forma um  “estado submerso” das politicas sociais financiadas com dinheiro publico mas realizada através de entes privados. Cidadania vira clientela. Com consequências na percepção das pessoas, que começam a chamar educação e saúde de “serviços educacionais”, produtos, etc..

E provavelmente esse ‘pequeno emprendedor’ vai ser a ponta de lança da nova direita, de suas demandas mais ‘avançadas’. Para ajudar a propaganda anti-estado e anti-coletivista,  a pequena empresa sente mais de perto a presença do regulador, até porque a grande tem mais recursos para engraxar o regulador. No mundo inteiro, quem mais paga imposto é classe média e pequena empresa. Grande empresa e grande fortuna escapam sempre.

T. Frank lembra a grande quantidade ‘small business owners’ entre os ativistas e manifestantes do Tea Party. Donos de lojas, de restaurantes, etc. Para eles, “regulação” é a visita do inspetor sanitário ou do fiscal, “achando” o que multar. São os pequeno burgueses como bucha de canhão dos grandes piratas. Como os trouxinhas da avenida Paulista, berrando contra a corrupção e liderados por grandes sonegadores e corruptos.

Aliás, Frann retoma uma passagem preciosa do – que está no livro A Nova Classe Media, capitulo sobre os pequenos negócios. Mills acerta na mosca. Mostra como o fetiche do americano empreendedor não nasce de dentro desse universo (dos pequenos empreendedores) nem decorre de seus ‘sucessos’, mas do interesse dessa imagem para o grande negocio. É a bucha de canhão.. É o pequeno proprietário e seu sofrimento, seu heroísmo, que ‘justifica’ a luta contra o imposto sobre herança, para  a desregulação (trabalhista, fitossanitária, etc.).

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