quarta-feira, 27 de julho de 2016

 Diminuir / Aumentar a letraEntrevistasTerça, 26 de julho de 2016O fascismo vive em nós através do dispositivo do neoliberalismo. 

"O fascismo, diríamos, é um humanismo. Para o fascismo, trata-se de salvar a ‘raça’ que será a última propriamente ‘humana’ que sobreviveu à invasão parasitária dos ‘outros’ (muçulmanos, judeus, índios, negros etc.)”, afirma o filósofo chileno.

“Uma mutação radical da soberania moderna em uma definitiva inscrição biopolítica.” Assim o filósofo chileno Rodrigo Karmy caracterizaria o fascismo em nosso tempo em entrevista concedida àIHU On-Line, por e-mail.

Um regime que não reconhece a lei, porém sua exceção permanente, “não conhece a técnica, senão como imperialismo; não sabe do outro mais do que como inimigo; não conhece o exército, senão como aparato policial; converte o silêncio em seu aliado mais forte, combinado com uma estetização completa da vida social; reduz a noção de progresso à extensão de suas rodovias e vislumbra o passado apenas como um mito que, tendo sido esquecido por muito tempo, é reeditado em e como presente”.

Contudo, Karmy adverte que é preciso problematizar não apenas o fascismo, mas também o discurso humanista: “O fascismo, diríamos, é um humanismo. Para o fascismo, trata-se de salvar a ‘raça’ que será a última propriamente ‘humana’ que sobreviveu à invasão parasitária dos ‘outros’ (muçulmanos, judeus, índios, negros etc.)”. E acrescenta: “Somente como ‘humanismo’ o fascismo pode identificar o ‘outro’ como não ‘humano’ e fazer do fascista um ‘humano’ nesse mesmo ato de exclusão — de sacrifício”.

De acordo com Karmy, o fascismo vive em nossos corpos, “porque o ‘revés’ entre soberania e biopoder se aprofundou na cena capitalista contemporânea. Sob essa luz, o neoliberalismo seria o nome do fascismo feito dispositivo”, define. Sua consumação na sociedade contemporânea é um desdobramento da anarquia do capital como uma verdadeira e já explícita guerra civil global.

Karmy tece, ainda, uma profunda crítica ao neoliberalismo e sua disseminação até as camadas mais profundas da sociedade: “o neoliberalismo é uma doutrina aristocrática, pois privilegia os ‘melhores’.

Um aristocratismo econômico, e não político, como se pode depreender a partir da tradição grega. Essa cena mostra que, no Chile, a vida está inteiramente financeirizada”.

fascismo, observa Karmy, é uma espécie de “captura total da vida e a privação do seu mundo. A captura da vida a priva do mundo e faz do mundo um ‘meio ambiente’. Ou, ao menos, a tentativa de captura total.

Mas, como isso nunca é possível, então, o fascismo deve inventar inimigos: o ‘outro’ aparece como o delinquente que, sendo quase sempre de classe baixa, imigrante, pobre e marginal, ameaça o caráter sagrado da propriedade. Produz-se, assim, não mais o medo da era clássica (Hobbes), mas o terror como uma paixão cotidiana que, por sua vez, implemente a exceção cotidiana”.

E não se trata de salvar a “democracia”, mas sim desarticular as formas “religiosas” do capitalismo. E já não é mais preciso tanques para impor um golpe de Estado: “Basta o jogo que oferece a própria ‘democracia’ e, no caso do Brasil, basta transformar os meios de comunicação em um verdadeiro partido político ‘reacionário’, como disse Safatle”.

Sociedades biopolíticas

Assim, o termo “fascismo” não pode ser apenas uma categoria “moral” que condene um discurso ou prática como aquilo que se opõe inteiramente àquilo que habitualmente entendemos como “democracia”, mas sim como uma categoria analítica que possa ser capaz de mostrar o “revés” entre soberania ebiopoder. Sob essa luz, eu me pergunto se o fascismo considerado como “regime” não constituiu, talvez, o momento de mutação radical e definitivo da soberania moderna clássica rumo à sua definitiva inscrição biopolítica contemporânea. Em outra chave, diríamos: o fascismo recodificou o padrão de acumulação do capitalismo moderno, fazendo com que a sua lógica desenvolvimentista implodisse em um novo padrão deacumulação flexível.

Mas isso nos propõe outra pergunta que deveríamos esclarecer: não foram as técnicas de poder implementadas pelas experiências coloniais entre os séculos XVIII e XIX que, não muitos anos mais tarde, apareceriam na experiência doregime nazista e do fascismo italiano e que acabariam transformando as sociedades europeias em sociedades biopolíticas? Não foi o fascismo o catalisador último dessa transformação, o monstro que, excedendo tanto o nomos estatal-nacional clássico levou suas formas à sua implosão, reinscrevendo-o no novo nomos de corte econômico-financeiro?

Com efeito, seguindo essa hipótese, diríamos que o “regime” fascista já não conhece a lei, mas sim a sua exceção permanente; não conhece a técnica, senão como imperialismo; não sabe do outro mais do que como inimigo; não conhece o exército, senão como aparato policial; converte o silêncio em seu aliado mais forte, combinado com uma estetização completa da vida social; reduz a noção de progresso à extensão de suas rodovias e vislumbra o passado apenas como um mito que, tendo sido esquecido por muito tempo, é reeditado em e como presente.

fascismo não tem reis, e sim “líderes” (führer ou duce) que não só exterminam a sua oposição, mas também pretendem ser miseravelmente amados pelos seus povos. Os “líderes” querem ser amados, e, em efeito, os povos os amaram por algum tempo, na medida em que o problema do “líder” fascista não foi simplesmente reprimir, mas também fazer as massas participarem na reedição do mito histórico.

Mito que marca o lugar do gozo soberano, o punctum da violência sacrificial em que se baseia toda a sua lógica.

"O 'regime' fascista já não conhece a lei, mas sim a sua exceção permanente"

O fascismo como um “humanismo”
Mas, se é assim, seria preciso dizer algo chave que compromete não só o fascismo, mas também o seu crítico mais intrépido: o discurso humanista. O fascismo, diríamos, é um humanismo. Para o fascismo, trata-se de salvar a “raça” que será a última propriamente “humana” que sobreviveu à invasão parasitária dos “outros” (muçulmanos, judeus, índios, negros etc.). Somente como “humanismo” o fascismo pode identificar o “outro” como não “humano” e fazer do fascista um “humano” nesse mesmo ato de exclusão — de sacrifício. Por isso, a afirmação de Walter Benjamin: “A chance deste consiste, e não em última instância, em que seus adversários o enfrentam em nome do progresso como norma histórica”. Ao se opor à sua catástrofe a partir da noção de consciência, razão, sujeito ou pessoa como “norma histórica”, o argumento “humanista” o abastece, em vez de destruí-lo, o humanismo o alimenta sem saber. Não haverá uma crítica decisiva ao fascismo se não nos voltarmos à destruição do humanismo do qual ele se nutre.

A categoria de fascismo deve ser problematizada se quisermos articular uma crítica radical acerca do nosso presente. Devemos decompô-lo, analisá-lo, entender as formas do seu funcionamento, deixando de lado o historicismo liberal que insiste em que, com a Segunda Guerra Mundial, o fascismo foi derrotado de uma vez por todas. O fascismo vive em nós marcando os nossos corpos, porque o “revés” entre soberania e biopoder se aprofundou na cena capitalista contemporânea.

Sob essa luz, o neoliberalismo seria o nome do fascismo feitodispositivo. Como tal, encontrou a sua consumação na sociedade contemporânea. Hoje, vivemos no fascismo consumado, ou seja, naquilo que já não é “fascismo”, mas sim desdobramento da anarquia do capital como uma verdadeira e já explícita guerra civil global. Guerra que pode ser expressa no fato de que o outrora amor a um “líder” implementado pelo fascismo histórico se desloca para o amor direto ao capital, tal como Benjamin o projetou nesse fragmentário texto intitulado “O capitalismo como religião”.

Nessa cena, podemos contemplar o processo de subjetividade das relações trabalhistas: não se trata somente de que os trabalhadores trabalhem, mas também que amem o seu trabalho e que, tal como ocorria com o “regime” fascista, façam do amor parte do dispositivo de acumulação capitalista (aquilo que o coaching atual chama de “felicidade”). Por isso, não basta a noção de “fascismo” entendido como regime, mas sim como dispositivo. Como tal, a facticidade fascista opera no seio da democracia, inclusive como democracia. Por isso, uma interrogação radical acerca do fascismo necessariamente deve nos levar a uma interrogação radical acerca da democracia.
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Terror como paixão cotidiana
A vida nada mais é do que relação com o outro de si, um ser-com em termos absolutos, aquilo inteiramente an-árquico que não obedece a nenhum princípio ou fim. Nesse sentido, vida é o termo para designar uma medialidade (Agamben) ou, o que é o mesmo, um modo de habitar (isto é, uma imanência entre vida e mundo). O fascismo é a captura total da vida e a privação do seu mundo. A captura da vida a priva do mundo e faz do mundo um “meio ambiente”. Ou, ao menos, a tentativa de captura total. Mas, como isso nunca é possível, então, o fascismo deve inventar inimigos: o “outro” aparece como o delinquente que, sendo quase sempre de classe baixa, imigrante, pobre e marginal, ameaça o caráter sagrado da propriedade. Produz-se, assim, não mais o medo da era clássica (Hobbes), mas o terror como uma paixão cotidiana que, por sua vez, implemente a exceção cotidiana.
Nesse plano, parece-me que o conflito decisivo do nosso tempo é jogado entre duas noções de anarquia: entre a anarquia imposta pelo capital como última forma de gestão imperial e a an-arquia do ser-com, que administra populações contra aquela que reivindica uma vida comum ou, para recuperar uma terminologia proposta por Hamid Dabashi no seu livro The arab spring. The end of postcolonialism [A primavera árabe. O fim do pós-colonialismo, em tradução livre]: entre um ethnos que reivindica o sectarismo da guerra civil global como articulação da anarquia capitalista e o ethos como aposta no poder comum que restitui à vida a sua medialidade e desfaz os sectarismos em um novo “cosmopolitismo mundano” (Dabashi).
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Artigo completo:
http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/558061-o-fascismo-vive-em-nos-atraves-do-dispositivo-do-neoliberalismo-entrevista-especial-com-rodrigo-karmy-bolton






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