O homem não é conhecível a si próprio, porque a sua vida
consiste em esforços alternados para ser o que não é, e essa transposição e
substituição contínuas de almas irreais e estranhas fazem com que aquilo que na
verdade e, ao contrário de Deus, pareça o que nunca é. Mesmo no mais pobre de
nós existem pelo menos sete homens.
Há aquele que parece aos outros e o julgado,
justamente, sabe quase sempre que não é. Há aquele que diz ser e ele
próprio sabe não ser, porque a vaidade ou medo tornam sempre mentiroso.
Há aquele que julga ser e é o mais distante da
verdade, que cada um se inclina para se julgar aquilo que não é, por uma
retorsão do orgulho que afasta tudo o pior, que é a maioria. Há aquele que quereria
ser, o mito pessoal de todo o homem, o sonho reservado ao futuro, aquele que
depois deforma todas as autobiografias.
Aquele que finge ser para comodidade e necessidade da
vida comum, onde o insensível deve mostrar-se caloroso, o avarento liberal e o
vil corajoso.
Há aquele que se poderia chamar o nosso duplo
desconhecido: a personalidade subconsciente, que só conhecemos vagamente e
por suposição, embora oriente com frequência a nossa vida e sugira, valendo-se
hipocritamente de razões fingidas, muitos dos nossos atos.
E, finalmente, há aquele que é verdadeiramente e
ninguém conhece, à parte Deus, do qual apenas um inimigo paciente pode entrever
algumas frações inferiores.
O eu essencial e autêntico esquiva-se sempre, a tudo e a si
próprio. Nunca nos assemelhamos a nós mesmos.
Giovanni Papini, in 'Relatório Sobre os Homens'
...caro Assis, talvez Pablo Neruda tenha ao menos vislumbrado parte da resposta...talvez não a todos mas a alguns... A LUA NO LABIRINTO
ResponderExcluirPouco a pouco e também muito a muito
me aconteceu a vida,
e que insignificante é este assunto:
estas veias levaram
sangue meu que poucas vezes vi,
respirei o ar de tantas regiões
sem guardar para mim uma amostra de nenhum
e afinal de contas já o sabem todos:
ninguém leva nada de seu
e a vida foi um empréstimo de ossos.
O belo foi aprender a não se saciar
da tristeza nem da alegria,
esperar o talvez de uma última gota,
pedir mais ao mel e às trevas.
Talvez fui castigado:
talvez fui condenado a ser feliz.
Fique afirmado aqui que ninguém
passou perto de mim sem me compartir.
E que meti a colher até o cotovelo
numa adversidade que não era minha,
no padecimento dos outros.
Não se tratou de palma ou de partido
mas de pouca coisa: não poder
viver nem respirar essa sombra,
com essa sombra de outros como torres,
como árvores amargas que o enterram,
como pancadas de pedra nos joelhos.
A tua própria ferida se cura com pranto,
a tua própria ferida se cura com canto,
mas a tua porta mesmo se dessangra
a viúva, o índio, o pobre, o pescado,
e o filho do mineiro não conhece
o seu pai entre tantas queimaduras.
Muito bem, mas o meu ofício
foi
a plenitude da alma:
um ai de gozo que te corta a respiração,
um suspiro de planta derrubada
ou o quantitativo da ação.
Eu gostava de crescer com a manhã,
embeber-me de sol, com pleno gozo
de sol, de sal, de luz marinha e onda,
e nesse avanço da espuma
fundou meu coração seu movimento:
crescer com profundo paroxismo
e morrer se derramando na areia.
(Antologia Poética. trad. Eliane Zagury. 14a. ed. Rio de Janeiro : José Olympio, 1996, p. 229-230)