segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Liberdade e liberdade de expressão, por Aldo Fornazieri

O Ocidente, de forma manipuladora, transformou o ataque terrorista ao Charlie Hebdo em um ataque à liberdade de expressão. A confusão contaminou intelectuais, articulistas e jornalistas de todas as partes. Não há dúvida de que o Charlie foi o causador do ataque pelas charges, muitas vezes odiosas e desrespeitosas que vinha publicando. Isto não quer dizer que ele seja o responsável pelo ataque. Causa e responsabilidade são conceitos diferentes. Se os terroristas quisessem atacar a liberdade de expressão teriam alvos mais significativos, como o Arco do Triunfo, “A Liberdade Guiando o Povo” de Eugène Delacroaix etc. Um ataque ao Le Monde ou ao Libération produziria mais espetacularidade.

O presidente François Hollande e outros representantes do ocidentalismo elevaram a liberdade de expressão à condição de pináculo da civilização ocidental. Eles vêm usando, de forma recorrente, a retórica da guerra em nome da defesa desse valor, caindo na mesma esparrela usada por George W. Bush em 2001. Subliminarmente, reforçam o conflito civilizacional, o que redundará em mais perseguição a imigrantes na Europa, em mais intervenções militares, em assassinatos seletivos de líderes insurgentes que são um incômodo para o Ocidente, em aumento da islamofobia fascista na França e em crescimento da reação jihadista dos radicais islâmicos em detrimento do islamismo moderado.

De forma mais equilibrada, o Papa Francisco também defendeu a liberdade de expressão, mas advertiu que da mesma forma que não se pode matar em nome de Deus, não se deve desrespeitar as religiões. Claro que o Papa não equiparou as duas atitudes. Mas o fato é que o desrespeito às crenças dos outros, a ridicularização e a manifestação recorrente do preconceito se instituem em formas de violência moral que machuca, humilha, degrada e suscita ódio nas vítimas dessas práticas. O humor não é uma expressão humana sempre neutra, assim como a piada não o é. Ele pode estar a serviço de lutas libertadoras contra a opressão, bem como, pode ser usado como instrumento de humilhação dos outros. Pode fazer rir à custa da disseminação do preconceito e da violência moral, desrespeitando e ofendendo.

A polêmica toda coloca a necessidade de se discutir o conceito de liberdade. No mundo contemporâneo, a liberdade foi elevada à condição de valor absoluto da democracia. Nem sempre foi assim. Tocqueville, por exemplo, entedia que a igualdade era o valor característico da democracia e que a liberdade era um valor fundamental para impedir que a igualdade pudesse degenerar e trazer males como, por exemplo, a tirania. Do ponto de vista político, havia uma interdependência entre esses valores, sendo que a liberdade não era apresentada como uma variável independente, como o é hoje.

O filósofo Nicola Abbagnano compila três grandes acepções do conceito de liberdade que se desenvolveram ao longo da história: 1) Liberdade como autodeterminação e como ausência de condições e limites externos; 2) Liberdade como necessidade autodeterminante decorrente de uma totalidade identificada no Mundo, em Deus, na Substância ou no Estado; 3) Liberdade como possibilidade, inserida sempre num contexto de condicionalidades que a tornam limitada e finita.

As duas primeiras acepções são praticamente iguais. A principal diferença se situa na identificação da causa original da liberdade. No primeiro caso, ela se localiza na vontade individual, pois livre seria aquilo que é causa de si mesmo; no segundo, a liberdade se origina no todo supraindividual que é identificado em diferentes seres de acordo com a especificidade de cada filosofia (Absoluto, Deus, Universo, Substância, Estado etc.). Em ambos os casos, trata-se de uma liberdade sem limitações e incondicional. No segundo caso, como há o problema da capacidade de acessar o todo pelo conhecimento, somente os sábios seriam verdadeiramente livres.

Do ponto de vista político, a conseqüência dessas noções absolutistas e necessitaristas da liberdade seria a anarquia, pois elas implicam a ausência de regras, limites e leis. Não é mero acaso o fato de que no mundo capitalista anárquico pós-moderno, marcado pelo ultraindividualismo, busca-se afirmar uma noção de liberdade sem limites e, igualmente, sem responsabilidades. Existem inúmeras advertências dos filósofos políticos no sentido de que a liberdade sem limites redundará na tirania e no fim da própria liberdade. No mundo em que vivemos, hoje estamos submetidos a vários aspectos sutis ou explícitos de dominação e de imposição e de restrição à liberdade.

A Liberdade Limitada e a Necessidade de Diálogo Entre Civilizações

A terceira concepção de liberdade destoa das duas primeiras por entender que ela é dimensionada pela medida de necessidade ou como “justa medida”. Ou seja, quando se age, deve-se evitar a deficiência e o excesso. Livre, nesse contexto, é aquele que possui determinadas possibilidades de escolhas, inseridas sempre num âmbito complexo de condicionalidades. Quanto mais possibilidades de escolha um indivíduo dispõe, mais aumenta seu grau de liberdade. As possibilidades objetivas de escolhas e a ordem dos motivos limitam a liberdade, indica Abbagnano.

As possibilidades objetivas são definidas pela existência dos outros, da natureza, das regras e pelas condicionalidades dos contextos social, econômico e político. Na vida social, a liberdade política é delimitada por leis e pelos conflitos. Desta forma, a liberdade é um problema sempre em aberto, que depende das condições e circunstâncias específicas de cada sociedade e de cada indivíduo.

Se a liberdade fosse absoluta, conceitos como justiça, igualdade, equidade, mérito, honestidade se tornariam irrelevantes. Podemos praticar a nossa liberdade à custa da infelicidade, da opressão, da humilhação e da miséria dos outros? Se a liberdade é absoluta como poderíamos respeitar as pessoas que pensam diferente de nós na nossa sociedade? E como poderíamos respeitar as outras sociedades e culturas que têm sistemas de valores diferentes dos nossos? Hollande afirmou que os muçulmanos não entendem a importância que a liberdade de expressão tem para os franceses. Mas os franceses entendem a importância que o profeta Maomé tem para os muçulmanos? Reconhecer o outro e suas demandas legítimas e a promoção do diálogo inter-civilizacional e intercultural são as únicas saídas razoáveis que restam. A base desse diálogo são os valores comuns que existem entre as diferentes civilizações. Samuel Huntington tinha razão quando observava que é nas religiões onde se localizam mais valores comuns entre as diferentes culturas e civilizações.

A liberdade de expressão é um aspecto da liberdade enquanto tal e, consequentemente, também é um valor que é exercido num contexto limitado e definido de possibilidades de escolha. Liberdade de imprensa, de pensamento, de religião, de expressão, de consciência, de reunião, entre outras, são definidas pelos especialistas como instituições estratégicas da liberdade. “Instituições”, pois são garantidas pelas Constituições e leis nas democracias.

A liberdade de expressão, do ponto de vista de sua efetivação pública, é um direito que deve ser exercido sem agredir os direitos dos outros, sem ofender, desrespeitar, degradar, humilhar, desonrar, sem manifestar preconceitos ou incitar a violência etc. Tal como na liberdade em geral, na liberdade de expressão o autor das escolhas é cada indivíduo e elas são delimitadas pelas possibilidades objetivas e pelas motivações que também são condicionadas pelas circunstâncias, pelo modo de vida, pelos costumes etc.

Para haver paz mundial, o Ocidente precisa reconhecer a multiplicidade e a historicidade dos valores de forma efetiva. Precisa reconhecer também a superioridade do pluralismo sobre qualquer forma de monismo, como asseverou Isaiah Berlin. Os Direitos Humanos não podem ser entendidos como uma autorização para atacar populações não ocidentais. São uma construção histórica que precisa ser permanentemente refeita pelo diálogo entre os povos. Ou, recorrendo mais uma vez a Huntington, o Ocidente precisa reconhecer-se como uma civilização particular e não universal. O mundo de hoje, de fato, é multipolar e multicivilizacional. A suposição do universalismo do Ocidente não deixa outra saída que não seja a guerra. O universalismo ocidental é um equivalente de sinal oposto ao jihadismo fundamentalista dos grupos radicais islamitas.

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