Formou Deus o homem, e o pôs num paraíso de delícias; tornou a formá-lo a
sociedade, e o pôs num inferno de tolices. O homem — não o homem que
Deus fez, mas o homem que a sociedade tem contrafeito, apertando e
forçando em seus moldes de ferro aquela pasta de limo que no paraíso
terreal se afeiçoara à imagem da divindade — o homem assim aleijado como
nós o conhecemos, é o animal mais absurdo, o mais disparatado e
incongruente que habita na terra.
Rei nascido de todo o criado, perdeu a realeza: príncipe deserdado e
proscrito, hoje vaga foragido no meio de seus antigos estados, altivo
ainda e soberbo com as recordações do passado, baixo, vil e miserável
pela desgraça do presente.
Destas duas tão apostas atuações constantes, que já per si sós o
tornariam ridículo, formou a sociedade, em sua vã sabedoria, um sistema
quimérico, desarrazoado e impossível, complicado de regras a qual mais
desvairada, encontrado de repugnâncias a qual mais aposta. E vazado este
perfeito modelo de sua arte pretensiosa, meteu dentro dele o homem,
desfigurou-o, contorceu-o, fê-lo o tal ente absurdo e disparatado,
doente, fraco, raquítico; colocou-o no meio do Éden fantástico de sua
criação — verdadeiro inferno de tolices — e disse-lhe, invertendo com
blasfemo arremedo as palavras de Deus Criador:
- De nenhuma árvore da horta comendo comerás:
- Porém da árvore da ciência do bem e do mal dela só comerás se quiseres viver.
Indigestão de ciência que não comutou seu mau estômago, presunção e
vaidade que dela se originaram — tal foi o resultado daquele preceito a
que o homem não desobedeceu como ao outro: tal é o seu estado habitual.
E quando as memórias da primeira existência lhe fazem nascer o desejo de
sair desta outra, lhe influem alguma aspiração de voltar à natureza e a
Deus, a sociedade, armada de suas barras de ferro, vem sobre ele, e o
prende, e o esmaga, e o contorce de novo, e o aperta no ecúleo doloroso
de suas formas,
Ou há de morrer ou ficar monstruoso e aleijão.
Almeida Garrett, in 'Viagens na minha Terra'
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