A mudança da natureza do Estado sob o neoliberalismo tem sido muito
discutida. Posicionando-se a princípio aparentemente acima da sociedade
e fazendo mediação entre as diferentes classes, assim como sob o
dirigismo (apesar de ser um Estado conduzido também pela grande
burguesia), sob o neoliberalismo o Estado passa a promover primariamente os
interesses da oligarquia corporativo-financeira (a qual está integrada
ao capital financeiro internacional), sob a alegação de que o que
é bom para esta oligarquia é
ipso facto
bom para a nação. A completa unanimidade entre Arun Jaitley e P.
Chidambaram, numa cerimónia recente em Delhi onde ambos estiveram
presentes, acerca da questão da "tributação
retroactiva", à qual ambos se opunham porque reduzia
"incentivos" para os capitalistas, só vem confirmar esta tese.
Da mesma forma, a mudança nas feições do Estado sob o
neoliberalismo tem sido muito discutida. O enorme aumento em despesas
eleitorais que assegura que partidos de trabalhadores pobres tenham maior
dificuldade em obterem representação nos parlamentos, os quais
portanto são preenchidos cada vez mais por bilionários ou por
eleitos corporativos, constitui uma mudança óbvia. Narendra Modi,
que segundo se diz gastou mais do que Obama na sua campanha para
primeiro-ministro, não podia ter avançado tanto sem apoio
corporativo maciço, o qual não surpreendentemente tem agora de
retribuir uma vez no poder: em suma, as feições do segmento
eleito do governo experimentam uma mudança sob o neoliberalismo, com
favoritos corporativos ficando melhor representados.
E mesmo a burocracia experimenta um mudança, não apenas pelas
razões discutidas por Hilferding e Lenine, a saber, sua
"união pessoal" com a oligarquia financeira, que se deve entre
outras coisas a boas ofertas de emprego pós (ou mesmo pré)
aposentação por parte do sector corporativo, mas também
por uma razão adicional: a burocracia obtém cada vez mais
"treino" directamente de agências como o Banco Mundial, ou
através de arranjos efectuados por agências como o Banco Mundial
em universidades metropolitanas "de prestígio" como Harvard e
Yale onde absorvem a ideologia neoliberal
in totum.
Entretanto, além desta mudança na natureza e
feições do Estado, também se verifica uma mudança
na sua anatomia, isto é, na sua organização interna e na
distribuição de poderes. Há pelo menos cinco diferentes
aspectos aqui envolvidos, os quais discutiremos em sucessão.
A
primeira
mudança é a introdução da autonomia do banco
central. Isto ainda não aconteceu formalmente na Índia, mas o
facto de que a mesma pessoa nomeada como governador pelo governo anterior
continue a manter o posto ainda agora, fazendo o que estava a fazer
anteriormente e o que a sua própria preferência determina,
é sugestivo da sua autonomia de facto e a da instituição
que chefia. Em outros países tal autonomia foi institucionalizada mais
formalmente, o que significa que todo um conjunto de políticas que o
banco central tem a prerrogativa de definir é decidido independentemente
da vontade dos parlamentos e portanto dos representantes do povo. O povo pode
eleger um novo governo, mas este nada terá a dizer sobre a
política cambial, a política monetária e a política
de crédito, as quais têm um impacto vital sobre as vidas das
pessoas. E mais ainda: uma vez que uma economia neoliberal está exposta
a fluxos de capitais mais ou menos livres, estas políticas são
determinadas pelo banco central autónomo a fim de atender às
exigências da finança globalizada.
Por outras palavras, as políticas do banco central são isoladas
das vontades do povo e definidas de acordo com as exigências do capital
financeiro. Isto, sem dúvida, seria o caso pouco importando se o banco
central desfruta ou não de autonomia, enquanto a economia permanecesse
aberta a fluxos financeiros globais. Por que então, pode-se perguntar,
faria alguma diferença a autonomia do banco central? A razão
é que tal autonomia torna ainda mais difícil a
imposição de controles de capitais, colocando um fardo adicional,
na forma de um banco central autónomo, a ser ultrapassado antes que tais
controles possam ser postos em prática.
A
segunda
mudança é uma transformação completa nos poderes
relativos dos departamentos do governo, com o ministro das Finanças a
emergir como um super-ministro, o qual adquire um poder de veto sobre as
propostas dos outros ministros e cujos representantes tomam parte em todo
comité decisório de todos os outros ministérios. Na
Índia, a Comissão de Planeamento desfrutara de um status
proeminente desde os dias do planeamento nehruano e a sua
continuação era um desafio à emergência e uma
estrutura neoliberal do Estado. Este desafio foi ultrapassado sob o governo
Manmohan Singh ao conseguir que um empregado do Banco Mundial que anteriormente
fora o ministro das Finanças indiano encabeçasse a
Comissão de Planeamento. Sob o actual governo isto foi ultrapassado pela
abolição da Comissão de Planeamento, a qual tem pouco a
ver com excentricidades de Modi – faz parte da formação de
uma estrutura de Estado neoliberal.
A
terceira
e mais significativa característica da estrutura de Estado neoliberal
é que tanto o banco central, que se torna autónomo, como o
Ministério das Finanças, que emerge como super-ministério,
são encabeçados e manejados por empregados do Banco Mundial, do
FMI ou de bancos multinacionais. O que isto implica, em suma, é que
dentro do Estado como um todo, surge uma entidade núcleo, um Estado
dentro de um Estado, o qual está especialmente preocupado com assuntos
económicos, mas não apenas com tais assuntos (uma vez que
"segurança" e relações com o imperialismo e o
capital financeiro internacional também caem dentro do seu âmbito).
Esta entidade é todo-poderosa; ela não responde ao povo; ela
não é removível pelo voto popular; e ela está
estreitamente ligada ao imperialismo. (Não é de surpreender que o
vice-presidente da Comissão de Planeamento sob o governo Manmohan Singh,
cujas responsabilidades oficiais têm pouco a ver com o assunto, estivesse
envolvido, presumivelmente como membro deste "Estado núcleo",
nas negociações com os EUA sobre o acordo nuclear
indo-estado-unidense.
Muitos, no contexto dos EUA, escreveram acerca de um "Estado
Profundo"
("Deep State"),
o qual é perigosamente todo-poderoso, não responde a
ninguém, invisível para quem está do lado de fora e ligado
a poderosos interesses dos negócios, estando embebido dentro do Estado.
Não importando como se encare o conceito específico do chamado
"Estado Profundo" dentro dos EUA, existe dentro de todo Estado
neoliberal uma tendência para a cristalização de uma
entidade núcleo, a qual é todo-poderosa, infensa a qualquer
controle democrático e ligada ao
big business
e interesses financeiros.
A
quarta
mudança relaciona-se à tendência para entrar em tratados
externos sobre questões económicas cruciais ligadas ao
comércio, fluxos de capital e direitos de propriedade intelectual, os
quais, afirma-se, não têm de ser ratificados pelo parlamento. O
país, por outras palavras, sempre que tais tratados entram em vigor,
é apresentado diante de um facto consumado acerca do qual os
representantes eleitos do povo pouco podem fazer mas que têm uma
influência importante sobre as vidas do povo.
Foi o que aconteceu em relação à Lei Indiana de Patentes
de 1970, a qual tinha de ser tornada compatível com o
TRIPS
, muito embora numerosos comités parlamentares tenham recomendado
especificamente que o regime de patente estabelecido sob essa lei, a qual fora
louvada internacionalmente por pensadores progressistas independentes como
modelar, não deveria ser mudada. Mas ela teve de ser alterada porque o
país entrou no acordo TRIPS por uma decisão unilateral do
executivo, o qual em momento algum pediu qualquer aprovação
parlamentar porque dizia não ser preciso.
HEGEMONIA IRRESTRITA DA OLIGARQUIA CORPORATIVO-FINANCEIRA
O Acordo Nuclear Índia-EUA foi outro exemplo de um tratado assinado
unilateralmente pelo executivo sem que o assunto fosse ao parlamento e sendo
apresentado ao país um facto consumado elaborado pela entidade
núcleo dentro do Estado neoliberal.
A
quinta
mudança agora é iminente na forma de acordos internacionais tais
como o Trans Pacific Partnership (
TPP
) e Transatlantic Trade and Investment Pact (
TTIP
). Estes tratados específicos não consideram a
Índia directamente, mas representam um novo aspecto do Estado neoliberal
de que deveríamos ter consciência uma vez que acordos semelhantes
provavelmente irão confrontar-nos nos próximos tempos. Eles
retiram todo um conjunto de assuntos completamente fora do âmbito do
Estado-nação e delegam-nos a corpos supranacionais formados
especificamente para o efeito. Uma nação signatária de um
tal acordo terá de abandonar toda jurisdição nacional em
matérias como tratar o investimento estrangeiro e terá de ficar
prisioneira de decisões dos corpos judiciais supra-nacionais
estabelecidos sob o acordo.
Se se supõe que nem mesmo a entrada num acordo como esse precise da
ratificação parlamentar do país, então temos um
exemplo perfeito da entidade núcleo dentro de um Estado neoliberal a
dirigir um golpe de estado contra a "soberania popular" tal como
lavrada na Constituição. Ele teria transferido poderes soberanos
para um corpo supranacional sem o consentimento dos representantes do povo,
muito embora tal transferência colida fortemente com a vida do povo.
Mas mesmo que seja considerada necessária a ratificação
parlamentar, não seria difícil obter tal
ratificação na base de "manobras de bastidores", uma
vez que envolveria um mero voto apenas uma vez: num caso assim a
Constituição do país teria sido reduzida através de
uma simples votação única no parlamento obtida
através de "manobras de bastidores".
O Estado neoliberal, ou o Estado na era da hegemonia do capital financeiro
internacional, é cada vez mais moldado de uma maneira que restringe a
"soberania popular" de todos os modos concebíveis. Sua
tendência essencial é para reduzir a democracia e estabelecer,
mesmo que forçosamente dentro de um envoltório aparentemente
democrático, a hegemonia irrestrita da oligarquia
corporativo-financeira. Para atingir esta finalidade muda também a
estrutura interna, a anatomia, do Estado. Um ressuscitar da
própria democracia exige a transformação da estrutura de
Estado criada pelo neoliberalismo.
http://resistir.info/patnaik/patnaik_16nov14.html
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