quinta-feira, 12 de março de 2015

Quem somos nós?


O homem não é conhecível a si próprio, porque a sua vida consiste em esforços alternados para ser o que não é, e essa transposição e substituição contínuas de almas irreais e estranhas fazem com que aquilo que na verdade e, ao contrário de Deus, pareça o que nunca é. Mesmo no mais pobre de nós existem pelo menos sete homens. 

Há aquele que parece aos outros e o julgado, justamente, sabe quase sempre que não é. Há aquele que diz ser e ele próprio sabe não ser, porque a vaidade ou medo tornam sempre mentiroso. 

Há aquele que julga ser e é o mais distante da verdade, que cada um se inclina para se julgar aquilo que não é, por uma retorsão do orgulho que afasta tudo o pior, que é a maioria. Há aquele que quereria ser, o mito pessoal de todo o homem, o sonho reservado ao futuro, aquele que depois deforma todas as autobiografias. 

Aquele que finge ser para comodidade e necessidade da vida comum, onde o insensível deve mostrar-se caloroso, o avarento liberal e o vil corajoso. 

Há aquele que se poderia chamar o nosso duplo desconhecido: a personalidade subconsciente, que só conhecemos vagamente e por suposição, embora oriente com frequência a nossa vida e sugira, valendo-se hipocritamente de razões fingidas, muitos dos nossos atos. 

E, finalmente, há aquele que é verdadeiramente e ninguém conhece, à parte Deus, do qual apenas um inimigo paciente pode entrever algumas frações inferiores. 

O eu essencial e autêntico esquiva-se sempre, a tudo e a si próprio. Nunca nos assemelhamos a nós mesmos. 

Giovanni Papini, in 'Relatório Sobre os Homens'

Um comentário:

  1. ...caro Assis, talvez Pablo Neruda tenha ao menos vislumbrado parte da resposta...talvez não a todos mas a alguns... A LUA NO LABIRINTO


    Pouco a pouco e também muito a muito

    me aconteceu a vida,

    e que insignificante é este assunto:

    estas veias levaram

    sangue meu que poucas vezes vi,

    respirei o ar de tantas regiões

    sem guardar para mim uma amostra de nenhum

    e afinal de contas já o sabem todos:

    ninguém leva nada de seu

    e a vida foi um empréstimo de ossos.

    O belo foi aprender a não se saciar

    da tristeza nem da alegria,

    esperar o talvez de uma última gota,

    pedir mais ao mel e às trevas.


    Talvez fui castigado:

    talvez fui condenado a ser feliz.

    Fique afirmado aqui que ninguém

    passou perto de mim sem me compartir.

    E que meti a colher até o cotovelo

    numa adversidade que não era minha,

    no padecimento dos outros.

    Não se tratou de palma ou de partido

    mas de pouca coisa: não poder

    viver nem respirar essa sombra,

    com essa sombra de outros como torres,

    como árvores amargas que o enterram,

    como pancadas de pedra nos joelhos.


    A tua própria ferida se cura com pranto,

    a tua própria ferida se cura com canto,

    mas a tua porta mesmo se dessangra

    a viúva, o índio, o pobre, o pescado,

    e o filho do mineiro não conhece

    o seu pai entre tantas queimaduras.

    Muito bem, mas o meu ofício

    foi

    a plenitude da alma:

    um ai de gozo que te corta a respiração,

    um suspiro de planta derrubada

    ou o quantitativo da ação.


    Eu gostava de crescer com a manhã,

    embeber-me de sol, com pleno gozo

    de sol, de sal, de luz marinha e onda,

    e nesse avanço da espuma

    fundou meu coração seu movimento:

    crescer com profundo paroxismo

    e morrer se derramando na areia.


    (Antologia Poética. trad. Eliane Zagury. 14a. ed. Rio de Janeiro : José Olympio, 1996, p. 229-230)

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